“Quando eu crescer, quero ser jogadora de futebol”

Aline Gomes completou 18 anos na sua terceira Copa do Mundo em um período de menos de um ano.

Foto: Thais Magalhães/CBF

“O que você quer ser quando crescer?” 

Quando a gente é criança, ouve essa pergunta o tempo todo. No início, achava que eu queria ser veterinária. Eu amava brincar com os bichos e achava que cuidar deles seria minha vocação na vida.

Até que surgiu outro amor. 

Primeiro, era um passatempo com meu irmão na rua. Bastava a bola rolar e eu não queria mais sair dali. Meu irmão é bem mais velho, mas ele sempre foi meu principal parceiro nas aventuras. E o futebol foi nosso primeiro elo. 

Depois, quando pisei pela primeira vez na quadra (de futsal), eu já soube. “Quero ser jogadora de futebol”, eu disse pra minha professora de educação física ainda quando era pequena. Era o que eu respondia pra todo mundo que me perguntava. Eu tinha oito anos, mas já tinha entendido: a Veterinária poderia esperar, o que eu queria mesmo era jogar bola.

Nessa idade, eu jogava futsal com as meninas e já era habilidosa. O que eu mais gostava de fazer era driblar. Ia atraindo a marcadora pra linha lateral e, quando ela chegava perto, pimba: uma caneta. Ou um chapéu. Eu adorava fazer isso. 

Teve um campeonato pela escola que eu fui a artilheira. Fiz 21 gols em sete jogos. Mas o melhor de tudo: eu me divertia demais com as minhas amigas jogando. Com a bola nos pés eu me sentia em casa. Era isso que eu queria pra minha vida. 

E quando eu olho pras jogadoras que estão comigo hoje na seleção (principal), eu sei que tive muita sorte na minha jornada. Meus pais sempre me incentivaram a jogar futebol. Meu pai me levava pro ginásio três vezes por semana para os treinos, minha mãe via meus jogos, meus irmãos me acompanhavam nos campeonatos. Nunca ouvi nada sobre “futebol ser coisa de menino” na minha casa. Nunca pensei que esse não pudesse ser o “meu lugar”. Até porque, sempre foi. Desde bem pequena jogando com o meu irmão. Desde os oito anos jogando com minhas amigas na quadra da escola. Desde os 14 anos jogando nas categorias de base do clube só com meninas que já tinham os mesmos sonhos que eu. 

Acho que posso dizer que o futebol era, sim, o meu sonho. E hoje eu sei que poder dizer isso é um privilégio – e também é um sinal da transformação dos tempos. 

Com 13 anos, tive a chance de fazer a transição para o futebol de campo. Meu irmão conversou com um professor que trabalhava num clube e pediu pra me levar para um teste. Era um mini campo, na verdade, tipo fut7. Ali, comecei a jogar com os meninos e participar de campeonatos com eles. Foi aí que senti a diferença de fazer parte desse universo sendo uma menina.

Não por causa deles. Aliás, muito pelo contrário, eles faziam questão de me ter no time, faziam panela pra eu jogar com eles. Mas ouvi poucas e boas de alguns pais. 

“Entra forte nela. Não quer jogar com os meninos? Então tem que aguentar”, era um grito frequente perto do campo onde a gente disputava os torneios. Muito doido pensar isso né? Eram os pais de algumas crianças que pediam para os seus filhos baterem, entrarem forte pra me machucar. Só porque, na cabeça deles, era uma ousadia muito grande eu querer simplesmente jogar bola com os meninos. 

Lembro de um lance que eu fiz o que sempre fazia, dar o tapa na bola pra frente para ganhar na velocidade. E aí um dos filhos desses pais sem noção veio com tudo no carrinho pra me derrubar. Eu não caí na dele, pulei pra desviar, mas não consegui me manter em pé por causa do salto. Aí o pai do menino aplaudiu. “É isso aí, já que quer jogar com menino tem que aprender que é assim.”

Se ele achava que isso me faria desistir, coitado. Já falei, desde os oito anos eu sabia o que eu queria: ser jogadora de futebol. E com 14, 15 anos, eu tava avançando nesse sonho.

Foi no fim de janeiro de 2020 que fui fazer uma peneira para entrar no time da Ferroviária, um time muito tradicional do futebol feminino que tinha uma estrutura muito legal pra base – e ficava bem perto da minha cidade, Tabatinga (a distância para Araraquara é menos de 100 km). 

No teste, fui selecionada pra ficar lá mais uma semana, treinando de segunda a sexta. Aí na quarta já me falaram que eu tinha passado, que queriam assinar um contrato, pediram pra falar com meus pais, mas eu não podia deixar as outras meninas saberem. Liguei pra eles pra contar e tive que falar bem baixinho pra ninguém ouvir. Mas entre um sussurro e outro, não dava pra esconder a felicidade. 

Entrei na Ferroviária, e as meninas já estavam muito animadas porque ia ter o Paulista sub-15, e elas falavam: agora dá pra gente bater de frente com o Centro Olímpico, que era muito tradicional na categoria. Eu nem sabia direito o que elas estavam falando, mas estava mega empolgada pra disputar pela primeira vez uma competição oficial com o clube. 

A gente fez um amistoso em Limeira, eu fiz dois gols e dei quatro assistências. Joguei de ponta e fui muito bem naquele jogo. Só que aí veio a pandemia.

A gente foi pra casa no fim de semana, e eu lembro que mandei mensagem pra coordenadora porque tinham cancelado a aula na segunda, aí pedi pra chegar só no horário do treino e ficar mais um tempinho em casa. Ela me respondeu dizendo que o clube iria parar com as atividades por 15 dias. Era pra ser só duas semanas – mas só voltamos seis meses depois, em outubro. 

Minha sorte foi que, depois que voltamos, tudo começou a acontecer muito rápido pra mim. Tem três datas que guardo com muito carinho e nunca vou esquecer. A primeira é 14 de fevereiro de 2021. Foi minha primeira convocação para a seleção brasileira sub-17.

Eu tava jogando o Brasileiro sub-18 em Criciúma. Fui chamada pra falar com a coordenadora, cheguei lá e estava o time todo me dizendo “parabéns”. Eu sem entender nada. Aí a coordenadora disse: “você foi convocada para a seleção sub-17”. Fiquei tão atônita, que não consegui esboçar reação. As pessoas falavam: você não vai chorar? Mas, gente, juro, eu não conseguia, não estava entendendo o que estava acontecendo.

Aline completou 18 anos na preparação da seleção para a Copa, em Gold Coats, na Austrália | Foto: Thais Magalhães/CBF

Veio minha primeira ida à Granja Comary, e eu fiquei encantada. Todo dia mandava foto da vista do quarto pra minha família. Era aquela foto de bom dia, mas com aquele visual dos campos com as montanhas atrás em Teresópolis. Tirei também aquela foto clássica na frente do símbolo do Brasil, a quilo virou minha foto de perfil em tudo quanto é rede social. 

A segunda data marcante é 20 de junho de 2022. Foi quando fui convocada pela primeira vez pra seleção sub-20. Eu não esperava por isso, porque achava que teria que, primeiro, encerrar meu ciclo com a sub-17, pra depois ir para a sub-20. Mas aí fui chamada na convocação que o Jonas (Urias, técnico da sub-20) fez dois meses antes da Copa do Mundo da categoria. 

Lembro que eu estava num jogo com o profissional contra o Real Brasília na Fonte Luminosa. Quando acabou, fomos pra arquibancada, minha mãe estava lá e fui dar um abraço nela. Ela me disse: “você não sabe ainda, né?” E me falou que eu tinha sido convocada para a seleção sub-20. Desconfiei. Xiii, ela deve ter se confundido, deve ser a sub-17.  Aí passou uma menina por mim e falou “parabéns”. Achei que era pelo jogo. Desci para o vestiário e veio outra menina com o celular na mão me mostrando a lista. Era a sub-20 mesmo. Fiquei surpresa. 

E de repente em agosto eu estava indo para a Copa do Mundo. Vi a convocação pelo celular, tinha ido jogar com o sub-20, aí acompanhei a coletiva do Jonas e, de novo, não consegui nem chorar. Caramba, eu tinha ido só pra uma convocação, eu tinha só 16 anos, e eu tava indo pra minha primeira Copa do Mundo. 

O que aconteceu lá, aliás, foi histórico. Um ciclo com um grupo assim, igual foi esse para a Copa sub-20, acho que vai levar tempo para acontecer de novo. O grupo era muito unido, aquele lema “sempre juntas” era muito real. Eu fui numa convocação só antes do Mundial, mas elas me acolheram tanto…me senti parte daquilo muito rápido. O trabalho do Jonas com a Jéssica foi um equilíbrio muito bom, porque ele era tranquilo, e ela fazia com a gente as reuniões de mulheres, e ali ela falava tudo! Sentava com o caderninho dela, e ela fazia a gente entender realmente o nosso objetivo. Foi uma experiência muito incrível conquistar aquele bronze. 

A terceira data marcante é 20 de março de 2023. Minha primeira convocação para a seleção principal. 

Eu sempre assisto as convocações, aí eu tava no quarto e coloquei no tablet pra assistir e fiquei mexendo no celular. Estava atrasado. Quando fui ver, a Pia já estava respondendo as perguntas. Fui voltar pra ouvir a lista e, de repente, meu celular já tava apitando, mil mensagens, bandeirinha do Brasil, pensei…”será que eu fui convocada?”

Voltei o vídeo na parte das atacantes. Mas ela não falou meu nome. E o whatsapp seguia bombando, eu sem entender porquê. Resolvi voltar pro início da lista, desde as goleiras. E, nas meio-campistas, tava lá: Aline Gomes. Outra vez que eu não consegui esboçar reação, de tanta felicidade. 

Fui para a Finalíssima, em Wembley. Eu não estava acreditando, sério. É, disparado, o estádio mais lindo que eu já fui e o máximo de pessoas que já vi juntas num mesmo lugar pra ver 22 mulheres correndo atrás de uma bola. Foi uma loucura. 

Eu não fui relacionada para ir para o banco, porque éramos 26, e como era um torneio oficial, só podiam 23 relacionadas. Fiquei fora, mas não mudou nada pra mim, eu tava tão feliz…eu tava na seleção principal ao lado das mulheres que sempre vi na televisão, em vídeo no youtube… e agora eu tava ali com elas em Wembley com 83 mil pessoas! 

Veio o jogo contra a Alemanha. Nesse, eu pude ficar no banco – por sinal, maravilhoso aquele banco, ele esquentava de tempos em tempos, soltava um arzinho quente…naquele frio, era uma maravilha! 

Bom, durante o jogo, eu estava tranquila, a gente ganhando, tudo perfeito Aí pediram pra eu aquecer. Será que eu iria entrar?

Aline Gomes

Depois o Thiago (da comissão técnica da Pia) veio me falar dos posicionamentos que eu ia ficar em bola parada e tal. 

Meu Deus, vou entrar no jogo, o que eu faço?

Enquanto isso, tentava pensar: calma, tá tudo bem, relaxa, é só jogar futebol – kkkrying.

Mas deu certo, entrei no jogo pra fazer a segunda atacante ali da frente. Eu falei pra mim mesma: na dúvida, vou correr pra todo canto, vou pedir a bola pras meninas e vou correr. Só me soltei, fingi que era um jogo tranquilo, um jogo normal.

Acabou, a gente venceu, e o sentimento ali era uma energia muito boa. A gente sentia que estava preparada para jogar a Copa do Mundo.

Eu não esperava, mas essa minha curta carreira teria já uma quarta data marcante. 27 de junho de 2023.

Primeiro vou começar falando que foi a primeira vez que chorei numa convocação, foi imediato e foi espontâneo. Acho que agora eu tinha a dimensão do que estava acontecendo. 

Treinei de manhã, e não via a hora de ouvir o anúncio da lista. Chegava o Natal, mas não chegava 4 da tarde (horário da convocação).  

A gente assistiu juntas (as jogadoras da Ferroviária), e aí quando não teve o nome da Luciana, foi um baque. Foi muito triste, porque a gente esperava muito que ela fosse. Ficou um clima meio pra baixo, mas seguimos, porque ainda poderia ter eu ou Ingryd na lista. Passaram as meias, passaram as atacantes, nada do meu nome. Mas ainda tinha esperança de estar nas suplentes. Aqui, vale o parêntese.

Hoje, as pessoas não me chamam mais de Aline, né. É Aline Gomes ou só Gomes. Eis que a Pia fala “Aline”. Ai meu Deus. Fiquei esperando o Gomes que não veio. Aí quando ela soltou: “Ferroviária”, comecei a chorar na hora, não deu pra segurar.

Cara, eu tô indo pra Copa do Mundo! Vai ser a terceira Copa do Mundo que eu vou em um período de um ano, olha que loucura. Fui para a Copa Sub-20 em agosto do ano passado, para a Copa Sub-17 em outubro, e agora tô na Austrália com a chance de viver a última Copa do Mundo da Marta. 

Aline ao lado da Marta com a seleção na Austrália | Foto: Thais Magalhães/CBF

Falando em Marta, vocês acreditam que eu ganhei PARABÉNS dela? Eu tava contando os dias para poder finalmente conhecê-la, tocar nela, ver que ela é real…cara, é a Marta. É a maior referência do futebol feminino no mundo. É A RAINHA! E eu passei meu aniversário de 18 anos TREINANDO com ela. Não só com ela, né, com a Debinha, com a Tamires, com a Adriana…Sério, às vezes eu nem consigo acreditar no que estou vivendo. 

Mas não é que eu não tenha consciência disso. Apesar de ser muito nova, eu já sei que sou inspiração pra muita gente. Vira e mexe recebo mensagem no instagram de meninas mais novas dizendo: “você é uma inspiração”, “quero um dia poder ser como você”. Até arrepia falar disso. Não carrego como um peso, mas como uma responsabilidade. Eu treino todos os dias pra ser melhor e mostrar pras pessoas que é possível, que elas não precisam desistir dos seus sonhos.

Eu sonhei em ser uma jogadora de futebol. Hoje eu tô na Copa do Mundo. 

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