‘Roger nos quebrou ao meio’, diz repórter que perguntou sobre racismo

Foto: Reprodução

Era para ser somente uma coletiva de imprensa protocolar, após uma derrota do Bahia por 2 a 0 para o Fluminense no Maracanã. Mas uma pergunta que, inicialmente, também viria de praxe, como um registro comum de uma campanha que havia sido feita no início do jogo pelo Observatório da Discriminação Racial no futebol, abriu espaço para uma resposta histórica (em todos os sentidos) por parte do técnico Roger Machado.

“Queria que você falasse sobre a importância dessa campanha”, questionou a repórter da Fox Sports, Caroline Patatt, já na segunda rodada de perguntas para o treinador do Bahia. Ela fazia menção ao fato de Roger e Marcão, técnico do Fluminense, terem usado uma camisa do Observatório da Discriminação Racial no Futebol para chamar a atenção ao fato de que há apenas dois comandantes negros em times da série A do Brasileiro.

Na resposta, Roger deu uma aula. Falou de racismo estrutural, de escravidão, citou dados de população carcerária e mortes de mulheres e homens negros no Brasil e, por mais de cinco minutos, deixou a sala de coletiva de imprensa em silêncio, numa reação de perplexidade com tudo o que estava ouvindo e com a clareza de Roger em suas palavras.

Foto: AGIF

“Se eu pudesse usar uma palavra pra descrever o que eu senti foi: encantada. Quando ele começou a falar, eu até levantei. Eu esperei uma resposta protocolar, achei que ele ia dizer que a campanha era importante, que esperava ver mais técnicos negros no futebol, uma resposta burocrática que a gente infelizmente está acostumado a ouvir em coletiva. Mas a resposta dele foi uma aula. Era algo que tinha tudo pra ser uma pergunta comum, uma resposta comum, uma situação que a gente já viu outras vezes. Esse tipo de coisa a gente não ouve com tanta profundidade de jogadores e treinadores”, relatou Caroline em entrevista às dibradoras.

“Ele nos quebrou ao meio. Ninguém estava esperando. Foi uma pergunta burocrática. É óbvio que talvez se eu não tivesse perguntado, ninguém teria perguntado e a oportunidade teria passado. Mas não existe mérito. Foi ele que veio com aquilo tudo. Numa entrevista coletiva comum, sempre tem uma movimentação, um barulho, mas ali não. Quando ele começou a falar, todo mundo ficou em silêncio. Não se ouvia nenhum murmúrio, estava todo mundo boquiaberto com o que ele estava dizendo”, contou.

O vídeo com a resposta de Roger Machado viralizou nas redes sociais. Já tem quase um milhão de visualizações em um tuíte. A fala dele repercutiu em todos os lugares e chamou a atenção não só pelo conteúdo, mas também pela forma como o treinador abordou um assunto tão importante.

“Foi como se fosse um professor diante de uma classe, não de crianças, porque o assunto é sério, mas nossa reação foi essa, todo mundo quieto, silêncio profundo. O que mais me chamou a atenção foi a maneira de falar. Ele poderia ter tido um discurso mais agressivo, e não, ele foi propositivo. Isso fica de lição para todos nós, maneiras de abordagem pra fazer as pessoas nos entenderem um pouco mais. Acredito que a aula dele não foi apenas no sentido do conteúdo, mas também da forma. Espero que as pessoas possam se sentir tocadas por isso”, pontuou a repórter da Fox.

 

Clube engajado

O fato de Roger hoje comandar um clube como o Bahia, que tem se posicionado frequentemente sobre questões sociais importantes, como racismo, homofobia, machismo e desigualdade, também deu liberdade a ele para falar muito abertamente sobre tudo isso. No passado, o técnico havia sido questionado sobre o papel do futebol na divulgação dessas pautas tão essenciais para as minorias e não foi tão contundente na resposta. Aconteceu em 2018, quando Mariana Pereira perguntou a ele sobre o Dia Internacional da Mulher e o papel dos clubes na abordagem de temas como racismo, igualdade de gênero e outras coisas.

Foto: AGIF

Eu não sei se a gente se abstém tanto, acho que a gente poderia falar mais. O futebol é engajado com todas essas questões, envolvido em campanhas de várias formas. O esporte é uma grande ferramenta de inclusão, e eu vejo o futebol como um meio para que a gente consiga alcançar muitos assuntos relevantes que acontecem na sociedade. Incluindo a violência contra a mulher, o racismo. Acho que o futebol é aberto, não é tão aberto quando a gente gostaria, mas acho que a cada dia o futebol está se mostrando mais engajado nessas questões sociais”, disse ele à época.

Desta vez, no entanto, Roger foi muito mais forte e direto na sua resposta. Em cinco minutos, fez o discurso que precisava ser ouvido no futebol e foi categórico:

“A gente precisa falar sobre isso. Precisamos sair da fase da negação. Nós negamos. ‘Ah, não fala sobre isso’. Porque não existe racismo no Brasil em cima do mito da democracia racial. Negar e silenciar é confirmar o racismo. Minha posição como negro na elite do futebol, é para confirmar isso. O maior preconceito que eu senti não foi de injúria. Eu sinto que há racismo quando eu vou no restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Isso é a prova para mim. Mas, mesmo assim, rapidamente, quando a gente fala isso, ainda tentam dizer: ‘Não há racismo, está vendo? Vocês está aqui’. Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui”.

Lição para o Jornalismo

Mesmo após uma resposta tão simbólica, importante e contundente sobre um tema necessário no futebol, a pergunta que se seguiu à fala de Roger foi mais uma comum sobre tática e estratégia de jogo. Não é que essas perguntas não sejam relevantes ou necessárias, mas talvez aquele pudesse ter sido o momento de aprofundar ainda mais a questão. Até mesmo de olhar para o lado e se questionar quantos repórteres negros estavam ali, quantos(as) têm a oportunidade de trabalhar com o futebol. É aquele momento de sair da caixinha, que tem sido cada vez mais raro no Jornalismo Esportivo.

 

“A gente no Jornalismo entrou num modo automático pelo excesso de demanda. Você pensa no VT, no vivo que tem que fazer, no material que você tem que entregar. Mas essas exigências acabam te tirando do pensar na pauta, do sair da caixinha. Quando isso acontece ao natural, é uma coisa pra gente questionar também nosso próprio trabalho. Será que se a gente soubesse provocar mais, não poderia acontecer mais vezes (uma resposta mais aprofundada como essa)?”, afirmou Caroline Patatt.

“Em 14 anos de carreira, foi a resposta que mais me surpreendeu”, finalizou.

Veja na íntegra a resposta de Roger Machado:

Com relação à campanha, não deveria chamar atenção ter repercussão grande dois treinadores negros na área técnica, depois de ser protagonistas dentro do campo. Essa é a prova que existe o preconceito, porque é algo que chama atenção. À medida que a gente tenha mais de 50% da população negra e a proporcionalidade não é igual. A gente tem que refletir e se questionar. Se não é há preconceito no Brasil, por que os negros têm o nível de escolaridade menor que o dos brancos? Por que a população carcerária, 70% dela é negra? Por que quem morre são os jovens negros no Brasil? Por que os menores salários, entre negros e brancos, são para os negros? Entre as mulheres negras e brancas, são para as negras? Por que que, entre as mulheres, quem mais morre são as mulheres negras? Há diversos tipos de preconceito. Nas conquistas pelas mulheres, por exemplo, hoje nós vemos mulheres no esporte, como você, mas quantas mulheres negras têm comentando esporte? Nós temos que nos perguntar. Se não há preconceito, qual a resposta? Para mim, nós vivemos um preconceito estrutural, institucionalizado.

Quando eu respondo para as pessoas dizendo que eu não sofri preconceito diretamente, a ofensa, a injúria, ela é só o sintoma dessa grande causa social que nós temos. Porque a responsabilidade é de todos nós, mas a culpa desse atraso, depois de 388 anos de escravidão, é do Estado, porque é através dele que as políticas públicas, que nos últimos 15 anos foram instruídas, que resgataram a autoestima dessas populações, que ao longo de muitos anos tiveram negadas essas assistências básicas, elas estão sendo retiradas nesse momento. Na verdade, esses casos que vêm aumentando agora, de aumento de feminicídio, homofobia, os casos diretos de preconceito racial, é o sintoma. Porque a estrutura social, ela é racista. Ela sempre foi racista. Nós temos um sistema de crenças e regras que é estabelecido pelo poder, e o poder é o poder do Estado, é o poder das comunicações, é o poder da igreja. Quando esses poderes não enxergam ou não querem assumir que o racismo existiu e não querem fazer uma correção nesse curso, muitas vezes dizem que estamos nos vitimando, ou que há um racismo reverso.

A gente precisa falar sobre isso. Precisamos sair da fase da negação. Nós negamos. “Ah, não fala sobre isso”. Porque não existe racismo no Brasil em cima do mito da democracia racial. Negar e silenciar é confirmar o racismo. Minha posição como negro na elite do futebol, é para confirmar isso. O maior preconceito que eu senti não foi de injúria. Eu sinto que há racismo quando eu vou no restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Isso é a prova para mim. Mas, mesmo assim, rapidamente, quando a gente fala isso, ainda tentam dizer: “Não há racismo, está vendo? Vocês está aqui”. Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui.

Compartilhe

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn