EUA vão a Wembley enfrentar Inglaterra em meio a renovação e denúncias de abuso

O amistoso da seleção dos Estados Unidos contra a Inglaterra é o principal teste da equipe norte-americana, a cerca de nove meses da Copa do Mundo. Tetracampeãs do mundo em 2019 e campeãs da Concacaf W em 2022, as jogadoras dos Estados Unidos entram em campo contra as Lionesses. O time inglês chega para o duelo embalado após a conquista da Euro feminina em julho, com direito a quebra de recorde no estádio de Wembley – casa do amistoso desta sexta (7), com ingressos esgotados desde agosto.

Ao contrário de outras ocasiões, no entanto, as norte-americanas não são mais as favoritas a entrar em campo. O time passa por um processo de renovação e tem exibido atuações irregulares. Agora, com uma série de amistosos contra seleções europeias – além da Inglaterra, enfrentam a Espanha no dia 11 de outubro e a Alemanha duas vezes em novembro -, a expectativa do time de Vlatko Andonovski é de ajustar as pontas soltas visando a Copa.

Há décadas, os Estados Unidos são referência no futebol feminino. Não há dúvidas de que as mulheres do país largam na frente quando o assunto é futebol – com incentivo desde a infância, categorias de base e o esporte conectado à educação com o Title IX (se ainda não te contaram sobre essa lei, vê o vídeo aqui embaixo).

No entanto, o futebol acabou ficando em segundo plano na preparação da seleção feminina dos EUA para os amistosos de outubro. Isso porque um relatório independente produzido pela ex-procuradora geral dos EUA com a firma King & Spalding foi divulgado na última segunda-feira (3), com detalhes sobre as alegações de comportamento abusivo e má-conduta sexual no futebol profissional feminino no país.

Investigações recentes mostram que, nesta estrutura, há uma série de comportamentos abusivos e denúncias ignoradas pelas lideranças da modalidade. Após casos de abuso na NWSL, a liga profissional de futebol feminino dos EUA, terem vindo à tona, cinco equipes tiveram trocas de treinadores (que foram demitidos ou renunciaram ao cargo).

Em solidariedade às vítimas de violência sexual, as seleções dos EUA e da Inglaterra vão entrar em campo com braçadeiras azuis.

Após a divulgação do relatório, jogadoras têm se pronunciado e pedido ações efetivas para o combate à violência no futebol feminino. “Eu acho que por muito tempo a responsabilidade foi das jogadoras de pedir mudanças. Isso é porque as pessoas nas posições de autoridade e tomada de decisões têm repetidamente falhado em nos proteger e falhado em assumir a responsabilidade dos seus atos. Quem você realmente está protegendo e que valores você está sustentando?”, questionou Becky Sauerbrunn em entrevista coletiva.

À BBC Sport, Crystal Dunn – que está de volta à equipe após a licença-maternidade – admitiu achar difícil sentir orgulho de vestir o uniforme da seleção. “As camisas que nós estamos vestindo, é difícil ficar feliz nelas, é difícil encontrar alegria nisso. Eu estaria mentindo se dissesse que estamos bem. A única coisa que me dá conforto é saber que eu tenho companheiras incríveis e que nosso apoio umas nas outras nos permitiu encontrar algum conforto nessa situação.”

https://twitter.com/USWNT/status/1578032183629217795

O relatório

Desde 2021, reportagens e investigações têm mudado o olhar do mundo sobre o futebol feminino norte-americano. Uma reportagem do site The Athletic relatou acusações de abuso verbal, emocional e sexual contra o ex-treinador Paul Riley, à época no comando do North Carolina Courage. De acordo com o relatório Yates, solicitado pela US Soccer, a federação de futebol norte-americana, os abusos são “sistêmicos”. “O abuso na NWSL está enraizado em uma cultura mais profunda no futebol feminino, que começa nas categorias de base, que normaliza treinamento com abusos verbais e confunde os limites entre treinadores e jogadoras.”

Além da investigação independente da US Soccer Federation (USSF), outro relatório está sendo produzido, desta vez pela Liga e pela associação de jogadoras da NWSL.

Após mais de 200 entrevistas, o documento conclui que os clubes, a Liga e a própria Federação falharam na hora de lidar com as denúncias e as evidências de abuso. Além disso, houve uma falha geral em instituir medidas básicas para prevenir e lidar com isso. “Como resultado, treinadores abusivos se transferiram de time para time, com comunicados de imprensa os agredecendo pelos serviços prestados e referências positivas dos clubes, que minimizavam ou até mesmo escondiam a má-conduta.”

Apesar de os clubes afirmarem que colaborariam com a investigação, o relatório acusa o Racing Louisville, o Portland Thorns e o Chicago Red Stars de dificultarem o acesso da equipe de investigação a testemunhas e documentos. O relatório foca nos casos de Paul Riley, Rory Dames (ex-Red Stars) e Christy Holly (ex-Racing Louisville) para mostrar que, apesar de anos de denúncias, os treinadores conseguiram seguir trabalhando e vitimando atletas por anos até que as histórias fossem publicadas no ano passado e em 2022.

Separamos abaixo os principais pontos do relatório Yates:

1. Desde o começo, a NWSL e a USSF falharam em criar medidas básicas para garantir a segurança das jogadoras.

Quando a USSF criou a NWSL, fez rápido para aproveitar o sucesso da seleção nas Olimpíadas, mas não planejou uma infraestrutura para a liga nem definiu o papel da organização. Mesmo antes da NWSL, abuso verbal e emocional e má-conduta sexual já eram problemas no futebol feminino profissional e de base. A liga e a federação, no entanto, não consideraram isso, não tendo políticas anti-assédio, anti-retaliação e anti-fraternização. Além disso, não havia canais de denúncias, códigos de conduta ou um guia sobre o que deve ser feito para contratar um técnico. Só em 2021 a NWSL passou a ter uma política anti-assédio a pedido das jogadoras.

2. Abuso na NWSL era sistêmico.

Metade dos clubes trocou de treinador após denúncias de má-conduta por jogadoras. O relatório afirma que descobriram vários casos de abuso verbal e emocional, comentários sexuais e contato sexual coercivo, alguns de ligas que precedem a NWSL e da base.

3. Os clubes, a Liga e a Federação falharam em responder de forma adequada a relatos e evidências de má-conduta.

Mesmo quando recebiam repetidas denúncias anônimas ou não-anônimas, os clubes, a Liga e a Federação não garantiam a a segurança das jogadoras. Os relatos chegavam a ser minimizados ou ignorados. As poucas investigações iniciadas não seguiam para entender a raiz da má-conduta, e as entidades falharam em estabelecer políticas e protocolos.

4. Treinadores abusivos se transferiam de time para time, e até para a USSF, porque os clubes, a Liga e a USSF falharam em identificar e informar uns aos outros sobre má-conduta de treinadores.

Quando estes treinadores eram transferidos, os clubes e a Liga não explicitavam o motivo do fim do contrato ou da demissão. Além disso, na hora de contratar novos treinadores, não havia uma investigação sobre o comportamento deles ou o motivo de sua saída dos outros clubes. Quando contatados, alguns times minimizaram as denúncias.

5. Uma cultura de abuso, silêncio e medo de retaliação perpetuou a violência.

Comportamentos machistas e comentários degradantes foram considerados como uma maneira “mais dura” de treinar apenas, e isso normalizou o abuso emocional e verbal desde as categorias de base. Por isso, jogadoras muitas vezes não sabiam reconhecer o abuso, considerando normal. Além disso, havia uma normalização de relações entre treinadores e jogadoras adultas. Por fim, era considerado importante manter a liga sem escândalos para garantir a continuidade do futebol feminino profissional.

6. Jogadoras não tinham segurança de trabalho e proteção contra a retaliação, o que intimidava possíveis denúncias.

A maior parte das jogadoras ganhava pouco e vivia em locais cedidos pelos próprios clubes. Aquelas que denunciavam ou participavam em investigações eram vendidas, o que silenciava outras atletas. Além disso, as jogadoras não sabiam com quem falar para denunciar, já que alguns dos times não tinham departamentos de recursos humanos ou caminhos de denúncia claros, anônimos ou não.

7. Os times, a Liga e a USSF deveriam apoiar os esforços da SafeSport (organização sem fins lucrativos que trabalha com federações esportivas nos EUA) para garantir a segurança das jogadoras.

A organização SafeSport tem jurisdição sobre casos de má-conduta sexual de treinadores lucenciados pela USSF, mas isso não proíbe que clubes ou a NWSL investiguem e respondam internamente. Após a publicação das reportagens, no entanto, a USSF passou a implementar sanções.

8. A falha da USSF, da NWSL e de alguns dos clubes de responder da forma adequada a denúncias e evidências de má-conduta pôs outras jogadoras em risco e criou um clima tóxico desde o topo.

Quando as entidades falharam em responder às queixas das jogadoras, deram a impressão de que certos tipos de condutas eram permitidas. Por isso, outras jogadoras correram risco. Além disso, a impunidade empoderou os agressores e criou oportunidades de retaliação.

9. Abuso nas ligas profissionais de futebol está enraizado na base.

A cultura de tolerar abuso verbal por jogadoras vai além da NWSL. Alguns dos treinadores tinham conexões com as categorias da base e já havia relatos, como no caso de Dames, de serem abusivos desde as categorias de base.

Recomendações

O relatório faz algumas recomendações para prevenir futuros casos de abuso, punir os responsáveis por agressões e garantir a transparência e o respeito às jogadoras. “Entendemos que, sob a atual estrutura organizacional da federação, a USSF tem controle limitado sobre os times. No entanto, ela supervisiona a NWSL. Onde recomendamos que os times ajam, recomendamos que a NWSL seja responsável por garantir que os times ajam e que a USSF imponha essa exigência sobre a Liga se necessário.”

1. Transparência: contato entre clubes, NWSL e USSF para que o histórico dos treinadores seja conhecido e compartilhado.

2. Responsabilidade: a USSF deve usar sua autoridade para monitorar e remover treinadores problemáticos, além de exigir que os treinadores sejam investigados de acordo. Todas as entidades devem ter políticas de proteção às atletas. A responsabilidade primária deve ser dos clubes, supervisionados pela NWSL.

3. Regras claras: definir o que é certo e errado e os caminhos que jogadoras que queiram denunciar comportamentos abusivos podem seguir. O relatório recomenda treinamentos anuais para jogadoras e treinadores, além de códigos de conduta claros.

4. Segurança das jogadoras e respeito: os clubes, a USSF e a NWSL devem designar alguém na organização para ser responsável por segurança das jogadoras, para conduzir e implementar as políticas. A USSF também deve garantir que os clubes têm recursos financeiros suficientes para garantir a segurança das jogadoras na NWSL, por exemplo, garantindo que treinadores não tenham total controle sobre as jogadoras (como, por exemplo, autoridade sobre moradia, negociações, decisões médicas ou outros aspectos).

5. Feedback das jogadoras: a NWSL deve implementar um sistema para solicitar feedback anual das jogadoras e tomar ações de acordo com o que elas reportarem.

6. Categorias de base: a USSF deve colaborar com as categorias de base e examinar se medidas adicionais serão necessárias.

7. Ações disciplinares: a NWSL deve determinar se punições serão garantidas após este relatório e a investigação conjunta da NWSL/NWSLPA.

8. Intersecção com a SafeSport: os clubes, federação e liga não devem se apoiar exclusivamente na SafeSport para garantir a segurança das jogadoras. Pelo contrário, elas devem ser primariamente responsáveis por proteger atletas de comportamento abusivo.

Em maio a essa crise dentro e fora de campo, a seleção americana enfrenta a atual campeã da Euro, Inglaterra, em uma partida que pode registrar mais um recorde de público em Wembley para o futebol feminino. O jogo é às 16h e terá transmissão da ESPN.

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