Após 5 anos, técnica Ana Lúcia volta ao futebol: “homens têm direito de errar, nós não”

Em entrevista, a treinadora conta que dedicou-se aos estudos desde a saída do Palmeiras e elogia a estrutura para trabalhar com as Gurias Furacão

Foto: José Tramontin/athletico.com.br

Ana Lúcia tem 25 anos de experiência com o futebol e, como treinadora, acumula passagens por Palmeiras, Osasco Audax, Ponte Preta, Corinthians (sub-17), Guarani e, recentemente, foi assistente pontual da Seleção Brasileira Sub-20. Estudiosa, ela já concluiu as licenças PRO da Conmebol e da CBF e estava prestes a começar um mestrado quando recebeu o convite para comandar a equipe feminina do Athlético Paranaense em 2024. Apesar do longo currículo, ela não assumia um clube de ponta desde a saída conturbada do Palmeiras – logo após ter conseguido o acesso para a elite do Brasileirão, em 2019.

Por isso, Ana Lúcia decidiu focar nos estudos nos últimos anos. “As pessoas falam que eu sou ‘a louca do estudo’ e sou mesmo. Tenho mais de 80 cursos de formação, de pós-graduação, tudo na área de treinamento de futebol, estou sempre antenada. Aí veio a possibilidade de ir pro Athletico. Mais uma vez, passei meu mestrado pra frente, já tem uns 10 anos que estou adiando. Mas eu fiz vários cursos durante a pandemia, na área de futebol feminino, nunca me afastei da modalidade, pelo contrário, tive mais tempo pra me dedicar a estudar”, contou a técnica, em entrevista exclusiva ao Dibradoras.

No comando das Gurias Furacão

Quando o Athlético Paranaense procurou Ana Lúcia, ela havia acabado de receber duas propostas: a primeira para treinar a seleção do Irã e a segunda para assumir um clube brasileiro que disputará a Série A2 neste ano, ambas no futebol feminino. “As propostas eram muito boas e eu também tinha recebido a oportunidade de fazer o mestrado na Unicamp. Então, eu fiquei numa doidera pra decidir”.

Um dos fatores que fez Ana optar por treinar o time paranaense foi a estrutura oferecida pelo clube à modalidade, além do reencontro com Renata Pelegatti – que foi supervisora do Palmeiras ao lado de Ana Lúcia e, hoje, é coordenadora de futebol feminino no Athlético.

“Eu já conhecia a Renata e o que ela propôs de estrutura me ajudou na decisão. É inimaginável o que eu estou vivendo aqui, uma estrutura fantástica, tem tudo o que uma equipe precisa para realizar um trabalho de excelência em todos os departamentos, que são todos integrados (base, masculino, feminino). Tem todo tipo de monitoramento, com alta tecnologia, muitos campos para treinamento, profissionais de todas as áreas. As atletas têm acesso a tudo que o profissional e a base têm. Foi isso que me fez decidir vir pra cá, porque era um sonho trabalhar com uma estrutura assim”.

O grande desafio da equipe feminina do Athlético é entrar para a elite do Brasileirão. Para isso, as Gurias precisarão chegar até a semifinal da Série A2 do Campeonato Brasileiro, que terá início em 13 de abril e terminará no fim de julho. As comandadas de Ana Lucia irão enfrentar: Bahia, Ceará, Real Ariquemes-RO, 3B Sport-AM, Fortaleza, JC Futebol Clube-AM, Minas Brasília-DF, São José-SP, Sport, Taubaté, União Desportiva Alagoana, Juventude, Mixto-MT, Remo e VF4-PB. O clube também disputará o Campeonato Paranaense, que ainda não tem data de início definida, mas deve ser realizado entre setembro e dezembro.

“Estamos na quarta semana de treinamento, o elenco está fechado com 12 atletas que permaneceram e 8 contratadas. Meninas com potencial fantástico e maravilhoso, que estão se adaptando superbem. Elas têm tudo aqui: alimentação, carteira assinada, auxílio moradia. Já abraçaram a ideia do trabalho, são muito comprometidas e o ambiente é superfavorável”, disse a treinadora.

Ana enxerga muito potencial no clube do Paraná. “Eu sinto todos os departamentos engajados do mesmo jeito com o masculino e com a gente (time feminino). Eles têm um cuidado, sem fazer diferença de nada. E o clube – apesar de já ter muito reconhecimento – ainda tem uma relação nova com o futebol feminino, que está indo para a quinta temporada. Então, está se estruturando e buscando entender onde atacar as dificuldades, mas vejo bastante empenho em melhorar cada vez mais as condições do feminino, que já são ótimas”.

A treinadora declarou que tem se emocionado ao ver o progresso do futebol feminino nos últimos anos. “Ao mesmo tempo que demorou, está andando rápido e esse processo me emociona. Quando estava assistindo a Corinthians x Cruzeiro (na final da Supercopa), com 33 mil pessoas no estádio, diante de tudo que já vivenciei, é uma conquista superimportante. Eu sempre briguei muito pela valorização das atletas, algumas já conseguem ajudar as famílias e isso está acontecendo. Mas não sei se elas estão preparadas para esse profissionalismo. Eu já falava que elas precisavam entender isso, de serem atletas. É uma construção, um processo e eu trabalho muito nisso, que elas têm que ser atletas e ter atitudes de profissionais. E o corpo é a ferramenta de trabalho delas, então é importante esse processo todo”.

Quando perguntada sobre seu perfil como treinadora, Ana revelou, aos risos, que a acham brava: “A princípio todas tem medo, me acham muito brava, mas depois vai desaparecendo esse medo inicial. O meu preparador físico não consegue me chamar pelo nome, ele me chama de senhora. E eu falo: ‘Você vai voltar pra onde você veio, né? Porque se você não parar de me chamar de senhora, não vai ficar bom'”.

Treino pra ela é sagrado e a técnica revelou que fala muito durante as atividades, corrige o posicionamento correto das atletas, mas na hora do jogo é diferente. “Durante o jogo não sou de ficar gritando, mesmo porque ninguém escuta, né? Mas não sou do tipo que fica direcionando as atitudes delas. Acredito que elas devem ter leitura de jogo e isso se adquire durante os treinos. Elas têm que identificar dentro do campo algumas situações que a gente treina pra isso. A gente tem a semana inteira pra trabalhar e desenvolver essa autonomia e confiança delas para a tomada de decisão”, contou.

Poucas mulheres no comando

Segundo levantamento feito pelo Dibradoras, dos 16 times da Série A1, apenas quatro são comandados por mulheres (Camilla Orlando, Carine Bosseti, Jéssica de Lima e Thaissan Passos). Na Série A2, conseguimos confirmar três mulheres como treinadoras, além de Ana Lúcia: Lindsay Camila no Bahia, Regiane Santos no Sport e Kethleen Azevedo no Mixto.

Com 58 anos, Ana Lucia é a treinadora mais velha nas duas divisões do Campeonato Brasileiro. Em um momento de debate e de naturalização quando o assunto é etarismo, Ana avalia que a questão financeira foi o que afastou as mulheres do comando técnico dos times de futebol.

“Até 2019, ninguém oferecia bons salários. As mulheres que faziam faculdade e queriam ingressar nessa carreira de treinadora não tinham condição financeira para seguir. E não existiam os clubes, existiam parcerias, prefeituras. E elas optavam por outras áreas da Educação Física, no caso, que tinham um rendimento mais imediato. Ficou uma lacuna muito grande por esse motivo. Eu mesma, se não tivesse  essa possibilidade na prefeitura de Valinhos, eu também não teria conseguido me manter. Não existiam projetos sólidos, seguros para ter continuidade, então, acredito que a gente não tem mais mulheres pelo motivo financeiro mesmo. Eu mesma, às vezes me questionava se eu deveria continuar ou não. Agora desperta mais a vontade das mulheres de estarem no futebol feminino.”

Com a ausência das mulheres no comando do futebol (seja ele masculino ou feminino), passou a ser comum ver homens assumindo o protagonismo na modalidade feminina, e Ana também comentou sobre isso. “No futebol masculino, nós (mulheres) não temos oportunidades de trabalhar. E no feminino, todos têm a oportunidade de trabalhar. E nesse caso, eles, homens, tem o direito de errar, de não saber, tem direito de tudo. E nós, temos que provar todo dia que somos capazes, que sabemos, entendemos. Essa dificuldade depois da obrigatoriedade passou a ser muito evidente. Muitos homens vindo pro futebol feminino, ou porque não tiveram oportunidade ou não conseguiram no masculino, só que nós (mulheres) não temos as mesmas oportunidades no masculino. É uma coisa cultural, acho que vai demorar um pouco para essas barreiras caírem.”

‘A Ana era abusada’

Ex-atacante, Ana revelou que entre as treinadoras que admira estão a holandesa Sarina Wiegman e a norte-americana Jill Ellis. Também afirmou que seu estilo de jogo é bem agressivo e que gosta bastante de chegar com quantas jogadoras puder na área.

Quando pedimos para ela relembrar como era a Ana jogadora, ela não se intimidou a dizer: “Eu era abusada quando jogava. Uma vez tive que sair correndo de campo, porque fiz vários gols e uma das meninas que estava jogando achou que eu estava dando risada dela. Eu tive que sair correndo, porque ela queria me pegar. Eu falo para as meninas de hoje: ‘A sorte de vocês é que eu não jogo mais. Vocês não iam ver nem a cor do meu cabelo’, conta, aos risos.  

E se hoje pudesse falar algo para a Ana do passado? “Eu falaria algo que eu já pensava na época. Eu venho da escola do voleibol, que já era estruturado lá atrás, então eu diria pra ela cuidar e investir muito no corpo e nos estudos, algo que eu sempre busquei muito para minhas atletas nos clubes por onde passei, pra elas terem faculdade. Eu falaria pra Ana seguir abusada e investir muito no físico e na performance”, concluiu.

Tatiele Silveira foi a primeira mulher – e ainda é a única – a conquistar um título de Campeonato Brasileiro. Foi em 2019, comandando a Ferroviária, que equipe de Araraquara desbancou o já poderoso Corinthians. Ana Lucia sente o peso dessa ausência, mas encerrou a entrevista dando seu recado. “Tá na hora de as mulheres conquistarem títulos, né? Mas eu vou ser campeã brasileira esse ano. Pode ter certeza disso. Já vai ter uma mulher campeã esse ano. Não vim treinar o Athletico Paranaense só pelo acesso, eu também quero esse título!”

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