Racismo e despreparo nas transmissões: o que diz o MyCujoo?

A transmissão de Napoli x Bahia, jogo entre dois times recém-promovidos à primeira divisão do Brasileirão Feminino, foi amplamente debatida após a rodada do fim de semana. Não pelo empate em 2 a 2, que manteve as duas equipes na parte de baixo da tabela, mas por comentários de cunho racista por parte do narrador e do comentarista da transmissão exibida na plataforma MyCujoo. Afinal, chamar o cabelo crespo de jogadoras de “exótico” e comparar mulheres negras apenas pela sua cor ou textura capilar são reproduções de racismo.

A discussão não é se houve ofensa ou não. A CBF classificou os comentários como “preconceituosos” em um comunicado, e informou que solicitou o afastamento imediato dos envolvidos. Já o MyCujoo afirmou que comentários sobre características físicas das jogadoras são “inaceitáveis” e que as equipes recebem orientações antes de cada transmissão para que isso não aconteça.

“A gente não aceita, de maneira nenhuma, nenhum comentário de cunho racista, sexista, feminista, machista, nenhum comentário nesse sentido. Infelizmente a gente vive numa sociedade em que isso está enraizado”, disse Terence Gargantini, diretor da plataforma no Brasil e América Latina, ao Dibradoras – sem sequer perceber que essas palavras não se correlacionam. Ao contrário dos preconceitos citados, o feminismo é um conjunto de movimentos e filosofias em prol da igualdade de gênero. Um comentário feminista, portanto, não seria ofensivo para ninguém, afinal, ser a favor de direitos iguais para homens e mulheres é o básico (ser contra é ser preconceituoso).

Após o afastamento dos profissionais e o pedido de desculpas, o debate foi ampliado. Relatos nas redes sociais apontaram que o MyCujoo buscava apenas mulheres – mesmo sem experiência – para atuar nas transmissões. A empresa estaria, inclusive, dispensando homens que já trabalham com o futebol feminino há anos para suprir a “nova” demanda, e só teria voltado atrás devido à repercussão negativa.

A reportagem apurou, inclusive, que houve essa tentativa em alguns estados (por orientação do MyCujoo às produtoras) de convencer mulheres que nunca haviam narrado, por exemplo, a se aventurarem na função já estreando em jogos da próxima rodada do Brasileirão. Essa forma da empresa responder às críticas também repercutiu bastante nas redes sociais. Muita gente criticou a maneira imediatista e não planejada com que o MyCujoo lidou com o problema – como se encher as transmissões de mulheres sem experiência do dia para a noite fosse a “solução mágica”.

De acordo com matéria do UOL publicada nesta quarta (28), os clubes também teriam cobrado uma melhora nas transmissões da plataforma. Contatada pelo Dibradoras, a empresa negou a existência da orientação de equipes 100% femininas. Questionado, o diretor garantiu: “Buscamos sempre oportunidades iguais para todos. É isso que buscamos.”

Controle de qualidade

A oferta de transmissões de torneios nacionais e internacionais de futebol feminino aumenta com o passar dos anos. Só para citar alguns canais (oficiais) que transmitem partidas: YouTube, Twitch, TV aberta e fechada, plataformas de streaming e aplicativos. No entanto, se antes a luta era para que o acesso à modalidade fosse mais difundido, agora a exigência é por um produto valorizado. Os detentores de direitos de transmissão e canais oficiais dos torneios e clubes muitas vezes são criticados por falta de preparo, falta de emoção, pouca divulgação, entre outros.

No início do ano, comentários machistas na transmissão do MyCujoo de Inter e Santos no Brasileiro Sub-18 viralizaram. As jogadoras e o técnico santista fizeram protesto (Foto: Divulgação)

No caso do futebol feminino brasileiro, o MyCujoo transmite partidas de campeonatos de base e profissionais em parceria com a CBF. Em uma relação “extremamente saudável”, como diz Gargantini, a plataforma chegou a transmitir mais de 300 partidas de futebol de mulheres da Confederação em 2020. Segundo ele, a missão da plataforma é democratizar o acesso a jogos que não são transmitidos nos grandes meios, entregando uma transmissão de qualidade com o menor custo possível.

“A gente entende [a frustração dos torcedores], mas tem que educar. Esses torcedores estão acostumados com o padrão Globo de produção e o MyCujoo não é o padrão Globo de produção”, explica.

Nesta parceria, a plataforma é responsável por contratar as equipes nas cidades onde as partidas serão disputadas, muitas vezes longe dos grandes centros. Por isso, segundo Gargantini, a oferta de profissionais é escassa em cidades menores, por exemplo. “Obviamente cada vez mais [essa dificuldade] diminui, mas a gente tem uma dificuldade sim em encontrar pessoas especializadas em futebol feminino.”

Para a contratação destes “microprodutores” de conteúdo, como o próprio diretor os chama, eles passam por um processo seletivo e análise de portfólio. Antes de cada transmissão, o MyCujoo envia uma cartilha na qual a empresa orienta narradores e comentaristas tanto com relação à operação da plataforma quanto com relação ao que pode ou não pode ser dito, e os motivos destas recomendações. “A gente tenta, obviamente, controlar, a gente tenta educar, obviamente o nosso dever é educar as pessoas. É fazer com que elas melhorem, não só no âmbito pessoal mas também no âmbito profissional.”

Entre as instruções, está “não fazer comentários sobre a aparência física de jogadores ou jogadoras”. Isto, inclusive, foi reforçado em outro caso: no Brasileiro Feminino Sub-18 de 2020, um narrador afirmou que a dupla de zaga do Internacional era “muito bonita”. Um comentário problemático por si só, com o agravante de que as jogadoras disputavam um torneio adolescente. Gargantini lamenta os casos e garante que o MyCujoo não tolera comentários preconceituosos. Ele avalia que a empresa está no caminho certo. “No meio do caminho, a gente vai acabar errando, vai acabar tendo problemas, e vai ter que resolver da melhor maneira possível.”

Educação como saída

Problemas enraizados na sociedade como racismo, machismo, sexismo e LGBT+fobia não deixarão o futebol, a não ser que este se torne, também, uma ferramenta de ensino e conscientização. Além de punir, é necessário impedir que estes casos aconteçam, zelando pela capacitação destes profissionais e também pela transmissão em si. Enxergar o futebol feminino como um produto só de mulheres é um problema que também tem as suas raízes no machismo. Entidades do futebol precisam assumir a sua responsabilidade para mudar este cenário.

Diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho também não acredita que a contratação de mulheres indiscriminadamente seja uma solução. “A punição não educa, e incluir só mulheres não mostra o tamanho da diversidade que nós temos”, afirma. A exigência é por pessoas capacitadas, que se dediquem às transmissões, mas que pessoas além dos cisgêneros masculinos brancos tenham as mesmas oportunidades, tanto no futebol feminino quanto no masculino.

É necessário que haja mais gêneros representados em transmissões esportivas. É necessário que pessoas negras, indígenas e não-brancas ocupem estes espaços. Existe uma disparidade que começa no acesso à formação e à participação no jogo em si – fruto de um preconceito enraizado (e reproduzido até mesmo por quem dirige a empresa que transmite os jogos).

“O futebol, a gente sabe, ainda é um ambiente machista. Eu acho que está mudando, e vai ter que mudar. Você vê dentro dos clubes hoje tem muito mais homens trabalhando do que mulheres. Claro que não é só por questões de diversidade, mas você tem, por exemplo, o ambiente do futebol que é um vestiário masculino, que obviamente, dificulta ter uma mulher dentro do vestiário junto com os atletas, eles estão todos tomando banho, não é uma coisa que é legal”, afirmou.

Talvez o diretor do MyCujoo não saiba que, das 16 equipes da primeira divisão do Brasileiro feminino, 12 são comandadas por homens. Parafraseando o que ele disse: “Não dificulta ter um homem dentro do vestiário com as atletas tomando banho?”. Aparentemente, é perfeitamente possível manter as conversas com o treinador depois que elas já saíram do chuveiro e estão vestidas.

Preparo e competência

A primeira divisão de um Campeonato Brasileiro não pode servir de estágio para quem quer começar. É o produto mais valioso do país no futebol feminino.

O MyCujoo aponta que a diversidade é importante, mas “é preciso olhar o mérito”. “A gente também, obviamente, olha para a meritocracia, a pessoa mais dedicada, com uma competência maior, mas obviamente a gente não pode deixar de olhar para a diversidade”. O curioso é que é justamente isso que as pessoas têm questionado nas transmissões da plataforma: quem está lá, não está por mérito ou “competência maior”.

MyCujoo tem parceria com a CBF desde 2019 para transmissão de jogos de diversos campeonatos (incluindo o Brasileiro feminino)

A falta de conhecimento de narradores e comentaristas sobre o futebol feminino e os times envolvidos nos jogos ficou evidente em algumas partidas – como, por exemplo, quando um deles falou sobre “a idade olímpica” das jogadoras da seleção para Tóquio (sendo que a limitação de idade para o futebol olímpico acontece apenas no masculino). Se o MyCujoo prezasse mesmo pela “meritocracia” e pela “competência” na escolha de quem vai fazer as transmissões, erros grotescos como esse não aconteceriam.

Além disso, o diretor da empresa destacou: “desde o início, a gente tenta a contratação de mulheres para transmitir o futebol feminino. Mas, como eu te disse, a gente volta naquela tecla de oferta.” Vale reforçar que o olhar para a diversidade não deveria acontecer apenas para a transmissão do futebol feminino.

E, em uma plataforma que transmite mais de 30 mil jogos por ano –1,3 mil destes em parceria com a CBF em 2020 – há espaço de sobra para crescimento e aprendizado. Perguntado como ele vê esse fomento acontecendo da forma ideal, ele cita um projeto de parcerias com faculdades, para receber homens e mulheres que possam acompanhar transmissões e aprender as funções. Essa é uma iniciativa interessante, mas não aconteceria na primeira divisão do Campeonato Brasileiro masculino – e não deveria acontecer no Campeonato Brasileiro feminino.

Mostrar que o preconceito não será tolerado é importante, como explica Carvalho, mas este deve ser combatido desde os primeiros passos. “Punir mostra para a sociedade que esses atos não vão ser mais tolerados, mas e em termos de educação?”, questiona.

Existem diversas vozes que ainda estão fora da equação, mas estes não podem ser jogados aos leões sem treinamento adequado. Ter mulheres negras, pessoas LGBTQIAP+, pessoas com deficiência e outros grupos representados em frente às câmeras, com a qualificação e o preparo adequados, precisa ser uma consequência deste projeto a longo prazo.

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