Essa foto é de um treino de time profissional de futebol. Dá pra acreditar?

Foto: Leo Caldas / Folhapress

*Por Renata Mendonça e Roberta Nina

Essa foto de um treinamento do time feminino do Sport viralizou nos últimos dias. Ela mostra a bola escondida no gramado alto de um campo que sequer tem demarcação de linhas, anexo à Ilha do Retiro em Recife. São essas as condições que as atletas do clube treinam duas ou três vezes por semana no máximo para disputar o Brasileiro feminino.

A foto choca porque escancara a situação a que um clube profissional de futebol expõe suas atletas – mulheres. O Sport enfrenta inúmeras dificuldades financeiras, é verdade, está afundado em dívidas, mas alguém consegue imaginar qualquer categoria de uma equipe masculina do time pernambucano treinando nessas condições? Impossível. Só que é o time feminino, então tudo bem, acontece.

Ouvindo jogadoras que já atuaram no Sport nesses três anos em que o clube retomou o futebol feminino, soubemos que a situação do campo de treino delas sempre foi caótica por lá. Antes, havia menos grama, e muitos buracos de terra naquele espaço. O cenário era tão prejudicial para a prática do futebol, que pelo menos duas jogadoras romperam o ligamento do joelho em treinos naquele campo (e as condições do gramado contribuem para lesões). Além disso, a final do Pernambucano feminino de 2018 (que terminou com o Sport campeão) não pode ser disputada na Ilha do Retiro porque o time masculino faria um jogo lá cinco dias depois. A desculpa foi que as mulheres “estragariam o gramado”.

Gostaríamos de dizer que a realidade mostrada nessa foto é uma exceção. Mas infelizmente ela é só mais um caso do que por muito tempo foi aceito como “normal” no futebol feminino. Só nesta semana, tivemos diversos exemplos do descaso com o qual a modalidade é tratada por aqui: jogadoras do Santos tendo que dormir na recepção de um hotel porque a empresa de logística contratada pela CBF para o campeonato não havia reservado os quartos para a data certa; equipes viajando dias inteiros para o local de jogo sem intervalos para as refeições; jogos do Brasileiro sub-18 adiados por falta de luz no estádio; jogadoras cheias de câimbra durante as partidas do torneio da base porque estão sendo obrigadas a jogar dia sim, dia não, sem o intervalo recomendado de descanso e em gramados que não são da melhor qualidade.

Tudo isso fez com que dezenas de jogadoras começassem a se manifestar pedindo respeito. Pedindo para serem tratadas como profissionais. Alguém já viu um time profissional de futebol treinar em um campo sem marcação? Ou em um gramado onde a bola se perde tamanha é a altura da grama? Alguém já viu o time que é líder da Série A do Brasileiro ter de dormir na recepção de um hotel porque houve erro de logística da organizadora do campeonato? Então por que essas coisas acontecem no futebol feminino? E acontecem até mesmo na elite, na primeira divisão, com times que lideram o torneio, como foi com o Santos.

Migalhas

Os problemas em torno da modalidade são antigos e só mudam de clube. Eles sempre voltam à tona, seja em campeonatos nacionais, regionais ou sul-americanos.

É, infelizmente, até comum ver acontecer coisas como: falta de ambulância ou de policiamento em jogos, ausência de vestiário adequado para as mulheres, desmaios acontecendo numa partida às três da tarde por causa de calor excessivo em jogos do feminino ao redor do Brasil. Algumas vezes essas situações ganham os holofotes da mídia, mas na maioria elas passam batido.

Elencamos aqui alguns episódios marcantes dos últimos anos:

Organizado pela Conmebol, a competição feminina acontece desde 2010 com duração de menos de um mês e o tempo de descanso entre um jogo e o outro é muito curto, prejudicando o desempenho das atletas.

Em 2015, o São José passou por dificuldades na Colômbia e sofreu com a falta de estrutura e de logística da competição. Além disso, a alimentação também era limitada, e as jogadoras tinham direito de comer apenas 300 gramas de comida por refeição. Sem falar na iluminação do campo nas partidas, que era muito precária. 

Campo esburacado e sem iluminação na Colômbia (Foto: Tião Martins/ PMSJC)

Em 2017, a Conmebol precisou suspender o campeonato por 72 horas por conta de uma intoxicação alimentar que atingiu dezenas de jogadoras das delegações participantes.

E em 2018, com o torneio realizado em Manaus, aconteceu atraso na emissão das passagens aéreas para as equipes. Faltando somente dois dias para o sorteio acontecer, o Governo do Amazonas, através da Secretaria de Estado de Esporte, Juventude e Lazer (Sejel), garantiu parte do dinheiro das passagens aéreas das atletas. Além disso, inicialmente todos os jogos estavam previstos para acontecer na Arena da Amazônia, algo impensável dado que eram pelo menos duas partidas por dia na primeira fase, sobrecarregando demais o gramado – percebendo isso, houve a transferência de alguns jogos no meio da competição. 

  • Sem vestiário no Independência
Meninas do Nacional se trocam para o jogo contra o América em tenta improvisada no Independência (ANA PAULA COELHO, JOGADORA DO NACIONAL)

Em 2015, as equipes femininas do América-MG e Nacional se enfrentaram uma preliminar do jogo masculino entre o mesmo América-MG contra o Botafogo, em partida válida pela 19ª rodada da Série B no estádio Independência. O momento tinha tudo para ser especial, mas as jogadoras foram impedidas de de usar os vestiários do estádio e precisaram improvisar, montando tendas para que pudessem se trocar. Sem banheiro, sem água, sem bancos.

Em abril deste ano, uma imagem ficou famosa onde as jogadoras do time feminino do São Paulo apareceram cobrindo o banco de reservas com sacos plásticos para se protegerem do frio e da chuva. Era a segunda rodada do Campeonato Paulista Feminino com São Paulo e Palmeiras em campo, no Estádio Municipal Antônio Soares de Oliveira, em Guarulhos. 

O banco de reservas do clube visitante sem estrutura no estádio de Guarulhos (Foto: Divulgação)

Na ocasião, o administrador do Estádio revelou que o problema foi causado pelas fortes chuvas que atingiram o local um dia antes da partida acontecer.

Hora da mudança

Mais do que nunca as atletas, dirigentes e treinadoras têm pedido maior atenção, apoio e estrutura para o futebol feminino.

Ao final da Copa do Mundo deste ano, muito se falou em cobrar mais “profissionalismo” das atletas. Mas como é possível exigir profissionalismo quando a estrutura oferecida para elas é completamente amadora? Dá para chamar de profissional um campo que tem grama até o tornozelo e sequer carrega a marcação das linhas do jogo? Antes de questionar o profissionalismo das atletas, é preciso questionar a falta de profissionalismo de quem gere o futebol feminino por aqui. É inadmissível que uma atleta de alto-rendimento não tenha o mínimo de estrutura para poder desempenhar seu papel.

Já passou da hora de tratarem o futebol feminino com o respeito que ele merece.

 

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