Maioria pela 1ª vez na delegação olímpica, mulheres quase não ocupam cargos de decisão no COB

O grande caminho para as principais potências esportivas ganharem ainda mais medalhas tem sido investir mais no esporte feminino
Ginástica Artística do Brasil. Foto: Ricardo Bufolin/CBG

Foto: Ricardo Bufolin/CBG

A menos de 100 dias dos Jogos Olímpicos de Paris-2024, o Brasil tem aproximadamente 60% de vagas femininas do total já conquistado pelo país para o evento. O que indica que a meta estipulada pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB) de ter o mesmo número de atletas nas delegações feminina e masculina pela primeira vez na história deva ser superada na capital francesa. Das 187 vagas que o Brasil garantiu até o momento para as Olimpíadas, 111 são femininas, enquanto 61 são masculinas e outras 15 são sem gênero definido.

A maior participação das mulheres no Time Brasil nas Olimpíadas se deve principalmente aos esportes coletivos, já que elas se classificaram no futebol, handebol, rugby sevens e vôlei, enquanto que apenas o vôlei conseguiu a vaga olímpica entre os esportes coletivos masculinos. Outras duas modalidades em que o Brasil classificou a equipe completa também pesaram para essa conta. Casos da ginástica artística feminina (que no masculino conquistou apenas duas vagas individuais) e da ginástica rítmica (modalidade que não existe disputa masculina nas Olimpíadas).

Fato é que o esporte feminino do Brasil está crescendo muito em termos de resultado, e a consequência é o aumento também de mulheres que conquistam a vaga olímpica. Ao que tudo indica, o Brasil também terá mais medalhas com as mulheres do que com os homens pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos. Por sinal, foi a evolução do esporte feminino que fez a diferença para o Brasil ter batido o recorde de medalhas nos Jogos de Tóquio-2020 e são as mulheres as principais apostas para o COB projetar nova quebra de recorde na edição de Paris-2024.

Nos Campeonatos Mundiais de 2022 e 2023 de todas as modalidades, o Brasil ganhou sete ouros em 2022: cinco com as mulheres e dois com os homens. Em 2023, foram 17 medalhas mundiais, sendo 11 com as mulheres e seis com os homens. “As mulheres estão realmente em um momento muito melhor no esporte brasileiro e esse é o caminho para conseguir o crescimento”, avalia Guilherme Costa, jornalista da Globo e especialista em esportes olímpicos.

Mas esse cenário não é exclusivo do Brasil. Os principais países do mundo conquistam mais medalhas com as mulheres do que com os homens, isso é uma tendência mundial. Foi assim com os quatro primeiros colocados do quadro geral de medalhas dos Jogos Pan-Americanos de Santiago-2023: Estados Unidos, Brasil, México e Canadá. A chave para as principais potências esportivas do mundo crescerem mais no quadro de medalhas das grandes competições esportivas (continentais ou mundiais) tem sido investir mais no esporte feminino.

“Isso acontece porque existem muitos países que ainda são machistas e que só investem nos esportes masculinos. Se pegar países como Georgia, Cazaquistão, Irã, Uzbequistão, que são relativamente relevantes no quadro de medalhas – estão sempre entre o top-20 e o top-25 do quadro geral de medalhas –, mas investem praticamente só no esporte masculino e esquecem do feminino, por conta do machismo e da cultura deles”, explica Guilherme.

Por conta disso, tem mais países disputando medalhas nas provas masculinas, logo as disputas femininas são mais abertas, por terem menos países disputando, já que menos países investem. “É um hiato bom para investir e aumentar o número de medalhas”, avalia o especialista em esportes olímpicos.

Igualdade pela primeira vez nas Olimpíadas

Esta será a primeira vez que haverá igualdade de vagas entre homens e mulheres nas Olimpíadas, que em Paris-2024 terá no total de cerca de 10.500 atletas. “Isso já é um fato muito importante, porque a primeira Olimpíada em 1896 não teve nenhuma mulher e, aos poucos, elas foram crescendo na porcentagem dos atletas até que, pela primeira vez, com certo atraso depois de 128 anos de Olimpíadas, teremos pela primeira vez 50% de atletas homens e 50% de atletas mulheres falando do total de atletas do mundo inteiro”, destaca o jornalista.

Foi justamente em Paris que uma mulher competiu pela primeira vez na história do evento, em 1900, na segunda edição das Olimpíadas da Era Moderna. A suíça Hélène de Pourtalès, que conquistou as medalhas de ouro e prata pela vela, abriu a primeira porta para que as mulheres se multiplicassem. Nos Jogos de 1924, novamente em Paris, elas eram 135 competidoras, representando 4,3% do total de atletas. Ainda assim, poucas modalidades permitiam a participação feminina, que se restringia a natação, saltos ornamentais, esgrima, florete individual e tênis.

O Brasil só foi ter a primeira representante mulher nas Olimpíadas de Los-Angeles-1932, com a nadadora Maria Lenk, que tinha 17 anos quando foi a única mulher em meio a uma delegação com outros 68 atletas da equipe brasileira. Depois os movimentos feministas ganharam força também no meio esportivo e as mulheres foram ampliando seu espaço na quantidade de modalidades. O futebol feminino, por exemplo, foi incluído no calendário olímpico nos Jogos de Atlanta-1996 e, desde então, todo esporte que fosse incluído nas Olimpíadas passou a ser obrigado ter participação feminina.

Fora da esfera das competições esportivas propriamente, medidas também foram adotadas para que a igualdade de gênero chegasse a cargos operacionais e de gestão. Um exemplo é que, desde 2022, 50% dos cargos de membros das comissões do Comitê Olímpico Internacional (COI) são ocupados por mulheres.

Trabalho específico para o esporte feminino

A evolução feminina passa por um trabalho de formação e preparação voltado especificamente para as mulheres. “Sem dúvida nenhuma, as mulheres têm feito a diferença em nosso resultado final. Muitas modalidades estão entendendo a importância do trabalho específico e diferenciado entre homens e mulheres. Hoje em dia, boa parte das Confederações estão trabalhando nesse sentido e isso está fazendo uma grande diferença”, disse o diretor de esportes do COB, Ney Wilson, na coletiva de imprensa dada no último dia do Pan-Americano de Santiago-2023, em novembro.

O judô foi uma das primeiras modalidades no Brasil que percebeu a importância disso. Entre 2005 e 2006, o judô masculino brasileiro já tinha tradição de conquistar medalhas, enquanto a modalidade feminina jamais havia ganhado uma medalha olímpica. Mas as mulheres faziam a mesma preparação que os homens. “A confederação escolhia um camping de treinamento na Geórgia, por exemplo, e levava a seleção completa, masculina e feminina. Mas a Georgia é uma potência só no judô masculino, porque o judô feminino lá não recebe a menor atenção. Foi quando perceberam que não valia a pena levar a seleção feminina pra lá”, explica o jornalista Guilherme Costa.

A partir dessa compreensão, a Confederação Brasileira de Judô separou uma coordenação do judô feminino e uma do masculino, em que cada uma passou a fazer a sua preparação. “O judô feminino deixou de ir para a Geórgia, como nesse exemplo, e passou a ir para Itália, Espanha, o próprio Japão, França, que são potências do judô feminino. A partir dali, o esporte brasileiro passou a entender que é importante fazer essa divisão. Claro, tendo na cabeça que o investimento é o mesmo, mas que cada um vai investir de uma maneira, porque cada seleção masculina e feminina tem uma especificidade e uma necessidade diferente”, completa Guilherme. O resultado foi um crescimento exponencial das conquistas por judocas brasileiras.

Veja as medalhas olímpicas conquistadas pelo judô brasileiro nos últimos 20 anos:

Jogos OlímpicosMedalhistas homensMedalhistas mulheres
Atenas-2004Leandro Gulheiro (bronze)
Flávio Canto (bronze)
Nenhuma
Pequim-2008Leandro Gulheiro (bronze)
Thiago Camilo (bronze)
Ketleyn Quadros (bronze)
Londres-2012Felipe Kitadai (bronze)
Rafael Silva (bronze)
Sarah Menezes (bronze)
Mayra Aguiar (bronze)
Rio-2016Rafael Silva (bronze)Rafaela Silva (ouro)
Mayra Aguiar (bronze)
Tóquio-2020Daniel Cargnin (bronze)Mayra Aguiar (bronze)

Pan-Americano mostra força das mulheres

Em novembro, o Brasil fez sua melhor campanha no Pan-Americano de Santiago-2023, com as mulheres sendo decisivas para bater o recorde de 66 ouros, 73 pratas e 66 bronzes e o país ficar com o segundo lugar no quadro geral de medalhas, atrás apenas dos Estados Unidos. Dos 66 ouros brasileiros, 33 foram conquistados pelas mulheres, que subiram 95 vezes no pódio – além das 18 medalhas em equipes mistas.

Desde junho de 2021, o COB possui uma área específica para o desenvolvimento do esporte feminino, chamada Mulher no Esporte, destinada exclusivamente à elaboração de projetos para atletas, treinadoras e gestoras mulheres. Além de trabalhar em políticas para o fortalecimento da mulher em todos os âmbitos, conta com um investimento dedicado a projetos esportivos, que é o Programa de Desenvolvimento do Esporte Feminino (PDEF). A iniciativa resultou na criação da Comissão da Mulher no Esporte, do Fórum da Mulher no Esporte e do Canal tira-dúvidas de Saúde da Mulher.

Quando a Área Mulher no Esporte foi criada em junho de 2021, quem assumiu a coordenação foi a velejadora e medalhista olímpica Isabel Swan, por meio de processo seletivo. Cargo que Isabel ocupou até novembro do ano passado, quando foi demitida pelo COB nove dias após o Brasil ter feito uma campanha histórica no Pan-Americano de Santiago-2023, com mais medalhistas femininas do que masculinas pela primeira vez na competição. 

A velejadora medalhista olímpica de bronze na vela em Pequim 2008 acredita que sua saída foi motivada por decisão política. Ela disse que “não tinha mais autonomia para tomar decisões” após a mudança de diretoria ocorrida no COB no início de 2022, com a saída de Jorge Bichara, ex-diretor de Esportes, e a entrada de Kenji Saito, para desenvolvimento, e Ney Wilson, para alto rendimento.

“Termino minha jornada com um curso de equidade de gênero e com mais ginecologistas e mais médicas do esporte, com mapeamento das entidades, com uma comissão da mulher, com realização de fóruns… muita coisa implementada, mas com muita dificuldade de seguir com uma gestão com a qual não me adaptei”, disse Isabel, ao O Globo, após sua demissão. 

Já o COB informou em nota que “por decisão executiva optou por mudanças na área”. Desde o fim do ano passado, Julia Silva e Soraya Nobre, ligadas ao vôlei e ao basquete, respectivamente, passaram a dividir a coordenadoria do esporte feminino do COB. Elas já trabalhavam na entidade, que prometeu a manutenção dos projetos pré-existentes de fomento ao esporte olímpico feminino e dedicar ainda mais esforços na formação de atletas e treinadoras, com a expansão do Programa de Desenvolvimento do Esporte Feminino (PDEF), cujo orçamento seria praticamente dobrado para 2024.

Apesar de as Olimpíadas de Paris colocarem em destaque a participação feminina, Isabel Swan ressaltou como o espaço aberto às mulheres no esporte ainda é restrito na área de gestão, direção e até em cargos de liderança, como o de treinadoras. No COB, embora tenha grande participação feminina no quadro operacional, os cargos de tomada de decisão contam com apenas uma mulher entre os sete diretores. Isabele Duran (Diretora Financeira e Administrativa) é a exceção entre Rogério Sampaio (Diretor Geral), Luciano Hostins (Diretor Jurídico), Gustavo Herbetta (Diretor de Marketing), Paulo Conde (Diretor de Comunicação), Ney Wilson (Diretor de Alto Rendimento) e Kenji Saito (Diretor de Desenvolvimento Esportivo). A entidade ainda é presidida por Paulo Wanderley e seu vice Marco La Porta.

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