Narradoras vs X (Twitter): bastidores de um jogo que enche as redes de ataques misóginos

Foto: Reprodução X

Por Ana Carolina Andrade, Jeová Pereira e Wanise Martinez

Matéria de referência: https://deixaelasnarrarem.my.canva.site/

Um jogo de futebol dura 90 minutos, mas quando a misoginia entra em campo nas redes sociais fica claro que vai ter acréscimo. É que detrás da tela do celular ou do computador, não tem cartão vermelho nem apito final que segure as publicações dos haters do X (antigo Twitter) atacando e ofendendo as narradoras. Sim, o alvo para todo tipo de insulto – do pejorativo “ruim” ao agressivo “puta” – são elas, narradoras, substantivo feminino e plural.

Com o objetivo de tentar compreender alguns dos impactos sociais associados à crescente misoginia nas redes sociais, acompanhamos os comentários sobre essas profissionais durante a Copa do Mundo Feminina da Austrália, entre julho e agosto, na rede X. Especialistas em redes sociais e comunicação, violência online de gênero e direito digital consultados pela reportagem criticam a redução no controle de conteúdo ofensivo da plataforma X e ressaltam a necessidade urgente de políticas de regulação para as redes sociais.

Foto: Reprodução / Twitter

Segundo os dados compilados por esta reportagem, existem termos utilizados pelos ​usuários da plataforma X em seus comentários que violam expressamente os termos e ​políticas de uso da maioria das plataformas de mídias sociais, por serem ​diretamente ofensivos e se configurarem como discurso de ódio, em geral sendo ​removidos e bloqueados pelos filtros de segurança – ainda que, no caso do X, muitos ​deles permaneçam publicados.

No entanto, também apuramos uma série de outros termos que têm sido usados com muita frequência e que buscam se categorizar como opinativos, debaixo do argumento da liberdade de expressão, mas que podem ser compreendidos como pejorativos, potencialmente hostis para as mulheres e que estão sendo publicados de maneira sutil pelas pessoas, de forma a escapar dos filtros e bloqueios das redes sociais. Dá para conferir quais são os termos desses dois tipos que mais aparecem no X e entender como funcionou a nossa coleta de postagens logo abaixo.

QUEM ESTÁ POR TRÁS DAS TELAS?

A reportagem coletou e analisou postagens publicadas no X entre o início da Copa ​do Mundo Feminina, no dia 20 de julho, e o fim do campeonato, que encerrou em ​20 de agosto. As pesquisas por posts foram realizadas utilizando o recurso de busca ​avançada da plataforma para filtrar publicações que se referiam somente às ​narradoras.

Para compreender o teor dos posts que ​escondiam ofensas utilizando o discurso ​de liberdade de expressão, as buscas ​pelas publicações foram divididas em ​dois filtros: opinativo e ofensivo. No ​filtro opinativo foram coletadas ​postagens que criticavam a atuação das ​narradoras, mas que não utilizavam um ​xingamento explícito, como “vagabunda”, ​por exemplo. Utilizando o filtro ofensivo, ​coletamos todas as postagens que ​continham xingamentos explícitos às ​narradoras.

O levantamento resultou em um total de 621 postagens e 990 citações de palavras usadas para buscar posts com críticas à atuação das profissionais, somando as buscas dos dois filtros. As palavras mais presentes nas postagens foram “ruim” e “horrível”, que fazem parte do filtro opinativo. Dentro do que a reportagem classificou como ofensivo, as palavras “puta” e “lixo” foram as que mais apareceram, sendo a primeira com 18 menções e a segunda com 15.

ELES TENTAM DRIBLAR AS REDES

Total de postagens coletadas de 20 de julho a 20 de agosto, período em que aconteceram os jogos da Copa do Mundo Feminina de 2023

A análise também contou com a identificação dos sexos dos autores das publicações coletadas. Das 621 postagens, 566 usuários diferentes fizeram críticas à atuação das narradoras. Destes, 410 são homens, o que representa 72,44% do total. Já as mulheres somam 141 usuários, o que corresponde a 24,91%. Não foi possível identificar o sexo de 15 usuários , portanto, 2,65% dos posts foram publicados por perfis indefinidos.

OS PERFIS POR TRÁS DAS CRÍTICAS

Distribuição de gênero dos usuários que criticam narradoras de futebol

A PROBLEMÁTICA DO X

“Tudo isso que não é pego pelos termos de uso das plataformas acaba ficando ali ​como se fosse parte do debate, o que gera consequências pesadas, principalmente ​quando a gente pensa nesse comportamento de massa. Como as mulheres recebem ​uma quantidade muito grande desse tipo de comentário, isso vai refletir em efeitos ​que são ameaçadores e até silenciadores”, explica Mariana Valente, diretora do ​InternetLab, professora da Universidade de Saint Gallen, na Suíça, e autora do livro ​“Misoginia na internet: uma década de disputas por direitos” (‎Fósforo Editora).

Segundo a estudiosa, a simples remoção do conteúdo pejorativo ou a análise dos discursos individuais não é a solução para os problemas no X e em outras redes sociais. Existe uma questão mais estrutural na maneira como acontece o debate e a dinâmica nessas plataformas, e que poderia e deveria ser mais bem visibilizado e aprofundado por elas, mas que ainda não é.

“Várias pesquisas que têm sido feitas comparando as diferentes plataformas apontam o X como um lugar especialmente problemático, e uma das razões disso é o fato da arquitetura mais aberta dessa rede, aberta ao debate de pessoas que não se conhecem, ao conteúdo ser mostrado para pessoas que não seguem aquela pessoa que postou”, afirma Mariana Valente.

“Há toda uma arquitetura e um sistema de incentivos que faz com que esse debate por lá seja mais confrontativo e mais tóxico, violento mesmo. Somado a isso, estão as práticas de moderação de conteúdo que foram ficando explicitamente menos protetivas”, completa Mariana.

Essas manifestações de violência online que parecem mais opinativas têm como ​forte característica o fato de serem escorregadias, difíceis de delimitar e, às vezes, ​até mesmo de se enquadrar como violência.

ENTRE 2021 E 2022, HOUVE UM AUMENTO DE 251% NOS CASOS DE DENÚNCIAS DE MISOGINIA E OPRESSÃO CONTRA MULHERES NA INTERNET, SEGUNDO A SAFERNET, QUE É A MAIOR ORGANIZAÇÃO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS EM AMBIENTE VIRTUAL DO PAÍS.

“Primeiro de tudo, temos de saber que ainda existe uma noção de que aquilo que acontece online é menos nocivo, por ter uma materialidade supostamente menor, ainda que também seja prejudicial e conte com aspectos muito complexos, como a criação de uma esfera de autorização da violência de gênero online em que esses comentários vão sendo normalizados e as pessoas entendem que, entre aspas, está tudo bem xingar uma narradora no Twitter”, diz Letícia Sabbatini, que é pesquisadora da Escola de Comunicação da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ela também cita que é muito comum que os ataques e ofensas online contra ​mulheres, como por exemplo esses que têm como alvo as narradoras de futebol, ​venham revestidos e camuflados de humor.

A pesquisadora argumenta que, como isso ainda esbarra muito no discurso da liberdade de ​expressão, o que vemos é a instrumentalização e a deturpação desse direito, que ​vai sendo utilizado para garantir que as pessoas tenham o direito de agredir alguém, ​mas não que aquele alguém tenha o direito de se expressar contra a agressão.

“Como pesquisadores, notamos que é comum esse tom de brincadeira, de emojis que denotam risadas, de memes que são utilizados justamente para camuflar o teor violento da mensagem. E o que acontece quando esses agressores fazem isso? Eles conseguem se respaldar de alguma forma, porque se forem acusados de serem misóginos, vão dizer que se tratava apenas de uma brincadeira, conseguindo até mesmo contestar essa argumentação e transformá-la em crítica”, conclui a pesquisadora da FGV.

MISOGINIA É TRENDING

Durante a investigação da reportagem, percebemos que esse comportamento tóxico dos usuários do X em relação às narradoras de futebol fica bastante evidente quando comparado aos comentários que são feitos sobre os narradores. Eles também são alvo de ataques e ofensas na rede social, mas não da mesma maneira e nem na mesma frequência que elas. Inclusive, no caso das narradoras, muitas vezes nem há menção dos seus nomes, apenas comentários como “essa narradora é péssima” ou “que narradora escrota”, o que faz com que muitas delas sejam xingadas por jogos que sequer narraram.

“As mulheres não serem chamadas pelos nomes delas tem muito a ver com uma rejeição à ocupação das mulheres em certos espaços. E, neste caso, estamos falando de uma dupla camada, pois trata-se de mulheres comunicadoras em geral, que violam as normas tradicionais de gênero de discrição, de não se posicionar publicamente e não estar nos espaços públicos de representação, e também violam as normas de divisão de espaços relacionadas ao futebol”, argumenta a especialista Mariana Valente.

Essa também é a opinião de Letícia Sabbatini, que acredita que esses ataques no X que despersonificam as narradoras de futebol, e mulheres de maneira geral, são manifestações muito explícitas da misoginia. “Ao negar o reconhecimento delas enquanto sujeitos sociais e demonstrar incômodo com as suas atuações em um espaço de liderança, como no caso da narração do jogo de futebol, essas pessoas mostram não apenas um ódio às mulheres, mas fomentam uma espécie de ferramenta que, ao mesmo tempo que alimenta, é também alimentada por um contexto patriarcal”, explica.

90% DAS PESSOAS TÊM ALGUM TIPO DE PRECONCEITO CONTRA AS MULHERES, DIZ O RELATÓRIO “ÍNDICE DE NORMAS SOCIAIS DE GÊNERO 2023” DO PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). NO BRASIL, ESSE ÍNDICE É DE 84,5% E INDICA QUE A DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NÃO DIMINUIU DESDE A ÚLTIMA DÉCADA.

X MAIS INSEGURO NÃO BARRA DISCURSO MISÓGINO

Essa intensificação de ataques e ofensas de gênero nas plataformas, em especial no X, está bastante ligada ao contexto político dos últimos anos, em que muitas figuras de destaque e os próprios parlamentares, por várias vezes, alimentaram a esfera de autorização da violência, tecendo comentários misóginos e sexistas sobre as mulheres que ocupam diferentes cargos de poder em diferentes áreas.

Com isso, foi-se criando uma sensação de impunidade favorecida pela própria arquitetura e cultura do X, de dar muito espaço para discussões que são mais acaloradas sobre assuntos diversos e, junto a tudo isso, existe a ausência de políticas de regulação. Essa dificuldade também foi sentida durante a investigação desta reportagem, na captação do número de comentários e na análise da rede social como um todo. E isso não é de agora, pois desde a chegada de seu novo proprietário, o empresário Elon Musk, o X ficou ainda mais inseguro, com os próprios funcionários e ex-funcionários denunciando que a mídia não seria mais capaz de proteger os usuários de ofensas misóginas, discurso de ódio e desinformação.

Assim como outras redes sociais no Brasil, o X ainda não segue uma legislação específica de segurança que estabeleça normas e deveres mais rigorosos de forma a reduzir o discurso de ódio e outros conteúdos violentos que são divulgados por meio de comentários, vídeos e outros formatos em sua plataforma.

“As plataformas não são apenas intermediárias, elas contribuem direta ou indiretamente para a circulação e a produção desse tipo de violência e também para a aceleração da circulação da violência, por isso há a necessidade urgente de regulação. Com essa autorregulação segundo os termos que vemos hoje, fica fácil para as plataformas não olharem para essas questões, ou olharem apenas de forma pouco transparente e muito rasa”, declara Letícia Sabbatini.

Entre a linha tênue que define o que é opinião ou insulto, estão os recursos e artigos de lei à disposição de quem se sente ofendido por uma postagem nas redes sociais. Em 2014, a aprovação da Lei nº 121.965, conhecida como Marco Civil da Internet, determinou princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, o que inclui responsabilidades por parte das plataformas de redes sociais.

Segundo Thays Bertoncini da Silva, advogada especialista em Direito Digital Aplicado e Direito das Plataformas Digitais pela Fundação Getulio Vargas (FGV), conteúdos que escondem ofensas por trás de um discurso que utiliza a liberdade de expressão como argumento devem ser analisados em diferentes critérios. Embora ainda não exista legislação específica, há outros dispositivos legais que dão suporte para a vítima quando a ofensa está relacionada com a misoginia. “No âmbito penal, uma postagem ofensiva pode se enquadrar nos crimes de injúria, difamação e ameaça. No âmbito cível, é possível a responsabilização do usuário para fins de retratação e indenização da vítima por danos morais”, esclarece Thays.

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