As mulheres derrubaram o treinador condenado. Os homens o abraçaram.

Foto: Matheus Tahan / W9 Press / Estadão Conteúdo

Na noite de quarta-feira (26), o Corinthians avançou para as oitavas de final da Copa do Brasil com direito a gol marcado aos 48 minutos do segundo tempo e vitória contra o Remo nas cobranças de pênaltis. No banco de reservas, o técnico Cuca – condenado a 15 meses de prisão por estupro de uma menina de 13 anos, em Berna, na Suíça, em 1987 – recebeu um abraço coletivo de seus atletas, dedicando a ele a vitória suada dentro de campo. Minutos depois, o treinador pediu demissão do cargo.

Desde o momento da chegada de Cuca ao comando do time paulista, as mulheres tomaram à frente dos protestos. Afinal, um clube que carrega em seu DNA a luta em favor da democracia no país e que levanta a bandeira “Respeita As Minas”, em apoio ao time feminino, tem o dever de se posicionar em casos de violência contra a mulher.

As atletas do time feminino expuseram sua opinião. “Respeita as minas não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso compartilhado”, escreveram em suas redes sociais.

Na noite de ontem, os homens do time também deixaram claro seu posicionamento: apoio total e irrestrito ao treinador.

Até quando os homens fugirão do debate?

Enquanto mulheres são violentadas, lidam com os traumas dos abusos que sofrem e lutam por uma sociedade menos machista, os homens se isentam desse papel e, ainda por cima, se protegem.

A jornalista Milly Lacombe foi certeira ao opinar sobre o assunto em sua coluna no Uol. “Homens se agregam para celebrar as próprias masculinidades e, diante de um corpo feminino, prová-la aos amigos. (…) Juntar uns amigos e abusar de um corpo feminino – embriagado ou não – é ritual de masculinidade. A masculinidade hegemônica não vê nisso um problema, apenas um gesto de validação. É tão importante fazer quanto contar. Muitos devem fazer contra a própria vontade e por pertencimento. Assim se ganha capital dentro desse universo de masculinidade tóxica e violenta. (…) Para uma mulher, o mundo é outro. A chance de sofrermos abusos é maior do que a de não sofrermos. E, uma vez vítimas de violência sexual, nossas vidas estão para sempre alteradas. Não se recupera disso. A gente segue, mas não se recupera. O que para homens é uma farra, para mulheres é uma experiência de morte em vida.”

Após a partida contra o Remo, Roger Guedes, atacante do Corinthians, deu uma entrevista defendendo Cuca, mesmo afirmando não ter conhecimento nenhum sobre o processo judicial. Ainda assim, o jogador inocentou o treinador (que já foi condenado pela justiça) e, ao mesmo tempo, criticou a postura de uma mulher jornalista que está falando sobre o caso da maneira que ele deve ser tratado.

Palavras de Roger Guedes: “Muito difícil ouvir que seu pai é estuprador. E ele não é. Ele vai provar a inocência dele. Estou fechado com ele, todo mundo está com ele, aquele abraço foi de coração, a gente sabe o quanto ele sofreu. Ver o seu treinador chorar na sua frente é difícil. Eu disse que queria que ele ficasse, mas para não vê-lo bem na parte humana falei para se cuidar. Ontem mesmo fiquei uma hora na sala dele. O cara chorar na sua frente é f…. Infelizmente, vivemos num momento em que as pessoas julgam, colocam muito o dedo e não deixam a pessoa provar sua inocência. As pessoas precisam rever as falas. A Ana Thaís (Matos) aí, fala bastante. Particularmente em mim ela bate bastante, sem motivo algum. Eu citei a Ana Thaís porque ela é uma das pessoas que atacou muito o Cuca. Ela tem provas para falar dele? Não tem provas para falar dele. Então, ela quer julgar o quê? Com certeza ela já errou um monte de vezes na vida também.”

É de se perguntar em que mundo essa pessoa está vivendo. Parece totalmente desconectado da realidade e dos fatos já expostos. Além de não se colocar no lugar da vítima – que na época do estupro tinha apenas 13 anos – ele isenta o culpado do crime pelo qual já foi julgado (com a apresentação de provas, inclusive) e ainda incita o ódio a uma mulher que tem feito seu trabalho como deve ser feito: trazendo luz aos fatos e propondo o debate.

O abraço coletivo dos atletas em Cuca após a vitória do time deixa evidente o forte pacto da masculinidade, onde homens defendem homens em qualquer situação. Esse ato ignora todas as mulheres que torcem pelo Corinthians – que, segundo Ibope de 2022, representam 53% da torcida alvinegra – e que mostraram seus rostos em protestos contundentes ao longo da semana. Elas, sim, estão do lado certo da história.

A jornalista Renata Mendonça também foi uma voz atuante durante a semana, cobrando dos homens uma postura menos omissa em casos de abuso contra a mulher. “Enquanto homens não se incomodarem com mulheres em situações de abuso, a gente não vai mudar nada nessa sociedade que, infelizmente, mulheres são abusadas todos os dias. E é por isso que, agora que temos voz, estamos falando todos os dias e não vamos cansar de falar”, declarou, em participação no programa Redação Sportv.

Homens, quando acusados de violência contra a mulher, sempre usam a frase clichê para tentar se inocentar “eu tenho mãe, tenho filhas”. Essa justificativa não tem lógica nenhuma, afinal, segundo Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos em 2021, totalizando 56,1 mil casos de violência sexual contra mulheres. Ou seja, mesmo sendo filhos e pais de mulheres, eles continuam as estuprando.

E o futebol é parte do problema. Levantamento do jornal Folha de S. Paulo aponta que, a cada cinco dias, uma mulher denunciou um jogador de futebol por crimes de violência doméstica ou sexual no estado de São Paulo, em 2021. Isso considerando apenas casos que viraram denúncias formais.

Para trazer um dado ainda mais alarmante: segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, no ano de 2021, o Brasil teve 45.994 casos de estupro de vulnerável – e 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos. Isso significa 97 casos de estupro contra meninas menores de 13 anos por dia, 4 crimes abomináveis como esse por hora.

E, assim, em mais uma noite de futebol, vimos a passividade de homens diante de casos de abusos, enquanto as mulheres se veem na angústia de gritar, protestar e se incomodar. Mas essa deveria ser uma luta coletiva, de toda a sociedade. Os homens também precisam tomar atitudes e não tolerar violência contra mulheres. Enquanto eles não se tornarem aliados nessa causa, essa realidade violenta não mudará.

Refletir é necessário

Em todas suas entrevistas sobre o assunto, Cuca afirma que estava no quarto de hotel em que a vítima foi abusada por quatro homens, mas se declara inocente. Na apresentação como novo técnico do Corinthians, na sexta-feira (21), Cuca falou sobre o caso de estupro, ocorrido em 1987, dois anos antes da condenação. “Eu tinha 23 anos na época, nós iríamos jogar uma partida e pouco antes subiu uma menina para o quarto que eu estava com outros jogadores. Essa foi minha participação nesse caso, sou totalmente inocente, não fiz nada. As pessoas falam que houve um estupro, houve um ato sexual a um vulnerável, isso foi a pena que foi dada. A gente vê um monte de coisas falando inverdades, chegam a ofender”, declarou.

Durante essa entrevista, o treinador ainda disse que a vítima nunca o reconheceu como participante no crime. Mas, na tarde da última testa terça-feira (25), o jornalista Adriano Wilkson do UOL Esporte, publicou uma entrevista com o advogado Willi Egloff, que representou a menina de 13 anos no processo contra os jogadores do Grêmio. Ele afirmou que a vítima reconheceu o treinador como participante do crime e que o sêmen dele foi usado como prova.

+ PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE O CASO CUCA – E POR QUE ELE NOS INCOMODA TANTO

Na época do crime, o assunto ganhou pouco destaque na mídia e, nas vezes em que foi abordado, trataram os jogadores como vítimas da situação ou tentaram justificar a conduta dos quatro brasileiros. Mas olhando para o caso no presente momento, a conclusão é de que não se pode mudar o passado, mas o presente e o futuro, sim. A postura de Cuca em se isentar de um crime cometido não se sustenta diante dos fatos já apresentados. Estar em um quarto onde acontece um estupro de uma menina de 13 anos sem tentar fazer nada para impedir é ser parte desse acontecimento – e conivente com ele.

Inúmeras mulheres convivem com situações de abuso ao longo da vida. Mariana Pereira, jornalista da ESPN Brasil, também se posicionou sobre a importância de ver homens assumindo seus erros e se esforçando para tornar o mundo um lugar menos penoso para nós, mulheres.

“Por que que eu, Mariana, mulher, preciso revisitar todos os dias os abusos e assédios que já sofri e sigo sofrendo para, então, construir uma sociedade melhor, e quem fez parte de um processo condenatório não pode lidar com seus próprios erros e fazer disso um debate amplo e profundo também com o intuito de criar um lugar mais seguro para as mulheres? A justiça fez/faz o seu papel, e nós fazemos o nosso. Vamos sim debater, quer queiram, quer não. Por nós, por elas e pelas próximas!”, defendeu a jornalista.

A sociedade não aceita mais essa passividade masculina. É feio, é nojento e não há mais pano pra passar para tantos homens que se recolhem, se vitimizam e não enfrentam seus traumas e erros. Não há ser humano no mundo isento de culpas, os protestos não têm o objetivo de ver Cuca preso (até porque o crime já prescreveu) ou isolado, sem possibilidade de trabalhar ou viver a vida de maneira decente. Todos nós já erramos nessa vida e o mínimo que se pode exigir, nesse caso, é que o treinador possa revisitar essa história e falar de forma transparente sobre a real versão dos fatos, porque o que parece é que ele se apega apenas na história criada pela sua defesa para o absolver.

A verdade é que em nenhum momento Cuca mencionou a palavra arrependimento ou ensaiou um pedido de desculpas. Ele também não se compadeceu com a vítima, não manifestou solidariedade à ela. Talvez porque ele ache que não é necessário se redimir – como disse na apresentação: “Não devo desculpas à sociedade porque eu não fiz nada” -, e aí cabe a nós aceitar esse fato e cabe a ele lidar com as consequências de sua postura.

A cena dos homens abraçando Cuca após o término da partida só confirma o tamanho do machismo que ronda o futebol por mais de cem anos. Esse esporte que TENTOU proibir mulheres de jogar bola e também as afastou da cobertura jornalística. Por muito tempo eles conseguiram, mas de agora em diante, elas não vão mais sucumbir.

Mulheres entenderam que não são obrigadas a se calar e conviver com homens que as violentam. Torcedoras têm consciência e sabem que não devem compactuar com escolhas que as machucam e nem bater palma para abusador nos estádios. Isso, com toda certeza, é postura de mulher: das filhas, das mães e de todo tipo de pessoa do gênero feminino que veste a camisa do Corinthians com orgulho.

Mesmo excluídas e desencorajadas a amar esse esporte, elas têm consciência de seu papel dentro do futebol e estão tentando ensinar os homens a serem melhores. Mais do que abraços, elas merecem aplausos.

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