Pioneira do Grêmio, Marianita assume diretoria e quer mudar futebol feminino

Em entrevista, ex-jogadora Marianita relembra fundação do primeiro time feminino do Grêmio, luta pela liberação do futebol para mulheres no Brasil e contornos até voltar ao clube como diretora

Foto: Divulgação/Grêmio

O Grêmio fez um resgate na história do próprio clube em 2022 e chegou ao nome de Marianita Nascimento, meio-campista natural de Porto Alegre que foi uma das responsáveis por fundar a primeira equipe de futebol feminino do Tricolor Gaúcho em 1980. Quando Marianita foi ao clube em que o pai era conselheiro sugerir a fundação da equipe feminina, ela nem imaginava que o futebol era proibido para as mulheres no Brasil naquela época. A partir de então, Marianita não foi capitã do Grêmio apenas dentro de campo. A jogadora passou a ser uma liderança importante também no processo que levou à liberação da prática da modalidade feminina no país, em abril de 1983.

Mas durante os 40 anos seguintes pouco se ouviu falar em Marianita e nas pioneiras daquele Grêmio. O sentimento por parta das ex-atletas era de vazio. “Eu tinha uma caixinha de pandora fechada dentro de mim, e comecei a abri-la. Foi punk, muito difícil, porque começaram a vir lembranças de quando parei de jogar futebol lá atrás, porque ficou uma mágoa, uma dor”, conta Marianita. Ainda assim, a ex-jogadora decidiu reviver as lembranças para ajudar o Grêmio a compor a exposição “Gurias de Todos os Tempos – a trajetória do Futebol Feminino no Grêmio”, em 2022.

Um ano depois, os caminhos de Marianita com o Grêmio e o futebol feminino voltaram a se cruzar, desta vez, com o convite para ela assumir a gestão do departamento feminino do Grêmio. A primeira reação foi de alegria e de pedir um tempo para se atualizar. Entre as especializações realizadas pela dirigente, estão os cursos de Executiva de Futebol, Analista de Desempenho e Gestão de Categorias de Base. Desde novembro de 2023, Marianita é diretora do departamento de futebol feminino do clube e conta com Karina Balestra, ex-atacante do time que se aposentou em outubro de 2020, como diretora adjunta.

Em entrevista exclusiva, Marianita relembra a fundação do primeiro time feminino do Grêmio em 1980, a luta pela liberação da modalidade no Brasil e os contornos até ter sua história resgatada e voltar ao Tricolor Gaúcho como diretora do departamento de futebol feminino, além dos planos para sua gestão.

Leia a entrevista na íntegra:

– Como começou a sua relação com o futebol feminino? 

Marianita: A minha paixão começou desde criança, me apaixonei pelo futebol e eu tive uma referência no meu irmão mais velho, que jogava futebol e me apaixonei pela bola. Eu fiz parte de uma geração que não tinha meninas que jogavam futebol e eu tinha que jogar com meninos. Essa geração toda ela foi construída dentro disso, não só eu, como todas as meninas da época, e ali eu vivi isso de uma forma intensa. Em Porto Alegre tem o Parque Harmonia, e eu comecei a jogar lá e vieram outras meninas e outras meninas e construímos um time de futebol. Nós jogávamos contra meninos na época, porque ainda não tínhamos encontrado outras meninas pra jogar. 

– Como entra o Grêmio nessa história?

Marianita: Continuamos jogando no Parque Harmonia até o momento em que eu sugeri pro meu pai, que era conselheiro no Grêmio, de montarmos a primeira equipe de futebol feminino do Grêmio. Fomos juntos falar com o doutor Hélio Dourado (então presidente do clube), em 1980, e criamos essa primeira equipe e foi um boom! Porque começamos a conhecer outras meninas que jogavam e que existiam outros times em outros lugares também no interior do Estado e na própria Porto Alegre. Um dia fomos fazer a preliminar de um jogo do Grêmio e descobrimos, por meio do CND (Conselho Nacional de Desportos), que o futebol feminino era proibido no Brasil, ou seja, o Grêmio tomou uma multa na época. No exato momento que esse jogo terminou o Grêmio veio conversar comigo e disse: “Senhora, não tem condições de vocês continuarem aqui, porque existe a proibição do futebol feminino”.  

Na imagem, a primeira equipe do Grêmio FBPA, formada por: (em pé, da esquerda para a direita) Sônia, Lili, Vera, Silvana, Ângela e Aninha, (agachadas, da esquerda para a direita) Breca, Macalão, Marianita, Marinilsa e Mara. CRÉDITOS: Revista Manchete, 20/11/1980 / Fotógrafo desconhecido.
Primeiro time feminino do Grêmio (em pé, da esquerda para a direita) Sônia, Lili, Vera, Silvana, Ângela e Aninha, (agachadas, da esquerda para a direita) Breca, Macalão, Marianita, Marinilsa e Mara | Foto: Revista Manchete, 20/11/1980 / Fotógrafo desconhecido.

– O que fizeram após descobrirem que o futebol feminino era proibido no Brasil? 

Marianita: Eu sempre fui uma pessoa muito atuante, tanto dentro do como fora do campo. Procurei um amigo meu político, chamado Valdir Fraga (então vereador), que devemos muito a ele tudo que fez por nós. Tínhamos que ter caminhos para poder construir isso e batalhamos por essa liberação, juntamente com todas as pessoas do Brasil na época, porque não tínhamos a tecnologia que temos hoje e não sabíamos exatamente o que os outros estados estavam fazendo. Mas estávamos procurando essa referência no nosso estado e foi através do Valdir que se montou o anteprojeto à proibição, que passou pela Federação Gaúcha de Futebol para que o futebol feminino viesse a ser liberado em 1983. 

– Como foi o período da descoberta da proibição, em 1980, até mudarem a lei, em 1983? 

Marianita: Nós continuamos jogando futebol de uma forma amadora quando saímos do Grêmio. Sempre foi amadora, mas jogamos vários campeonatos em futebol de sete e de campo, nos convidaram para participar de um campeonato em Copacabana, no Rio de Janeiro, organizado pelo Radar, na época do Eurico (Lira). Como tínhamos sido campeãs no Rio Grande do Sul, ele nos convidou para esse campeonato. Nós jogamos e ficamos em segundo lugar. Foi muito legal, conhecemos o pessoal do Radar e o Eurico convidou eu e mais duas gaúchas para participar de uma excursão bem na época da Copa em 1982 na Espanha. Fizemos os jogos e ganhamos todos, foi muito legal tudo que vivemos naquele momento e tivemos oportunidade até de ver um jogo do Brasil. Então foram vivências muito loucas e intensas, né? Porque nessa época ainda fazíamos parte da Ditadura Militar no Brasil e enfrentamos, foi um primeiro enfrentamento muito pesado contra o preconceito e a não aceitação da mulher não poder jogar futebol, da própria lei, que era um absurdo. Quando eu li a lei, me senti como um castelo de cristal que se batessem em mim eu poderia me quebrar toda, como se fossemos um objeto, como se fossemos intocáveis. E sabíamos que aquilo não tinha nada a ver, era uma lei muito distante da situação atual ou daquilo que gostaríamos de fazer. Mas tudo que fizemos na época foi por amor. E quando conseguimos a liberação, em 1983, talvez tenha sido o prêmio maior de toda essa geração, de todas essas mulheres.

Jogadoras perfiladas no Estádio Olímpico | Foto: Acervo da ex-jogadora Marli de Almeida Santos, 1980/Fotógrafo desconhecido

– Como foi viver essas experiências dentro de campo enquanto mulher nessa época?

Marianita: Eu posso dizer que eu sou uma pessoa de sorte, porque eu tive condições de jogar nos gramados do Grêmio, no Maracanã, tive oportunidade de viajar e jogar na Espanha. Eu tive condições de viver alguns sonhos que, naquela época, era praticamente impossível, estaria muito distante de tudo o que estava acontecendo no país. Então, me considero uma pessoa privilegiada pelas oportunidades que eu tive, mas também, por outro lado, eu sei o quanto foi difícil derrubar tudo isso, porque nós não éramos aceitas. Se na época o futebol já era marginalizado para homens você imagina para mulheres? O que que nós ouvíamos não vou dizer em uma entrevista, porque são coisas que nem se dizem mais. Mas são preconceitos que ocorriam e que eu vejo uma diferença para hoje. Hoje, existem leis que protegem as meninas. Naquela época, não existia essas leis. Dá para imaginar o que que nós enfrentamos. E todas pioneiras, sem exceção, estão de parabéns, porque conseguimos esse feito e deixamos um legado. Hoje, eu me emociono toda vez que vejo escolinhas e essa quantidade de meninas no futebol. Estou feliz no que estou fazendo porque, assim como eu tive apoio da minha família, sei que muitas meninas na época que eu jogava tiveram que enfrentar situações muito diferentes das que eu vivi e sofreram demais.

– O que pesou para a queda da lei que proibiu o futebol feminino no Brasil na sua avaliação?

Marianita: O Radar foi fundamental, porque quando o Radar faz essa excursão para fora do país. Se for somar de 80 até abril de 83, quando eles acabam liberando futebol feminino, talvez tenham pensado que não dá mais. Essas mulheres vão continuar tentando. Acho que ter ido uma excursão Internacional e, quando voltou, isso deu um boom no Brasil. As pessoas curtiram, todos os estados viram, acho que trouxe mais força e mostrou que nós não iríamos desistir. Na época, eu pesquisei para entender melhor porque aquela lei havia sido criada e cheguei até a história da Dona Carlota. Lá para 1930, ela foi responsável por muitas equipes femininas em São Paulo, que jogavam meio que profissionalmente, ou seja, faziam campeonatos e tal. Foi aí que o então presidente Getúlio Vargas acabou fazendo essa lei em 1941. Isso nos ajuda, inclusive, a buscar alternativas para reverter isso. Posso te dizer que o meu enfrentamento foi tranquilo dentro da minha casa, mas fora dela, por eu botar minha cara a tapa, eu passei por enfrentamentos muito difíceis, as pessoas nos olhavam diferente, não nos aceitavam. Mas o importante é que todas se ajudaram e conseguiram. hoje, me sinto muito feliz quando vejo o futebol feminino neste crescimento. Tenho consciência de várias coisas que ainda estamos atrás, mas temos disposição para fazer as coisas acontecerem e pessoas capacitadas para isso.

+ O clube que desafiou a lei e formou a primeira seleção brasileira feminina

O time do Radar foi fundado em 1981 | Foto: Arquivo Pessoal

– Como o Grêmio e o futebol feminino voltaram à sua vida? 

Marianita: O Grêmio queria fazer uma história do futebol feminino no clube. Foi quando o pessoal do museu entrou em contato com muitas jogadoras e estava tentando entrar em contato comigo durante um bom período, mas eu não estava disposta. Eu fui a última pessoa que o Grêmio entrevistou. Só que todas as meninas que eles entrevistaram antes diziam que eu era a responsável. Eu sempre fui uma liderança e o Grêmio sabia disso. Até que eu resolvi entender o que queriam e falaram que o objetivo era fazer um trabalho da história do Grêmio no museu e eu resolvi participar, porque não era sobre a minha pessoa. Eu falaria de uma geração, não achei justo que eu ficasse quieta. 

Mas eu tinha uma caixinha de pandora fechada dentro de mim, e comecei a abrir. Foi punk, muito difícil, porque começaram a vir lembranças de quando parei de jogar futebol lá atrás, porque ficou uma mágoa, uma dor. Depois eu continuei jogando com as meninas, mas esse sentimento ficou guardado dentro de mim. Na época, pensei: “Acho que já fiz a minha parte, estou feliz pela liberação do futebol feminino e vou tratar de outras coisas”. Eu abri uma escola de futebol e trabalhei muito com meninos e categorias de base masculina. Não que eu não soubesse o que estava acontecendo no futebol feminino, mas fiquei distante e só voltei nessa recuperação proposta pelo Grêmio, que queria retomar a história do clube. Foi gratificante, mas relembrar disso tudo toca na gente, não tem como não tocar. Foi um espaço de 40 anos de vazio, que mexe comigo e com todas as jogadoras envolvidas.

Em 2022, teve eleição no Grêmio e o presidente me convidou para assumir o departamento de futebol feminino do clube. Foi um baita de um presente. Passaram muitas gerações e eu já estava com a minha vida toda estabilizada com outro rumo, mas pensei que eu precisava trazer aquela guriazinha de volta, porque ela vai ter condições de passar a experiência dela e de contribuir muito ainda. Eu precisei de um tempo para me preparar até assumir o cargo, em novembro de 2023. É um novo momento, uma nova abertura e me sinto capacitada para fazer, da melhor forma possível, aquilo que o clube espera e vai investir, para construirmos juntos uma nova história com pessoas que jogaram e sabem sobre o futebol feminino.

– Agora, vc está de volta ao futebol, mas em um cargo de gestão: Diretora do Departamento de Futebol Feminino. Como foi receber esse convite?

Marianita: Quando eu recebi a proposta do Grêmio por meio do presidente Alberto Guerra no início do ano, eu pedi para ele um tempo. Eu conheço futebol, curto futebol masculino e feminino, mas eu precisava mais, fiz cursos que me trouxeram um pouco mais da questão da atualidade, de eu estar mais preparada para os desafios que depois eu assumi no Grêmio como diretora do Departamento de Futebol Feminino. Tanto eu, quanto a Karina Balestra (que assumiu como diretora adjunta). Achei Fantástico, o Grêmio ter escolhido duas ex-atletas. Eu com 63 anos e a Karina, que é bem mais nova do que eu e de uma outra geração. Eu não tenho nada contra homem, mas acho que tem que ter espaço para mulheres nesses lugares, porque foram essas mulheres que sofreram, que entenderam o que era futebol, independente da época e temos a experiência de ser jogadora, o que facilita em um desafio como esse de gestão pela linguagem ser a mesma. Espero que os clubes no Brasil também busquem e deem oportunidades a essas ex-atletas que queiram trabalhar dentro do futebol feminino, porque acho que vai trazer muita riqueza à modalidade. Eu também acredito que só vamos evoluir, quando soubermos a nossa história. O Grêmio buscou a história e acabou chegando em mim, porque eu fiz parte da construção da história do clube juntamente com as outras gurias, pela liderança e pelo contexto geral. Isso é extremamente gratificante. Quando nos damos conta que temos essas referências, buscá-las nos dá condições de fazer um trabalho muito legal e muito lindo. Acho que é isso que o futebol feminino precisa por todo o Brasil.

Marianita ao lado da Karina Balestra, ex-atletas que assumiram a gestão do futebol feminino do Grêmio em 2023

– Como que você enxerga a sua função daqui para frente?

Marianita: O primeiro ponto é a mudança do time feminino para a Ulbra (Universidade Luterana do Brasil, localizada em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre), um complexo de treinamento maravilhoso que vai dar condições muito boas, desde alojamento a campo de treinamento, tudo o que precisa para um time profissional. A Ulbra fechou esse contrato com o Grêmio. Esse é o primeiro ponto e é um grande avanço, pela visibilidade e a condição que vamos dar. Depois, queremos um time extremamente competitivo e também queremos muito trabalhar a base. O Grêmio tem mostrado um histórico muito legal agora com a Ladies Cup no sub-20, o campeonato nacional no sub-17, participa da Copinha no sub-20. Conseguimos ver o fruto de trabalhos feitos antes de assumirmos, muitas potências e uma meninada que está vindo muito forte. Ter uma safra dessas é muito bom para o Brasil e, principalmente, para o Grêmio e vamos fazer as adequações necessárias no clube. Mas também temos que fazer tudo no seu tempo, porque o clube tem um valor x para  ser gasto e, mediante isso, vemos as condições do que podemos oferecer e trazer de melhor para o Grêmio. Mas eu já fico muito feliz com o quadro de profissionais que temos, com aquilo que ainda vamos crescer, vamos montar e trazer como estrutura melhor, não só em pessoas, mas com o que possa ser oferecido. São novidades que vão orgulhar os gremistas e, principalmente, o futebol feminino. Eu sempre torço que esses investimentos não sejam só no Grêmio, mas em todos os lugares para que possamos, cada vez mais, ter um nível de futebol maior e oferecer para essas garotas uma condição melhor. Sei que estamos muito distantes do futebol masculino, mas temos um caminho muito promissor. Eu prometo, juntamente com a Karina, que vamos fazer tudo funcionar da forma mais harmônica possível para obter o sucesso esperado naquilo que acreditamos que o Grêmio tem condições de alcançar, não só pela sua história, mas pela capacidade dos profissionais de fazer o clube chegar onde ele merece estar.

– Em 2023, antes do jogo contra o Corinthians, o Grêmio fez uma homenagem às jogadoras que defenderam o clube  em 1983 e tiveram papel importante no fim da proibição do futebol feminino no Brasil. Qual foi o seu sentimento de ser homenageada?

Marianita: Foi emocionante demais. Eu voltei ao Grêmio porque o clube me resgatou há dois anos atrás, mas eu também consegui observar as minhas colegas, as gurias que jogaram comigo, e o sentimento que elas tiveram foi como se tivessem recebido um abraço de reconhecimento. Por todo o Brasil, existe um sentimento de esvaziamento entre muitas mulheres que jogaram. Hoje, existe um futebol feminino, mas é fundamental que os clubes busquem essas histórias, que os clubes possam oportunizar que essas mulheres que enfrentaram o que enfrentaram, e sabemos que ficam marcas internas em cada uma delas, que elas possam se sentir acolhidas e que possam receber esse carinho. Foi o que eu senti das meninas depois da homenagem dos 40 anos que marcava a nossa primeira equipe feita no Grêmio. A maioria das gurias disse: “Agora eu estou em paz. Isso é muito forte”. Elas se sentiram reconhecidas. É um sentimento forte quando as pessoas dizem: “Tu foste importante naquilo que fizeste”. O futebol, para mim, nunca foi olhar para o meu umbigo. Ele tem uma mecânica, um contexto geral e todos do processo são importantes: quem abre a porta para ti, quem corta a grama, quem faz a comida, quem está no dia a dia contigo, preparador físico, treinador, diretor, o presidente, o clube. Eu sempre vou falar pelo plural, porque eu não acredito no futebol de uma forma individualizada.

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