Pioneira no basquete, árbitra superou ‘portas fechadas’ rumo a Tóquio

A vida de Andreia Silva não será mais a mesma após julho de 2021. Árbitra do basquete, Andreia Silva, foi escalada para os Jogos Olímpicos de Tóquio e pode se tornar a primeira mulher a apitar jogo masculino em uma Olimpíada.

A paulista de Bauru é uma das cinco mulheres escolhidas entre os 30 árbitros da modalidade para estar no Japão.

A preparação para o evento envolve dieta, corrida, musculação, orações e aulas particulares com dois professores para aprimorar a pronúncia no inglês. “Vou ter uma prova física, um ioiô teste, onde a velocidade chega a 16.5 km/h, e por eu ter a licença black da Federação Internacional de Basquete, que me permite apitar qualquer partida da modalidade, seja ela feminina ou masculina, eu tenho que fazer o teste físico dos homens. Então quero perder de três a quatro quilos para chegar lá bem leve e passar no teste”, diz Andreia. “Eu tenho consciência de que eu estarei no maior evento do mundo”, completa.

Consciência essa que veio com o tempo, já que no início da carreira era impensável para Andreia estar no hall dos principais árbitros do basquete do mundo. A primeira mulher a conquistar a tal licença black da Fiba passou por diversos apuros até chegar aonde chegou.

Créditos: Instagram @ ase_press

O início 

A paixão pelo esporte vem desde nova, quando ainda em quadra Andreia jogava basquete. “Era aquela época que o Bauru era forte no basquete, então despertou a vontade de jogar, mas eu não tinha um detalhe, o básico: habilidade (risos). Ali percebi que não iria conseguir, mas queria continuar na modalidade, eu tinha amigos ali, gostei do esporte, me ensinou a trabalhar coletivamente. Então, meu técnico na época me mostrou uma revista que dizia que iria abrir um curso na Federação Paulista para árbitros. Comecei a pesquisar as possibilidades de ir para São Paulo, onde eu ia ficar, com quem eu ia ficar, com que dinheiro etc”, conta Andreia.

Baixinha, Andreia ‘comandava’ gigantes em quadra (Foto: Arquivo Pessoal)

A solução para ir à cidade grande apareceu, e junto com ela vieram as dificuldades. “Minha avó tinha uma amiga que morava na época na Barra Funda, fui com 20 anos e fiquei na casa dela, a princípio de favor, porque eu não tinha condições de pagar um aluguel. Eu ajudava lá como dava, fazia faxina, esperava dar meio dia, uma hora da tarde para ir na feira conseguir legumes e frutas mais baratos. Depois de um mês e meio, elas (mãe e filha) vendo eu fazer o curso e imaginar que estava ganhando muito dinheiro, me pediram 150 reais por mês. Como eu ia conseguir isso? Eu ganhava 10 reais pelos jogos que eu apitava, que era de molecada, universitário, nada demais”, aponta a árbitra.

“Liguei para a minha vó, ela disse que não tínhamos esse dinheiro, então a mulher me expulsou da casa dela. Eu comecei a chorar, arrumei minha mala pensando que o sonho havia acabado. Quando eu estava na porta, olhei para a televisão e disse: ‘Você está vendo aquela televisão ali, um dia você vai me ver nela’, ela deu uma gargalhada que eu lembro até hoje e disse: ‘Vai embora vai menina, sai daqui’ e eu voltei para Bauru”, completa.

De volta ao sonho

O retorno para a casa da família foi inevitável, mas não durou muito. Além disso, Andréia fez um laço muito importante dentro da Federação Paulista de Basquete, uma espécie de segundo pai. “O Pelissari (José Carlos), meu instrutor na época, me ajudou muito porque eu faltei quase um mês no curso até conseguir voltar para São Paulo e ficar na casa de uns tios na periferia de Suzano. Ele (Pelissari) foi um paizão. Eu fiz o teste físico depois, a prova escrita e passei nos dois. A partir daí as cosias foram acontecendo”, explica a árbitra.

Se Pelissari foi o paizão, Geraldo Miguel Fontana foi o mentor. O diretor de arbitragem da Fiba Américas impulsionou Andreia para o que ela é hoje, e esteve ao seu lado nos desafios e dificuldades. “Eu passei no curso e conheci o Fontana, na época coordenador de arbitragem da Federação Paulista. Foram muitos e muitos jogos que eu fui sendo trabalhada, mas as coisas não foram fáceis. A pessoa que fazia as escalas na Federação Paulista na época não gostava do trabalho do Fontana, então, para prejudicá-lo, não me escalava, me dava só festivais que não tinham nenhuma relevância. Essas pessoas sempre tentaram me segurar, tanto que eu fui para a Federação Internacional com 31 anos de idade, era para eu ter ido com 27/28”, aponta Andreia.

“O Fontana gostava muito do meu trabalho, então ele me escalava em muitas viagens. Nos últimos 8 anos eu fiz praticamente quase todas as finais masculinas e femininas da América. O trabalho que ele fez comigo por quase 20 anos e tudo que eu sei hoje na quadra eu devo a ele. Eu ir para os Jogos Olímpicos hoje é uma vitória minha e dele. Nós choramos sentados na calçada porque estavam me prejudicando, estavam fechando as portas para mim”, disse.

“Eu não tinha noção de que seria árbitra nacional, internacional. Que ia perder a ideia de quantos países eu conheci. Que eu ficaria nos hotéis mais caros do mundo”.

Dos desafios para o crescimento 

A ascensão de Andreia no cenário do basquete despertou a inveja de muita gente. As dificuldades eram proporcionais ao sucesso na carreira. “As pessoas não ficam muito felizes quando tem uma outra pessoa com projeção vitoriosa, isso incomoda. Foram ‘n’ coisas que aconteceram. Teve um momento que eu peguei o telefone e liguei para a minha vó dizendo que não aguentava mais, que odiava São Paulo e ela me disse: ‘Você não vai voltar, eu não quero uma neta fracassada’. Eu me tornei uma mulher guerreira, aguerrida. Uma mulher que aprendeu a lutar pelo que quer, porque se as coisas tivessem vindo fáceis, eu seria uma acomodada, sabe? Não daria o mesmo valor que dou hoje”, pontua a árbitra, que volta a destacar a importância de Fontana na sua vida.

Foto: Arquivo Pessoal

“Ele acreditava mais em mim do que eu mesma. Ele colocava uma mulher de 1,67m de altura como árbitra principal, a única da quadra, para apitar jogos importantes de homens de 2,10m de altura, 2,15m. Eu falava: ‘Ele é louco’. No início os jogadores olhavam para mim com aquele olhar de: ‘Você deve estar no esporte errado, né?’, mas depois que o jogo começava eles sabiam que se não jogassem basquete seriam desqualificados sem o menor problema. Depois de um tempo começaram a me ver de uma forma diferente, já não tinha mais aquele olhar, mas isso não aconteceu da noite para o dia, eu tenho 20 anos de arbitragem e 11 como árbitra internacional, é um trabalho de formiguinha”, conclui.

“Eu agradeço muito a essas pessoas que de alguma forma tentaram me atrapalhar porque elas criaram um monstro”

Se Andreia conquistou o respeito dentro de quadra, fora dela há certa dificuldade. Além da vida de árbitro ser repleta de xingamentos e ameaças, a da mulher profissional envolve o machismo, e aquele cultural, onde muitas vezes é uma outra mulher propagando. “Eu escutava muito da torcida, e das mulheres. Me mandavam lavar roupa, lavar louça e aquilo me doía porque eu pensava: ‘Poxa, eu estou aqui dentro, num universo machista, defendendo a nossa classe e você me dizendo para ir lavar louça, lavar roupa? Chama de ruim, mas não fala para eu lavar louça e roupa porque é dessa forma que os homens nos enxergam’”, desabafa a paulista.

O ponto alto da carreira

A presença da vó Izabel, hoje com 84 anos, é constante na vida de Andreia. É para a matriarca da família que ela recorre seja para celebrar um momento ou compartilhar alguma angústia. “Era para eu ter ido para a Rio 2016 e eu não fui. Naquela época eu chorei muito, fiquei desanimada, então eu tinha a esperança de ir na primeira lista que saiu para Tóquio, mas o meu nome estava em stand by, uma lista de espera. Eu chorei muito de novo, chorei com a minha vó e falei que queria parar de apitar, que eu estava cansada de tudo”, conta a árbitra.

“Eu peguei a Bíblia, li um trecho. De tanto chorar eu deitei no sofá, coloquei a Bíblia na minha barriga e eu senti uma mão fazendo um carinho no meu coração, e minha vó falou: ‘Filha, até a Olimpíada as coisas podem acontecer, podem mudar, confia em Deus’. Para mim era impossível, não tinha como mudar. Infelizmente veio a pandemia, claro, mas por isso essa lista de Tóquio mudou completamente e meu nome entrou entre os 30”, explica. “Quando eu recebi o email eu liguei para a minha vó chorando, ela comemorou como se tivesse ganhado o céu”.

Andreia poderá se tornar a primeira mulher a apitar um jogo pela chave masculina em Olimpíadas. Mais um capítulo da sua história para ficar gravado na memória daquela menina que largou tudo em Bauru em busca de um sonho. “Quando eu entrei na quadra pela primeira vez para apitar um jogo da Argentina e vi o Luis Scola (pivô), um dos melhores na história do basquete argentino, que joga NBA, passou uma novela na minha cabeça: ‘Olha onde eu estou. Eu estou no mais alto nível da arbitragem, na elite, valeu a pena estar aqui’. É surreal”, desabafa a árbitra. “Espero que quando minha carreira se encerrar eu possa ter deixado um legado. Se uma mulher conseguiu, outras também vão conseguir”, finaliza.

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