Perguntas e respostas sobre o caso Cuca – e por que ele nos incomoda tanto

Por que só agora o debate sobre Cuca ganhou essa dimensão se a condenação foi há 34 anos? 

A sociedade mudou desde 1989, quando Alexi Stival, o Cuca, Eduardo Hamester e Henrique Etges foram condenados a 15 meses de prisão por estupro contra uma menina de 13 anos, em Berna, na Suíça. Fernando Castoldi foi considerado cúmplice e condenado a três meses. O caso ocorreu dois anos antes, em 1987. Segundo a investigação da polícia suíça, a adolescente se dirigiu ao quarto de hotel dos então jogadores do Grêmio acompanhada de amigos. Os atletas teriam colocado os amigos da garota para fora do quarto e abusado sexualmente dela.

Diante da denúncia da vítima, os jogadores ficaram detidos por 30 dias na Suíça, onde a legislação proibia a prática de ato sexual com menores de 16 anos. Após o ocorrido, a delegação gremista continuou a excursão pela Europa para jogar a Copa Phillips, enquanto o caso ganhou repercussão na imprensa esportiva do Brasil como “Escândalo de Berna”. Os noticiários do período, no entanto, tratavam os jogadores como vítimas da situação ou tentavam justificar a conduta dos quatro brasileiros. 

Rui Martins publicou no Estadão de 8 de agosto de 1987 que a hipótese da defesa dos atletas – de que não houve sexo não-consensual – era provavelmente verdadeira. No jornal Zero Hora, o colunista Paulo Santana escreveu que “um deslize de ordem sexual em que, visivelmente, colaborou para a consumação a conduta, no mínimo, quase conivente da chamada vítima, não deve servir de amparo a uma decisão drástica”. Após um mês detidos, os jogadores foram soltos sob fiança, em agosto de 1987, e recebidos no Brasil com festa e alívio. Dois anos depois, eles foram condenados na Suíça. Como o Brasil não extradita seus cidadãos, eles nunca cumpriram a pena.

Esses relatos nos jornais são mostras de como a sociedade e a mídia brasileira lidavam com casos de agressão contra a mulher na época. Para dar uma dimensão histórica, o “Escândalo de Berna” ocorreu apenas 10 anos após as mulheres terem conquistado o direito ao divórcio no Brasil, assegurado em 1977. A 1ª Delegacia da Mulher do país havia sido criada apenas dois anos antes desse caso de violência protagonizado pelos jogadores do Grêmio. E só em 1988 a nova Constituição brasileira reconheceu a igualdade das mulheres perante os homens.

No século 21, a criação da Lei Maria da Penha (2006), da Lei do Feminicídio (2015) e de uma lei contra a importunação sexual (2018) evidenciam o crescimento de legislações com objetivo de proteger a mulher. O debate sobre a violência contra o gênero feminino vem ganhando espaço muito recentemente na sociedade brasileira e, na grande maioria das vezes, por iniciativa das próprias mulheres, que passaram a ocupar espaços antes extremamente limitados aos homens.

Até 2018, por exemplo, não havia mulheres narrando e comentando jogos de futebol em todas as emissoras de TV do Brasil. Ter uma narradora de futebol era, inclusive, raridade no país! Na Copa do Mundo daquele ano, sediada na Rússia, a Fox fez transmissões 100% femininas, mas paralelas às exibições principais do torneio. Em contraste, no último domingo (23), a estreia de Cuca no comando do Corinthians contra o Goiás contou com a narradora Renata Silveira e a comentarista Renata Mendonça na equipe de transmissão, pelo Premiere. 

Durante a exibição da partida, as Renatas fizeram questão de abordar o caso envolvendo Cuca e ressaltaram as manifestações de protesto de torcedores e torcedoras do Corinthians. Se fosse há cinco anos, possivelmente o tema passaria batido, como ocorreu por mais de três décadas, já que não havia mulheres narrando ou comentando jogos na Globo e no Sportv. Apenas nos últimos anos, a participação ativa das mulheres nas coberturas esportivas vem sendo ampliada de forma significativa. Nas bancadas de programas de televisão, então, é ainda mais recente! 

Mais presentes nesses espaços, elas passam a ecoar suas demandas sob um olhar mais atento e empático aos casos de violência que sofrem na própria pele. Segundo Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos em 2021, totalizando 56,1 mil casos de violência sexual contra mulheres. E o futebol é parte do problema. Levantamento do jornal Folha de S. Paulo aponta que, a cada cinco dias, uma mulher denunciou um jogador de futebol por crimes de violência doméstica ou sexual no estado de São Paulo, em 2021. Isso considerando apenas casos que viraram denúncias formais.

Por que tão poucos homens se incomodam e se pronunciam sobre casos de violência contra mulheres?

Quando o então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Rogério Caboclo, foi afastado da entidade por denúncias de assédio moral e sexual, em junho de 2021, a seleção feminina entrou em campo para um amistoso contra a Rússia com uma faixa de protesto escrita “Assédio não”. As jogadoras também divulgaram um manifesto conjunto nas redes sociais, afirmando que “luta por respeito e igualdade vai além dos gramados” e que os inúmeros abusos cometidos no país contra mulheres “vão contra os nossos princípios de igualdade e construção de um mundo mais justo”. A seleção masculina não se pronunciou. 

Seleção Feminina em manifestação após denúncia de assédio contra ex-presidente da CBF | Foto: Richard Callis/SPP/CBF

Em 2017, quando Robinho, então jogador do Atlético-MG, foi condenado em primeira instância pela justiça italiana a nove anos de prisão por estupro coletivo contra uma albanesa de 22 anos, cometido em Milão em 2013, a primeira reação contrária também foi protagonizada por mulheres. “Um condenado por estupro jogando no Galo é uma violência contra todas as mulheres” e “Galo, seu silêncio é violento! Não aceitaremos estupradores!” estamparam as faixas de protesto do grupo “Feministas do Galo”, em frente à sede. 

Do lado do clube, nenhuma nota oficial ou palavra do então presidente Daniel Nepomuceno, tão pouco um pronunciamento público de Robinho, que se restringiu a declarar inocência em comunicado elaborado por sua defesa. Pelo contrário, o Atlético-MG tentou negociar a renovação do jogador, que também recebeu proposta do Santos, mesmo em meio àquele contexto. Mas só em 2020 o Santos anunciou Robinho como reforço, o que não se concretizou devido à pressão de patrocinadores após a publicação da gravação de conversas do jogador com amigos sobre o crime. O ex-atacante foi condenado em última instância, em janeiro de 2022.

Agora, quando o envolvimento do Cuca em um estupro voltou à tona, vemos as jogadoras do Corinthians se posicionarem e as jornalistas se manifestarem, enquanto a maioria dos homens apenas assiste. De novo, vemos a passividade deles em casos de abusos, enquanto as mulheres se veem na angústia de gritar, protestar e se incomodar. Mas essa é uma luta coletiva, de toda a sociedade. Os homens também precisam tomar atitudes e não tolerar violência contra mulheres. Enquanto os homens não se tornarem aliados nessa causa, essa realidade violenta não mudará.

Qual a relação do Respeita as Minas com o caso Cuca? 

“‘Respeita As Minas’ não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso compartilhado”, ressaltaram as jogadoras e a comissão técnica do Corinthians Feminino, em nota compartilhada nas redes sociais durante a partida em que Cuca estreou no comando do time masculino, contra o Goiás, na noite de domingo (23), pelo Brasileirão. A manifestação ainda dizia: “Estar em um clube democrático significa que podemos usar a nossa voz, por vezes de forma pública, por vezes nos bastidores. (…) Ser Corinthians, significa viver e lutar por direitos todos os dias”. 

A frase “Respeita As Minas” virou uma espécie de mantra evocada na luta pelos direitos femininos. Ele foi abraçado por campanhas de conscientização em diversos ambientes, desde festas de carnaval a estádios de futebol. No esporte mais popular do Brasil, esse costuma ser um slogan bastante usado por clubes, principalmente em campanhas de marketing no Dia da Mulher. Mas, como bem lembrou as jogadoras do Corinthians, o Respeita as Mina não é pra ser dito da boca pra fora.

Se esse é “um compromisso compartilhado”, não vale apenas para o 8 de março. Afinal, o ano inteiro mulheres são vítimas de violência no Brasil. Quem respeita as mina não promove ofensas machistas, homofóbicas e racistas, desde xingamentos dirigidos às árbitras (“vagabunda, não entende nada”, “volta pra cozinha”) até às atletas (“maria macho, não sabe chutar uma bola”). Quem respeita as mina dá voz e visibilidade a elas, em vez de diminuir a importância das causas pelas quais acreditam e lutam. Quem respeita as minas não se omite quando é preciso se posicionar e agir contra agressores ou atitudes de violência contra mulher. 


Quais são os problemas da fala do presidente do Corinthians, Duílio Monteiro Alves, sobre o protesto do time feminino? 

Após o Corinthians Feminino se manifestar nas redes sociais contra a contratação de Cuca para o comando do time masculino, o presidente do clube, Duílio Monteiro Alves, comentou sobre o protesto, na noite de domingo (23): “O Corinthians é um clube democrático, é o clube do Respeita As Minas, e elas têm todo o direito de se posicionar. Estive com elas, conversamos por mais de 1h30, explicamos e elas têm todo o direito de colocar a posição delas. Dá para entender como um protesto, mas também como um reforço com o que é o Corinthians, que é o time dos respeito as minas. Vamos continuar assim”.

Primeiro, vale reforçar que a manifestação das jogadoras e da comissão técnica do Corinthians Feminino foi, sim, um protesto. Não é apenas que “dá para entender como um protesto”, como declarou Duilio. Essa pode até parecer uma afirmação desnecessária, mas torna-se importante porque o dirigente acabou desqualificando a manifestação ao dizer que também dá para entendê-la como “um reforço com o que é o Corinthians, que é o time do respeito às minas”. Afinal, o respeito que “As Minas” querem começa pelo direito à vida, sem o medo constante de serem violentadas.

O segundo ponto é que a fala de Duílio parece ignorar a problematização que os torcedores e a imprensa trouxeram com a contratação de Cuca, cenário que o próprio dirigente previa antes mesmo de anunciá-lo como novo treinador. Uma postura mais coerente com o cargo de presidência que exerce no “Time da Democracia” é estar aberto ao diálogo para compreender a motivação de tamanha revolta, além de estar disposto a compartilhar os argumentos que julgar prudente para tentar chegar à uma decisão menos autoritária sobre um cargo tão importante e de tamanho status como o de técnico dentro de um clube de futebol. 

Cuca não vai poder mais trabalhar em nenhum clube?

Cuca e os outro três jogadores do Grêmio nunca pagaram a pena de 15 meses de prisão por estupro coletivo de uma menina de 13 anos, que foram condenados pela justiça suíça há 34 anos. Como o Brasil não extradita seus cidadãos e eles não voltaram mais ao país, eles nunca cumpriram a pena, que prescreveu após 15 anos. Mais do que uma dívida à justiça, que oficialmente não existe mais, o atual treinador é cobrado por parte da sociedade principalmente pela postura atual sobre a conduta que provocou sua condenação no passado.

Na apresentação como novo técnico do Corinthians, na sexta-feira (21), Cuca falou sobre o caso de estupro, ocorrido em 1987, dois anos antes da condenação. “Eu tinha 23 anos na época, nós iríamos jogar uma partida e pouco antes subiu uma menina para o quarto que eu estava com outros jogadores. Essa foi minha participação nesse caso, sou totalmente inocente, não fiz nada. As pessoas falam que houve um estupro, houve um ato sexual a um vulnerável, isso foi a pena que foi dada. A gente vê um monte de coisas falando inverdades, chegam a ofender”, declarou.

Na Suíça, Cuca e outros dois jogadores foram condenados em 1989 por “atentado ao pudor com uso de violência”. Hoje, porém, a fala do treinador de que houve “ato sexual a um vulnerável” seria caracterizado como estupro de vulnerável no Brasil. A Lei nº 12.015, de 2009, define estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Já o estupro de vulnerável é caracterizado pelo Código Penal Brasileiro por uma relação de poder em três circunstâncias: na qual a vítima é menor de 14 anos, portanto ainda não completou o seu desenvolvimento físico e psíquico; é alienada mental; ou que não possa oferecer resistência.

Na época em que o crime aconteceu, em 1987, o tema da violência contra mulheres não era debatido nem entendido como é hoje. O próprio Cuca declarou que “estamos vivendo um mundo melhor, que a mulher tem uma autodefesa muito maior e tem que ser cada vez maior e eu quero fazer parte disso”. Mas para fazer realmente parte disso, é preciso primeiro se inteirar do assunto. Não basta dizer: “Eu sou pai, eu sou avô, sou marido, sou filho. Quero que elas estejam cada vez mais protegidas, quero poder ajudar”. Até porque 8 em cada 10 crimes de feminicídio registrados em 2022 foram cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima, segundo o Anuário de Segurança Pública do FBSP, ou seja, por homens que têm ou tiveram família, namorada e estão inseridos na sociedade.

Na coletiva de apresentação ao Corinthians, Cuca também foi perguntado se ele tinha algum arrependimento daquele dia. “Se eu pudesse fazer alguma coisa diferente. Mas eu era um piá, um menino, um ‘tiquinho’ assim para aquela grandeza que era o Grêmio, aqueles caras baitas jogadores que tinha. Eu ficava no meu cantinho, eu ia fazer o que de diferente? Eu não vi nada, tinha um jogo, não lembro contra quem (…). Não tem o que fazer”, respondeu o treinador.

Cuca lembrar que tinha 23 anos pode até caracteriza-lo como jovem naquele ano, mas ele já era maior de idade e, portanto, tinha todas as condições de saber que é crime ter relações sexuais com uma menina de 13 anos. Ainda que não tenha ele próprio realizado o ato sexual – como Cuca afirma, diferentemente do entendimento da justiça suíça que o condenou –, o esperado de alguém que se preocupa verdadeiramente com as mulheres, a partir da reflexão dos dias de hoje, é que respondesse que se arrepende do passado e que tentaria coibir qualquer ação de violência contra a menina.

“Se eu pudesse não estar no quarto, eu não estaria, mas eu estava lá enquanto as coisas aconteceram e eu não fiz nada, se é que aconteceram. O quarto é um ‘L’, você não sabe, você não vê. Minha parte é essa. Nós não estamos em um momento em que a palavra mais importante é da mulher? A palavra da mulher não é que o Cuca não esteve lá? Não falou sobre o Cuca: ‘Não conheço, não vi, não tava’”, reforçou o treinador, sobre a ação sexual, apesar de confirmar que ele esteve no quarto durante o período em que a violência aconteceu.

Cuca ainda negou que deva um pedido de desculpas para a sociedade: “Por que eu devo uma desculpa? Se eu não fiz nada, por quê? Dois anos e meio depois eu fui jogar ali do lado, na Espanha. Nunca teve consequência nenhuma. A vida passou 37 anos, nos últimos dois ou três ela mudou de uma forma melhor, essa causa que está existindo eu quero abraçar também até por proteção da minha família, das minhas meninas”. 

O tradicional jornal suíço Der Bund publicou em 1989, ano do julgamento dos jogadores do Grêmio, que a perícia da investigação do caso encontrou vestígios de esperma de Cuca e de outro jogador no corpo da vítima. “O relatório forense posteriormente mostrou vestígios de esperma dos dois jogadores Alexi (o Cuca) e Eduardo no corpo da menina”, diz trecho da matéria publicada em 16 de agosto do ano da condenação.

Por fim, o treinador poderia ter uma atitude mais empática e transparente com os torcedores, ainda que estejam se manifestando contra a sua contratação: “Do fundo do meu coração, pode ter protesto, pode ter o que for, não é maior que minha vontade de estar aqui”, falou Cuca, durante a entrevista coletiva. “Me chateia, me magoa, mas quero passar para eles que a real ideia minha é que estou junto com eles. Que eu sou inocente, não devo nada a justiça, nada para ninguém, sou uma pessoa decente acima de tudo”, finalizou o treinador.

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