A médica que abriu portas para mulheres no esporte e foi preterida pelo COB

Ana Carolina Ramos e Côrte, de 43 anos, faz história sem parar pra dimensionar com exatidão a grandiosidade das portas que vem abrindo. Ela não apenas realizou o sonho de criança de ser médica, como tornou-se a primeira mulher dessa área a atuar em um clube de futebol masculino da primeira divisão no Brasil, em 2018. E ainda fez isso no time do coração: o Corinthians. Ao mesmo tempo, ela traçou uma trajetória de sucesso no Comitê Olímpico do Brasil (COB), onde ingressou para um treinamento com a ginástica artística em 2013; e terminou como gerente médica da entidade, posto que assumiu em 2017.

Em 28 de fevereiro, porém, Ana Carolina encerrou uma história de 10 anos no COB. A profissional com doutorado e pós-doutorado em Medicina do Exercício do Esporte pediu demissão após ser anunciada a promoção de Christian Trajano, então gerente de Educação e Prevenção ao Doping, ao cargo de gerente executivo de Ciências do Esporte.

“A gota d’água foi quando colocaram um médico que não tem formação nenhuma em medicina do esporte acima de mim, como meu chefe, eu teria que responder a ele. Um médico que nunca atendeu um atleta, nunca trabalhou com esporte a não ser na área de doping, isso sim é a área dele, mas eu com toda essa trajetória ficou difícil. Eu tenho meus princípios e valores e foi tomada a minha decisão de sair.”

Ana Carolina Corte é médica de atletas renomados, como o campeão olímpico Isaquias Queiroz

Mas as insatisfações começaram um ano antes, quando o COB implementou uma reestruturação da área médica. O presidente, Paulo Wanderley, dividiu a área de esportes em duas: uma dedicada ao alto rendimento e outra às ciências do esporte junto do desenvolvimento de atletas de base. Ana Carolina, que atuava com o alto rendimento, saiu da Diretoria de Esportes para integrar essa segunda área, da Ciência do Esporte, criada na reestruturação.

“Isso me afastou demais do que eu entendo ser a coisa mais importante: a minha relação com os atletas de alto rendimento”, explica. Mas a médica foi administrando as mudanças e tentando dar um jeitinho nos últimos 11 meses. “Só que, de um tempo para cá, as coisas foram ficando muito difíceis por conta de desrespeito não só a mim, mas a toda classe médica, de ter um diretor que às vezes assumiu uma conduta técnica minha e ele vinha com o que ele queria que acontecesse, da forma como queria”, lamenta a chefe da equipe médica do COB.

Ana Carolina liderava uma equipe de quase 30 médicos entre fixos e eventuais. A saída causou grande comoção entre os colegas das confederações esportivas, a ponto de eles promoverem um abaixo assinado reivindicando sua permanência. Para Ana Carolina, o sentimento é que os médicos do esporte, que trabalham com os atletas, precisam ser valorizados.

“Todas as áreas dentro da medicina esportiva tiveram significativa melhora com grande satisfação dos atletas, dirigentes e colaboradores possibilitando um ambiente agradável, estimulando o trabalho interdisciplinar, resolução dos casos, crescimento individual da equipe de saúde com a realização de cursos e reuniões periódicas”, ressalta o manifesto, que classificou a gestão de Ana Carolina como um “divisor de águas” no COB.

Na última semana, o médico ortopedista Rodrigo Sasson, de 35 anos, foi anunciado como o novo supervisor da área médica da entidade responsável por gerir os esportes olímpicos do Brasil.

O abaixo-assinado disponibilizado na internet conta com 375 assinaturas e ganhou adesão também entre treinadores e atletas. Isso se deve também à proximidade que o médico do esporte tem com os esportistas, pois essa é a especialização que cuida do dia a dia deles.

“Um atleta tem um coração maior do que uma pessoa normal, uma frequência cardíaca diferente, não pode tomar algumas medicações por ser doping, o gasto energético é tão grande que a alimentação tem de ser diferente e incluir uma eventual suplementação, então tem todo um contexto por trás”, explica Ana Carolina. Ainda mais no alto rendimento, em que o atleta trabalha no limite.

Ana Carolina trabalha para que os atletas tenham uma saúde supra ótima – esse é o termo mesmo, usado inclusive em artigos científicos. “Uma saúde ótima é a minha, que faço atividade física regular com promoção de saúde, mas eles têm que ter uma saúde além da ótima. Assim, eu faço com que eles se mantenham treinando para performar bem”, pontua. O grande objetivo da médica do esporte é que os atletas estejam sempre à disposição do treinador, cuidando tanto da saúde clínica e musculoesquelética, quanto prevenindo lesões e doenças ou tratando doenças. Afinal, rendimento e alta performance vêm dos treinamentos. 

Sucesso nas Olimpíadas em meio à pandemia 

Chefiada pela médica Ana Carolina, delegação do Brasil não teve nenhum teste de covid positivo em Tóquio

O reconhecimento do trabalho que a médica Ana Carolina vinha desempenhando também pode ser medido pelo sucesso do maior desafio que teve no COB: planejar toda a operação da equipe do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio, disputados em julho de 2021, em meio à pandemia de covid-19. Aquele ainda era um período em que as informações sobre o vírus eram poucas e, muitas vezes, conflituosas.

A estratégia foi trazer as infectologistas referências Beatriz Perondi e Ho Ye Lin para integrar a comissão de planejamento. “Além da área médica, precisávamos organizar todo o processo de operações. Fazíamos reuniões semanais de 2h30 a 3 horas durante 6 meses para ajudar na operação de Tóquio”, conta Ana Carolina. A missão foi um grande sucesso! Foram mais de 21 mil testes de covid-19 e nenhum resultado positivo. A delegação contou com 750 pessoas, em que cada uma ficou uma média de 30 dias no Japão. 

“Foi um resultado incrível e estou cansada até hoje. Todos os dias, às cinco horas da tarde, chegavam os resultados dos testes no meu e-mail e eu pensava: hoje não. Era menos um dia! Toso o esforço valeu a pena”, comemora. 

Inspiração também no Corinthians

Apesar do jeito tímido e extremamente profissional, Ana Carolina desperta admiração de um “Bando de Loucos” sempre que entra no campo de futebol para atender um jogador machucado. “Eu nem tenho noção disso, mas o tempo todo me falam que fizeram medicina do esporte por causa de mim, que também têm o sonho de trabalhar no Corinthians como eu trabalho. Recebo mensagens de pessoas que eu conheço e também de quem eu nunca ouvi falar dizendo que eu sou uma inspiração para elas. É impressionante”, revela Ana Carolina. Ela também recebe muitos convites para participar de eventos acadêmicos da área da saúde, já que é um dos principais nomes femininos que atuam na medicina do esporte no Brasil. 

A mãe da Ana Carolina bem que avisa a filha que ela só terá uma melhor dimensão da contribuição que dá ao esporte quando sair dele. Afinal, Ana Carolina diz que “só trabalha”. “Para mim, todos são iguais, eu estou sendo profissional e fazendo o meu trabalho, independente se é homem ou mulher, os atletas são os meus pacientes”, diz.

E como Ana Carolina trabalha! Mas estuda muito também. Foi a pesquisa de pós-doutorado em medicina do esporte que a levou para dentro do clube pelo qual sempre torceu – nascida e criada em Brasília, Ana Carolina compartilha a paixão do pai e dos irmãos pelo Timão desde criança.

Corinthians foi o primeiro clube da Série A do Brasileiro a ter uma médica, a Dra Ana Carolina Côrte

“A maioria dos profissionais no esporte é homem. Não sei se é por menos interesse ou menos abertura que não tem tantas mulheres; eu não sei falar o motivo. Mas eu, de fato, nunca tive nenhuma dificuldade no esporte olímpico. Desde o momento que entrei no Pinheiros, fui super bem recebida, atendendo atletas homens e mulheres, desde Cesar Cielo a Daiane dos Santos, atletas super queridos e renomados. Eu sempre tive acesso a eles sem nenhum problema”, relata.

No futebol, o ambiente é diferente. A maioria esmagadora dos profissionais que trabalham no meio é formada por homens. Ana Carolina chuta uma estimativa na casa dos 95%. “Mas eu sempre fui muito bem recebida, nunca tive problema de fazer um exame físico em um jogador, de estar ou não no vestiário e nunca me questionei sobre isso”, ressalta. 

Para trabalhar no meio esportivo, porém, Ana Carolina sempre preocupou-se em estar preparada para “agarrar e não soltar” as oportunidades que surgissem. “E a preparação é completa. Tem a preparação acadêmica, mas tem também a preparação da prática, de saber ouvir as pessoas, de ter quem te aconselha, de estar preparada mentalmente que se é capaz”, aconselha. “A oportunidade que surgiu para mim no Pinheiros era para passar três semanas fora de São Paulo na semana seguinte em que recebi o convite. Eu respondi sim e só depois fui organizar minha vida, porque a oportunidade estava ali e eu estava preparada para aquele momento”, orgulha-se.

“Nós, mulheres, temos um pouco dessa dificuldade. Precisamos provar primeiro para nós mesmas para que os outros também acreditem em nós. Eu não tenho dúvida que toda essa minha formação acadêmica tem a ver com o medo de não ser aceita nesses ambientes”, avalia Ana Carolina. “Eu tenho pós-doutorado, então respeita a minha história! É o que muita gente fala por aí”, completa a médica, em um tom descontraído, como quem tenta driblar a timidez e a modéstia ao reconhecer o seu valor.

Medicina e esporte: dois sonhos convergentes

A profissão que já era um sonho desde pequena teve de começar com paciência. Foram três anos estudando em cursinho pré-vestibular até Ana Carolina entrar na Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). “Hoje, para mim, é muito claro que era Deus programando tudo. Porque se eu tivesse passado no primeiro ou no segundo ano que prestei vestibular, eu nem teria feito medicina do esporte, porque não existia residência nessa área ainda. Eu precisava esperar um pouquinho mesmo”, brinca. 

No último ano de faculdade, Ana Carolina pediu uma licença do internato para conhecer a residência de medicina do esporte que a USP tinha acabado de abrir. Era 2007 quando a ainda universitária aproveitou a viagem a São Paulo para esticar mais três dias para ir aos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro. “Ali eu pensei: aqui que eu quero trabalhar, é aqui onde eu quero estar”, relembra. Seis meses depois, Ana Carolina prestou a prova de residência em medicina do esporte na USP, passou e mudou-se para São Paulo.

O projeto de pesquisa realizado na residência foi expandido e virou doutorado na sequência. Quando acabou, Ana Carolina preocupou-se com o fim do vínculo com uma instituição de ensino. “É a oportunidade que temos de levar pessoas ao Hospital das Clínicas, às vezes atletas sem condições financeiras, fora as discussões muito ricas que temos dentro do hospital.” A alternativa era fazer uma pós-graduação. Na mesma semana que surgiu a oportunidade de se candidatar a uma bolsa de pós-doutorado, o técnico do ginasta campeão olímpico Arthur Zanetti perguntou sobre uma máquina que mede calor nos atletas chamada termografia. “Eu fui estudar para respondê-lo e esse acabou virando o tema do meu pós-doutorado.

Por sugestão do orientador, a coleta de dados da pesquisa foi feita com atletas do futebol, mais especificamente do Corinthians, em 2015 e 2016. “O resultado ficou muito bacana. Eu escrevi e publiquei em 2017. No ano seguinte, o Dr Joaquim Grava me trouxe para trabalhar no Corinthians.” Ana Carolina se juntou aos médicos Ivan Grava e Julio Stancati na comissão da equipe profissional do clube, sendo a terceira mulher no quadro profissional, junto da nutricionista Christine Machado Neves e da assessora de imprensa Josiane Ribeiro.

O Corinthians chegou na vida de Ana Carolina como fonte para o estudo do pós-doutorado e virou trabalho efetivo em 2017. Quatro anos antes, ela já havia entrado para o COB como prestadora de serviços. Depois foi contratada e cresceu dentro da entidade. Como a própria Ana Carolina diz, ela foi seguindo nas duas frentes: dos esportes olímpicos e do futebol. “As coisas foram dando certo.” Agora, com a saída do COB, o foco profissional está no Corinthians. Ao menos, até a vida abrir uma nova oportunidade. E, quando isso acontecer, Ana Carolina estará preparada para agarrá-la e só soltar quando se der por satisfeita.

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2 respostas

  1. Sensacional! A melhor médica do esporte… Agora podia ir pro Fluminense, o melhor clube do Brasil. Ajudar a dar uma saúde supra ótima pro M12!

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