Marta acolhe novatas e prioriza time à titularidade: ‘Que eu mofe no banco e elas sigam a brilhar

Em entrevista exclusiva às Dibradoras, a Rainha do futebol relembrou sua personalidade e momentos vividos nos cinco Mundiais em que já disputou com a camisa do Brasil.

Sem titularidade garantida no time de Pia Sundhage para o Mundial de 2023, Marta também revelou detalhes do papel que exerce no elenco durante essa Copa do Mundo. “Que eu mofe no banco e que elas continuem a brilhar, porque o time jogando bem e ganhando, todo mundo sai ganhando também!”, declarou.

Confira abaixo a entrevista na íntegra feita em Gold Coast, na Austrália, uma semana antes da estreia da Seleção Brasileira contra o Panamá (dia 24/06, às 7h – horário do Brasil).

2003 – Procurando meu espaço

Foto: Reprodução

“Foi um tempo muito diferente do que a gente vive hoje e eu não tinha dimensão ainda com relação a estar em uma seleção. Antes de ir pra Copa, a gente participou do Campeonato Sul-Americano classificatório e era um pouco diferente porque era um ambiente mais… não sei, digamos que não era tão leve, assim, pra uma menina de 17 anos chegando em uma seleção com tantas atletas renomadas. E eu, naquele momento, queria só jogar bola, não queria saber se o treinador era bom ou ruim, eu estava lá pra mostrar o meu trabalho. Então, foi bem diferente e eu não tive, assim, de primeira, uma atleta, entre aquelas que lá estavam, que eu passei a ter uma conexão mais próxima, de aconselhar, de estar junto.

Eu acho que a Dani Alves era a mais próxima de mim naquela época e ela já tinha uma experiência de chegar em uma equipe com outras atletas mais velhas. Então, acho que ela viu que eu estava chegando ali, meio que um pouco perdida, naquela situação, e eu acho que ela foi a que mais se aproximou de mim.

Eu era mais quietinha, era mais ‘na minha’. Com 17 anos, eu não tinha tanta abertura pra conversar, pra dar a minha opinião com relação a isso ou aquilo, então eu fui aos poucos evoluindo também nisso e procurando meu espaço, sempre através do meu trabalho e daquilo que eu representava pra equipe.”

2007 – Confiante

(Feng Li/Getty Images)

“Foi muito especial. Sem dúvida, o nosso melhor momento em Copas do Mundo. A gente chegou numa final, tínhamos uma equipe muito talentosa quer poderia ter sido diferente, mas por ironia do destino ou, sei lá, algo que Deus não nos permitiu, e a gente tem que entender isso, não conseguimos vencer aquela final. Mas eu estava muito mais preparada, já estava em uma outra situação, já jogava na Suécia desde 2004 – porque depois de 2003 eu tive a oportunidade de ir pra Suécia – e foi aí que eu realmente me coloquei em uma situação de me dedicar somente ao futebol, treinar todos os dias, jogar com atletas que colocavam em uma situação de ter que me inventar todos os dias e fisicamente também estava muito bem. A liga na Suécia, naquela época, era considerada talvez a melhor na atualidade, então (a Copa) foi muito diferente.

Eu já estava mais solta, mais confiante, já falava mais, tinha as minhas opiniões e muitas vezes a expressava. Então, era uma Marta diferente, mais segura de si. Tinha um clima bom, não era tão bom quanto hoje e não éramos todas amigas. Mas já adianto que era um grupo bem diferente do que tem aqui (na seleção) hoje, que é bem diferente de todos os outros.

(Foto: AFP)

A gente competia entre a gente, mas às vezes, algumas competições eram desleais, no meu ponto de vista. Acho que você querer jogar é uma coisa, todo mundo quer jogar, são 26 atletas e todas querem estar entre as 11 titulares. Mas, você encarar isso e colocar acima de tudo, acho que já exagera e eu nunca coloquei essa questão acima de tudo. Eu sempre quis jogar, mas eu também quero ver a minha companheira bem, porque ela bem, ela me cobra. Então, assim: ‘opa, ela tá bem, eu tenho que estar melhor’, mas assim, de uma maneira positiva e nem sempre era assim, entendeu?”

2011 – Faltou tranquilidade

Brasil eliminado pelos Estados Unidos (Foto: Reuters)

“Poderia ter sido melhor. Acho que eu senti mais essa eliminação do que a de 2007. Se a gente analisar a maneira como a gente saiu (eliminadas na Copa pelos Estados Unidos nas quartas de final, nos pênaltis): começamos perdendo o jogo, empatamos, fomos para a prorrogação, conseguimos virar na prorrogação e, digamos que, perdemos em 20 segundos, ali, naquele gol que tomamos na prorrogação. Então, assim: ir para os pênaltis, é uma coisa que a gente não sabe o que vai acontecer no final. Tem que acreditar, mas é algo que não está nas nossas mãos 100%, é um jogo de adivinha.

Mas, foi muito dolorida aquela desclassificação, eu senti muito porque precisávamos ter sido mais maduras para entender a maneira como jogar naquele momento em que estávamos ganhando de 2×1. É bem similar com o que aconteceu com a seleção masculina (na Copa do Catar, diante da Croácia), porque, poxa, a gente precisa entender como jogar nessas horas. E eu acho que esse é um ponto que a Pia fala muito aqui: vocês precisam entender como jogar em cada momento da partida. Aquele momento pede o quê? Mais tranquilidade, mais posse de bola, segura mais, mas segura no momento certo, no lugar certo, entendeu? Então, ficaram muitas dúvidas, a gente estava tão pertinho e aí deixamos escapar. É um sentimento de, sei lá, muito doloroso quando perde.”

2015 – Deixou a desejar

Seleção Feminina na Copa do Mundo do Canadá, em 2015 (Foto: FIFA/Getty Images)

“Acho que essa Copa foi a que a gente jogou menos, o time não se encaixou tão bem. Teve muitas coisas com relação à grama sintética, dizendo que isso influenciou, mas aí tem que olhar que todas as equipes jogaram na mesma situação. Então, acho que a gente deixou muito a desejar em 2015.”

2019 – A transformação

Foto: Reuters

“Ah, assim… foram tantas situações em Copas do Mundo e a gente sempre cobrando bastante: apoio, estrutura, um acompanhamento maior por parte da mídia. E hoje estamos tendo isso.

Então, em 2019, eu cobrei tudo isso, mas também, de alguma forma, eu tinha que mostrar para nós mesmas que “ó, a gente cobra, mas também precisamos fazer aquele algo a mais”. Precisamos entender que, se preparar para uma competição de alto nível como essa, não é só quando estiver próximo da competição. Mas sim, no seu dia-a-dia, no seu clube, é o que você faz lá fora que vai refletir muito na seleção. Quando você chega na seleção, é justamente para encaixar as peças e a treinadora escolher o melhor time pra colocar em campo, mas é preciso se preparar no decorrer disso. Então, aquele desabafo foi mais um alerta para que nós, atletas, pudéssemos entender que só fazer o básico não é suficiente, a gente tem que fazer algo a mais. Se toda a galera estiver fazendo o básico, a gente vai estar no mesmo nível. E a gente precisa procurar estar sempre um nível acima, para que a possamos ter a condição de bater de frente com qualquer equipe, sem nenhum tipo de dificuldade.

Sobre a mudança de comportamento, a gente vem ganhando essa liberdade de poder falar um pouco mais sobre o nosso dia-a-dia, sobre o que a gente vive, as nossas condições e como é tratada a questão do futebol feminino. E aí, começam a querer basear o (futebol) feminino com o masculino e isso não tem nada a ver. Nós estamos cobrando pro (futebol) feminino. Não estamos cobrando para estar no mesmo nível em questões financeiras do masculino, porque a gente sabe que eles têm mais público e eles vendem mais produtos. Estamos cobrando pelo que representamos, pelo que fazemos, pelo mérito da gente.

(Foto: Reuters)

Então, naquele momento (na Copa de 2019), eu senti que eu poderia fazer um pouquinho mais. Eu venho cobrando desde que me entendo por gente e, poxa, só de você escolher o futebol quando eu comecei a jogar, já era um grande desafio. Mas eu escolhi! Então, isso já é uma coisa que eu faço naturalmente.

Mas eu me senti, naquele momento, de fazer isso porque, poxa, eu trabalhei com uma marca de material esportivo por décadas, desde a época em que fui para a Suécia, por cerca de 14 anos. Aí, ao invés de evoluir – porque a gente vem evoluindo como atleta – de alguma forma, eu me senti diminuída. E eu falei assim: ‘não, não vou aceitar’, vou de certa forma usar isso para expor o que acontece de fato nos bastidores, de quando chega perto de grandes competições, as marcas só oferecem o material esportivo para as atletas, mas fazem uso de sua imagem (sem compensações financeiras) e isso precisa ser dito. Mas eu não vou cobrar isso de uma menina de 18, 19 anos que estava na seleção porque ela está chegando agora e eu já passei por esse momento de só jogar em troca de material esportivo.

Hoje não, eu tenho essa liberdade, eu ganhei esse direito de poder falar por elas e dar voz a tudo isso. Então, foi ali que eu escolhi não assinar com ninguém (marca esportiva) e expor esse problema que, acredito eu, melhorou bastante. Eu vejo muito isso (a melhora), é nítido, vejo muitas meninas sendo patrocinadas e, claro, não são valores exorbitantes, mas estão sendo remuneradas, algo que não acontecia antes.”

2023 – Acolhedora

(Foto: Thaís Magalhães / CBF)

“Meu papel hoje na seleção é simples: aquilo que me fez falta no começo, eu quero que elas tenham. Você me perguntou quais atletas me apoiaram, me deram dicas lá no começo, mas quase que ninguém fez isso. E eu não quero que elas se sintam assim, quero que elas se sintam acolhidas. Então é aquilo: ‘ah, elas fizeram gols, estão jogando pra caramba’ e eu não vou ter condições de jogar e vou mofar no banco (de reservas). Que eu mofe no banco e que elas continuem a brilhar porque o time jogando bem e ganhando, todo mundo sai ganhando também!

E eu me lembro muito bem, não ia nem falar isso, mas pra você ver a diferença: os meus primeiros dois gols na seleção, se não me falha a memória, foi no Sul-Americano adulto, valendo classificação para o Mundial de 2003, no Peru. Eu fiz os dois gols e joguei de titular, tinha 16 anos. E aí, terminou o jogo e uma das atletas daquela época chegou pra mim e disse: ‘ah, fez dois gols?’ e bateu na minhas costas e completou, ‘mas não vai se acostumando, não’.

(Foto: Thaís Magalhães / CBF)

Mas como assim? Naquela época, ela jogava de titular às vezes sim e às vezes não. E eu não quero isso para as meninas aqui (da seleção atual), jamais! Eu chego pra elas (jogadoras mais novas) e falo: ‘eu quero jogar, quero ser titular, mas se você estiver jogando melhor do que eu, vou aceitar, sabe porquê? Eu, sendo titular, vou te incentivar a fazer o seu melhor para que você seja titular muito em breve’. Mas, se eu perder essa situação (como titular do time), você vai estar me motivando a fazer mais ainda, melhorar e, de alguma forma procurar te superar. Mas, te superar positivamente, porque vai te fazer melhor, explorando o melhor de ti e você explorando o melhor de mim, em prol do todo, de toda equipe’. Então, aqui não tem essa!”

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