Jogos Olímpicos de Tóquio: Por que não temos mais mulheres treinadoras?

Os Jogos Olímpicos de Tóquio evidenciaram algo que já é muito perceptível para quem acompanha esportes há mais tempo: a ausência de mulheres nas comissões técnicas das equipes na competição. Isso acontece nas modalidades individuais e fica ainda mais evidente nas coletivas, que costumam ter mais postos de comando (treinadora, auxiliar, etc).

No caso desses esportes coletivos, há um dado concreto para analisar: as mulheres ocupam pouco mais de 26% dos cargos disponíveis nas comissões – tanto das modalidades femininas, quanto das masculinas. Os dados são da “Female Coaching Network”.

Dentre as nove modalidades coletivas nos Jogos Olímpicos de Tóquio, só uma delas tinha uma maioria feminina nos cargos de comando: a ginástica artística. Um esporte que só acontece na categoria feminina nos Jogos e que tem 91% das posições técnicas ocupadas por mulheres.

A pior situação é a do rúgbi, que não tem nenhuma mulher ocupando um cargo de treinadora ou assistente nas comissões técnicas entre as 25 posições disponíveis nas equipes femininas e masculinas.

Vôlei

O segundo “pior” esporte nesse quesito da diversidade nos cargos de treinadores surpreende. O vôlei, um dos esportes mais praticados por mulheres no mundo, deixa bastante a desejar nos postos de comando. Somente 4% dos 48 cargos de treinador ou assistente disponíveis são preenchidos por mulheres.

Na seleção feminina de vôlei, por exemplo, só havia uma mulher entre 11 membros da comissão técnica que foi a Tóquio.

Foto: Divulgação

Só que a seleção reflete muito o que se vê no cenário do voleibol como um todo. Na edição de 2019 da Superliga, entre os 181 membros comissão técnica, havia somente oito mulheres. O número representa apenas 4% de participação feminina nesses cargos. Mas por que isso acontece?

“Quando eu vi os Jogos Olímpicos do Rio, a gente só tinha a treinadora chinesa, a Lang Ping. Uma mulher em 24 times e ela foi campeã olímpica, isso foi muito simbólico. Nesta edição, já teve duas. Mas realmente, eu me lembro que quando eu estava perto de parar de jogar, era uma coisa que eu pensava, a ausência feminina nos cargos de comando. Percebo que tem uma relação com esse afastamento dos atletas com o envolvimento extra-quadra, pouco se estimula os atletas a participarem de decisões. Acho que tudo isso é uma consequência”, afirmou a ex-líbero Fabi, que hoje é comentarista de vôlei do Grupo Globo.

Ela admite que pensou bastante sobre a possibilidade de seguir a carreira como treinadora justamente para tentar quebrar esse paradigma da ausência de mulheres ocupando esses postos. No entanto, a oportunidade de ser comentarista apareceu logo que ela se aposentou das quadras e esse objetivo de atuar como técnica foi adiado por enquanto.

“Eu fico com certo desconforto quando eu falo sobre esse assunto. Quando eu pensei no meu fim de ciclo, era uma coisa que eu pensava porque eu gosto dessa parte técnica, tática. Surgiu também, ao mesmo tempo, essa oportunidade de ser comentarista. Há também uma ausência feminina nesse lugar, então de certa forma, preenchi esse lugar também, mas ainda fico incomodada com a ausência feminina.”

Falta de interesse ou falta de oportunidade?

Até pouco tempo atrás, a gente sequer notaria a ausência das mulheres nesses postos de comando do esporte. Mas estamos, ainda bem, evoluindo nas discussões a respeito da participação feminina no universo esportivo como um todo e é inegável que a lacuna nas comissões técnicas fica evidente – especialmente em grandes eventos, como Copa do Mundo e Jogos Olímpicos.

Mas o debate não pode parar em “faltam mulheres interessadas em assumirem essas funções”. É possível até que faltem mesmo, diria que dá para cravar que há uma procura muito maior dos homens por cargos de treinadores do que de mulheres. Mas quais são os motivos que nos levam a esse cenário? É essa a análise que vai nos fazer evoluir.

Yoko Fuji, técnica da seleção brasileira de judô, foi a primeira mulher a treinar homens na modalidade no Brasil (Foto: CBJ)

O primeiro aspecto talvez seja justamente a falta de referências. Se a gente quase não vê mulheres exercendo a função de treinadoras, isso automaticamente passa um recado para as meninas que acompanham esporte: esse lugar não é pra você. Como diria a lendária tenista Billie Jean King, “you have to see it, to be it”, ou “você precisa ver para querer ser”. É difícil almejar ocupar uma posição sem ver ninguém igual a você desempenhando esta função antes.

“Tem um livro da Angela Davis (filósofa, escritora e ativista do Movimento Negro nos Estados Unidos) onde ela fala de mover as estruturas. Ela diz que quando uma mulher negra se move, ela tá movendo as estruturas. Precisa de alguém dar um passo, abrir esse caminho para ver se a gente dá uma sacodida. O estímulo, o exemplo, a gente precisa fomentar. A gente viu uma Olimpíada com essa questão de equidade muito em voga, mas mais do que isso, a gente viu uma participação feminina acontecer, ser protagonista. Então eu espero que a gente colha alguns frutos disso mesmo”, disse Fabi.

“É um tema bastante incômodo pra mim, principalmente. Eu penso muito sobre isso e também fico me perguntando por quê. Acho que é um questionamento que a gente pode fazer de forma pessoal, mas também de forma coletiva. Por que a gente pensa em nunca mais olhar para uma quadra, procura outras coisas pra fazer, quando parar de jogar? Por que esse afastamento? Por que a gente não continua, não busca se inserir?”.

Maternidade e família

Um dos motivos que costumam levantar para justificar a baixa procura das mulheres para cargos de treinadora num pós-carreira de atleta, por exemplo, é o fato de que muitas querem um tempo para se dedicar à família, à maternidade, etc. Uma cobrança comum feita pela sociedade e pelas próprias mulheres a si mesmas – e que não costuma acontecer com os homens.

“Eu vejo também uma questão das mulheres que não conseguem realizar alguns sonhos, o de ser mãe, por exemplo. Precisa parar de jogar, dar pausa na carreira pra ser mãe. E aí não tem nada natural, acaba que dificilmente elas começam a pensar nessa coisa de ser treinadora”, mencionou Fabi.

Bev Priestman manteve a escrita das treinadoras campeãs no futebol feminino (Foto: Koki Nagahama/Getty Images)

A esposa dela, Júlia Silva, que é gerente de seleções da CBV, chegou a comentar sobre isso na 45ª edição da Academia do Voleibol em outubro de 2020.

“Nascemos e crescemos em uma estrutura que lidamos com naturalidade com situações que teríamos que lutar para mudar. A questão da maternidade, por exemplo, é muito clara. A escolha entre ser mãe ou treinadora. Nenhum homem precisa fazer essa escolha. As mulheres também não deveriam ter que escolher. Mas é imposto, como se a mulher não pudesse se ausentar”, disse Júlia.

Mudando o cenário

A gente costuma dizer por aqui que o primeiro passo para resolver um problema é identificá-lo. Passamos muito tempo sem sequer notar a ausência das mulheres no esporte, tratando isso como “natural”. Hoje, já percebemos a necessidade de investir nos esportes femininos, questionamos ainda a falta de visibilidade para as mulheres nessa área e agora passamos a debater também a ausência de mulheres nos cargos de comando.

No futebol, talvez um dos esportes em que as mulheres sofram um preconceito ainda maior, a participação delas nas comissões técnicas desses Jogos Olímpicos também foi baixa (só 9% das 59 posições disponíveis). Mas há um escrita sendo mantida que serve como grande referência para inspirar outras mulheres a buscarem essa carreira.

Foto: CBF

A última vez que um treinador (homem) conquistou um ouro olímpico no futebol feminino foi em Sidney-2000. Desde então, tivemos quatro mulheres conseguindo este feito em cinco edições dos Jogos – a mais recente delas sendo Bev Priestman, que levou o Canadá ao ouro inédito nos Jogos de Tóquio.

“Falta visibilidade para o trabalho dessas mulheres para que elas sejam inspiração para que outras busquem essas posições. Isso gera um efeito multiplicador pra que outras mulheres vislumbrem isso. A gente muda essa realidade promovendo ações que facilitem o acesso das mulheres que querem ser técnicas a terem essa oportunidade”, avaliou a professora da USP e pesquisadora de Estudos Olímpicos, Katia Rubio.

Na seleção brasileira de futebol feminino também houve uma grande mudança nos últimos dois anos. Se em 2019, havia apenas duas mulheres em 11 membros da comissão técnica, hoje elas são seis em 13.

São exemplos de que há uma mudança em curso. E quanto mais a gente falar sobre isso, mais estaremos perto de mudar esse cenário e ter mais diversidade nos cargos de comando.

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