Mulheres no Catar: Como tem sido a cobertura delas no 1º Mundial em país árabe

Fotos: Reprodução / TV Globo

(Colaborou Roberta Nina)

Há 12 anos o Catar era escolhido para sediar a Copa do Mundo 2022 e a partir dali muitos questionamentos surgiram por conta do regime autocrático estabelecido no país, de maioria islâmica. Um sistema de regras e leis que ferem os direitos das mulheres e também da comunidade LGBTQIA+.

A vestimenta tradicional inclui o hijab (véu) e não se mostra pernas e ombros. Mulheres precisam de autorização para estudar fora com bolsas governamentais e todas respondem a um guardião masculino (pai e/ou marido, nesta ordem). Para as estrangeiras não casadas que engravidam no país, há risco de prisão e deportação, assim como aquelas que dão à luz na condição de solteiras.

Torcedoras do Catar em jogo contra o Equador (Quality Sport Images / Getty Images)

De acordo com um relatório da ONG Human Rights Watch de 2021, que analisou 27 leis e entrevistou 73 mulheres cataris, as cidadãs do país não podem sair de casa sem o aval do marido e não podem recusar servi-lo sexualmente, a não ser que apresentem motivo “legítimo”. Já o homem catari pode ter até quatro mulheres ao mesmo tempo.

Mesmo se dizendo uma nação aberta ao diálogo, ser gay no Catar é passível de pena de morte. Ex-atleta da seleção local e Embaixador da Copa, Khalid Salman chamou a homossexualidade de “dano mental”.

Inclusive, a cerimônia de abertura do torneio girou em torno da diversidade e inclusão. Nada de forma natural, mas sim com o intuito de passar uma melhor imagem daquela que a sua cultura e governo transmitem.

As mulheres que cobrem o Mundial

Karine Alves cobre a Seleção Brasileira pela TV Globo (Foto: Globo/João Miguel Junior)

Catar é visto como o país islâmico menos proibitivo para mulheres comparado com outros. Lá, por exemplo, elas não são proibidas de frequentar estádios, mas está longe de ser um hábito. A pequena parcela que esteve presente no jogo inaugural do Mundial ou estava acompanhada de homens ou em grupos.

Neste momento de Copa do Mundo o país está tomado por turistas e não há muitos relatos de autoritarismo nem com quem foi assistir ao Mundial e nem com quem foi trabalhar (exceto com quem tentou, de alguma maneira, entrar nos estádios com intuito de se manifestar). Há jornalistas em diversas áreas trabalhando nesta cobertura e conversamos com algumas delas para entender este desafio profissional.

Alê Xavier e Luana Maluf, através do canal Passa a Bola, foram ao Catar com o intuito de aproximar o torcedor que não pôde estar presente no país. A ideia é levar para quem está no Brasil como os países estão se comportando com a mistura de culturas e o clima dentro dos estádios pela perspectiva dos torcedores.

Alê Xavier e Luana Maluf, apresentadoras do canal Passa a Bola (Foto: Divulgação)

Primeira mulher a cobrir a seleção brasileira masculina em uma Copa do Mundo pelo Grupo Bandeirantes de Comunicação, Alinne Fanelli tem a missão de detalhar o máximo possível as informações do dia a dia da equipe brasileira para quem está do outro lado do rádio. Segundo ela: “Hoje em dia, com a questão das lives que pedem muita imagem, o grande desafio é lembrar sempre que há um ouvinte”.

Gláucia Santiago, Karine Alves e Débora Gares entram ao longo da programação da ESPN/Star+ e Globo/SporTV, respectivamente, com notícias do time de Tite diretamente do Catar. Quem está por lá trabalhando com TV tem presenciado a “síndrome da câmera ligada”. “Falaram para termos cuidados de filmar as pessoas aqui, mas várias vezes as pessoas pedem para falar, uma menina de aproximadamente 15 anos pediu para falar com a nossa equipe, estava com a vestimenta tradicional, e a gente explicou que não podia”, conta Gláucia.

Rotina de cobertura

O Catar está há seis horas à frente do Brasil. Por isso, a rotina de trabalho de quem está por lá precisa ser adaptada para o horário de Brasília.

“Começo uma da tarde no Catar, sete da manhã horário de Brasília. É uma rotina puxada, entrar na programação da Band News o tempo inteiro, não tenho tempo para conhecer a cidade. Sinto muita falta de arroz e feijão também, a gente acaba comendo o que está mais rápido e fácil”, contou Alinne Fanelli.

Alinne Fanelli, repórter da BandNews FM, na estreia do Brasil (Foto: Redes Sociais)

“A grande verdade é que não temos rotina (risos). Nós começamos a trabalhar no meio da tarde e o fim da jornada o que determina é a notícia. Enquanto tiver informações sobre seleção brasileira estaremos trabalhando. É um trabalho puxado, de muitas horas, que exige dedicação, mas que fazemos com muito gosto e alegria, porque estamos fazendo o que gostamos e pelo que tanto batalhamos. Conforme as notícias vão acontecendo precisamos estar preparadas para entrar ao vivo e muitas vezes é corrido”, falou Karine Alves.

“Por aqui estamos em quatro pessoas do Passa Bola. Não nos dividimos em espaço, captamos visões diferentes dentro do mesmo ambiente. Vale ressaltar que temos um grande apoio do Brasil, onde está a maior parte da nossa equipe”, dizem Alê e Luana

Representatividade feminina e a presença da mulher negra

“Onde estamos, a maioria é de estrangeiros, mas a gente vê muita mulher trabalhando por aqui normalmente, assim como homens. Me chamou atenção no aeroporto, chegando aqui precisei passar pela imigração, tinha mulher ali, trabalhando. Já vi policiais mulheres, utilizando o véu, por exemplo”, conta Gláucia, questionada se é comum a presença das mulheres no país nos mais diferentes ramos.

“É histórico ter mulheres aqui justamente porque a gente representa com o nosso rosto e visão feminina uma Copa que tem muitas questões e uma quantidade esmagadora de homens. Mostrar a voz feminina, a nossa visão e dar voz para as minorias que estão aqui é o nosso propósito”, falam Alê e Luana

“São pontos que vamos conquistando a cada dia. Tem o feito da Ana Thaís (comentarista da Globo) e há muitos outros que não são falados e nem divulgados porque não estão em evidência (a mulher cinematográfica, por exemplo)”, explica Alinne.

“Em relação à presença das mulheres negras na cobertura, infelizmente o número ainda é muito pequeno. Eu só vi a minha colega Débora Gares, com quem eu troco informações e experiências diariamente, e mais uma colega de outro veículo. É um número pouco expressivo, mas que também significa uma mudança. Estamos abrindo um caminho para que lá frente outras gerações não encontrem tantas dificuldades quanto a nossa para chegarem perto de realizar os seus sonhos. Eu quero mais, eu trabalho para isso”, aponta Karine.

Débora, colega de Karine, reforça o que disse a parceira de cobertura, “Somos pouquíssimas, infelizmente. Mas, curiosamente, a questão raça parece ser um problema menor aqui no Catar do que a questão gênero, já que os cataris e a maioria dos imigrantes (indianos, paquistaneses, egípcios, marroquinos, tunisianos, argelinos, sudaneses, etíopes, ganeses) têm um tom de pele que se aproxima com o nosso.”

“Meu propósito de vida também tem a ver com o meu trabalho. Dentro dele também está a conquista coletiva, que mulheres negras tenham mais espaço em ambientes que antes eram negados a elas. A Debora é uma amiga de muitos anos. Muitas vezes só no olhar a gente conversa. Não precisa nem falar, nós já sabemos o que a outra está pensando. Por isso que é importante olhar para o lado e ter essa representatividade. Olhar e saber que tem uma pessoa que passa pelas mesmas coisas que eu e está aqui comigo. Isso nos deixa mais confiantes”, concluiu Karine.

Débora valoriza a presença das mulheres na cobertura e acredita que as barreiras que elas estão quebrando irá contribuir por um futuro mais diverso. “Acho super importante. Estou crescendo muito profissionalmente, aprendendo todos os dias. E espero estar ajudando a formar novas gerações de profissionais mulheres e negras para o esporte, além de estar formando consumidores, treinando as pessoas a enxergar em nós talento, profissionalismo, carisma, beleza, independentemente da cor da nossa pele. O cabelo preso, por exemplo, é o mais prático para se trabalhar aqui, por conta da correria da cobertura e do vento nas ruas. Mas procuro usar o cabelo solto sempre que posso para que o crespo apareça na TV. É uma forma de reforçar minha identidade e promover a autoestima de muita gente, assim como a minha foi promovida quando duas mulheres daqui, uma usando véu inclusive, disseram que meu cabelo é lindo!”

Débora Gares na cobertura do Catar (Foto: Globo/Juliana Coutinho)

 

Machismo x cultura local

“Ouvimos muita coisa antes de vir para cá e que de fato não estão acontecendo, como vestimentas, por exemplo. As locais usam as roupas tradicionais, vi até uma repórter local. E são variações da vestimenta, com rosto parcialmente coberto, todo coberto. Mas o país está com muito turista, as pessoas vêm falar com a gente, repórter local cumprimentando etc”, conta Gláucia Santiago.

“No mundo que a gente vai tem muita mulher no estádio, aqui não é padrão. Times latinos têm mais, mas temos encontrado poucas mulheres dos países árabes, elas são bem fechadas, não gostam de falar. No jogo do Irã, as únicas que toparam falar não moram mais no país, sabem que não vão mais voltar. Tinham umas meninas da Arábia que vivem no Catar, estavam indo ver jogo da Argentina e falaram: ‘Aqui no Catar podemos fazer o que queremos, lá na Arábia não’, então é bem chocante”, disseram Alê e Luana.

Além da cultura do próprio país e da religião, ainda há o machismo enraizado na sociedade como um todo. Durante sua cobertura com a seleção, Alinne Fanelli precisou lidar com o descaso de um funcionário da Fifa.

“Tem um profissional da Fifa que fica na coletiva oficial, no pré-jogo da Sérvia levantei meu braço muitas vezes e fui ignorada, ele falava para eu esperar e não me dava a vez. Naquela entrevista foram sete perguntas para o Thiago Silva e 12 para o Tite e uma só de mulher perguntando, e essa cena se repete. Nenhuma mulher consegue perguntar para o Tite, por exemplo. Ele (o funcionário) simplesmente ignora e não te olha”.

Diante de tantas dificuldades, se torna ainda mais importante a rede de apoio formada entre elas, mulheres. “Estamos em um país que tem muito problema com a questão dos direitos humanos. É um país em que a violência doméstica não é considerada crime. Onde não tem uma idade mínima para casamento. Estamos falando da cultura local. Então nós aqui ficamos cada vez mais unidas. Existe essa troca, essa parceria”, conta Karine.

Na reportagem da Globo/Sportv e cobrindo sua segunda Copa do Mundo in loco, Débora também relatou constrangimento em um momento cotidiano: a hora do almoço. “Num dos primeiros dias aqui, entrei sem saber num restaurante frequentado por trabalhadores locais. Era hora de almoço e estava lotado. Assim que entrei, sozinha, todos olharam na minha direção. Me senti constrangida e saí para procurar outro lugar para comer. No dia a dia, também não me sinto à vontade para frequentar a piscina do hotel, por exemplo. Apesar de estar lotado de hóspedes europeus, com códigos culturais mais parecidos com os nossos, são quase todos homens. Algo como 80%.”

Desafios do dia a dia

Como citamos lá em cima, até então não houve relatos de violência (física ou psicológica) que as nossas entrevistadas tenham presenciado. A dificuldade em estar num país de cultura restritiva à mulher por si só já gera tensões e dificuldades.

O que destacam as profissionais que estão trabalhando lá sãs os constantes olhares que recebem dos locais. “Não estamos nos privando de nada, usamos a roupa que a gente quer, faz muito calor. Mas eles olham muito, os seguranças, os guardas. Não sabemos se é por acharem um ‘absurdo’ a roupa ou se é de curiosidade”, explicam Alê e Luana

“Peguei uber sozinha três vezes por aqui e a gente pensa: ‘O que eles estão achando de uma mulher andando de uber sozinha?’. Eles não falam com você, em nada, te olham estranho. Chega a dar um pouco de medo, mas nunca houve problema nenhum. Olhares de estranheza, de algo que não é comum para a cultura deles, tem muito”, fala Alinne.

“Conversamos com um brasileiro que mora aqui há 15 anos e perguntei como é a rotina da esposa dele. Ele me disse, por exemplo, que a roupa que ela usa aqui (Catar), ela usa no Brasil, o que ela não usaria lá, ela não usa aqui, evita decote e essas coisas. Me disse que antes ele não conseguiria andar de mãos dadas com ela, que hoje já se sente mais tranquilo, que os locais já estão acostumados com outras culturas. O filho dele, de 15 anos, falou que o Catar já está muito mais ocidentalizado”, conta Gláucia.

Nós ainda recebemos um tratamento diferente. O país tem uma cultura muito diferente da Ocidental. Muitas vezes os olhares que são direcionados a nós não nos deixam confortáveis. Vivenciamos uma certa tensão. Até agora não aconteceu nada de grave, mas como mulheres precisamos estar sempre atentas a qualquer movimento ou olhar. Isso faz com que para nós a cobertura seja mais difícil neste sentido”, aponta Karine.

Com certeza essa Copa já é histórica. Levou luz a assuntos até então não muito debatidos, principalmente, na grande mídia. Cabe críticas ao país sede, à Fifa que chancelou e chancela atitudes antidemocráticas, à federações que aceitam passivamente decisões da entidade máxima do futebol, e cabe também destaque para o espaço oferecido às mulheres. Ainda pequeno e não 100% seguro, mas necessário para que outras portas se abram e outras Copas aconteçam com presença massiva delas, em todas as posições do futebol.

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