Foto: Catherine Ivill/Getty Imagens
A seleção espanhola feminina de futebol mostrou que não basta resolver os problemas dentro de campo para se dar por satisfeita. A equipe superou os desentendimentos internos para ser campeã da Copa do Mundo Feminina em agosto. Mas o beijo não consentido dado por Luis Rubiales, então presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), na jogadora Jenni Hermoso durante a cerimônia de premiação do Mundial reacendeu o alerta sobre as queixas levantadas pelas atletas há mais de um ano.
Passado um mês do fim da Copa, a festa pela conquista do título inédito da Espanha foi ofuscada pelo assédio registrado por emissoras de televisão de várias partes do mundo. E uma série de episódios se desenrolou desde então: da queda de braço travada por Rubiales para manter-se no poder (seguida pela sua renuncia e pela demissão do técnico Jorge Vilda) até as exigências das atletas por mudanças estruturais na Federação Espanhola sob ameaça de não voltarem a defender a seleção.
Mas o impasse entre atletas e Federação Espanhola se deparou com a Liga das Nações da Uefa, nesta semana – a Espanha enfrentará a Suécia, na sexta-feira (22), e a Suíça, na terça (26). A nova técnica da seleção espanhola Montse Tomé, que assumiu a contragosto da maioria das jogadoras por ser remanescente da antiga comissão de Vilda, anunciou a convocação na última segunda-feira (18) sem a atacante Jenni Hermoso e com 19 atletas que se recusaram a voltar à seleção caso a federação não realizasse mudanças estruturais.
Sob protestos, mas com medo de punições, todo o elenco convocado se apresentou na concentração da seleção da Espanha nesta semana. Na manhã desta quarta-feira (20), porém, atletas, dirigentes e membros do Conselho Superior de Esportes (CSD) e do sindicato Futpro entraram em acordo após uma reunião de 7 horas. A maioria das jogadoras aceitou disputar a Liga das Nações diante da promessa da Federação por “mudanças profundas e imediatas” em sua estrutura. Mapi León e Patri Guijarro, que também se negaram a defender a Espanha na Copa do Mundo, foram as únicas que deixaram a equipe.
Veja a linha do tempo dos episódios envolvendo a queda de braço entre jogadoras e Federação Espanhola:
Setembro de 2022: Carta de 15 jogadoras contra Jorge Vilda
Em setembro de 2022, 15 jogadoras da seleção espanhola exigiram a demissão do técnico Jorge Vilda, sob a ameaça de não disputar a Copa do Mundo da Austrália e Nova Zelândia. O treinador era contestado pelos métodos de treino, gestão do grupo e resultados ruins à frente da equipe. Cada uma delas encaminhou a exigência, por um e-mail, ao presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales. As atletas também cobravam novos rumos no Comité Nacional de Futebol Feminino, presidido por Rafael del Amo.
Julho e agosto de 2023: A Copa do Mundo
Mesmo sem ter o pedido atendido, parte dessas atletas, como Bonmatí e Putellas, deram o braço a torcer e aceitaram defender a Espanha para disputar a Copa do Mundo. Já algumas jogadoras de ponta como Patri Guijarro e Mapi León abdicaram do sonho de disputar o torneio. O relacionamento delicado entre as atletas e o técnico Jorge Vilda foi um assunto evitado durante o mundial, tanto pelas jogadoras quanto pela comissão técnica. Mas o clima ruim era evidente, até as comemorações eram separadas. Entre muitas turbulências, a Espanha superou problemas extracampo e conquistou o inédito título mundial. A seleção espanhola venceu a Inglaterra por 1 a 0 na final, disputada em 20 de agosto.
20 de agosto: O beijo não consentido
Na cerimônia de premiação da Copa do Mundo de 2023, o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, deu um beijo na boca sem consentimento da atacante Jenni Hermoso, uma das principais jogadoras da maior conquista da seleção espanhola no futebol. As câmeras de televisão do mundo inteiro registraram o assédio.
A jogadora chegou a dizer que “não tinha gostado” do beijo e que “nada poderia ter feito”, já que tinha sido pega de surpresa. A declaração foi feita em uma transmissão ao vivo nas redes sociais, pouco depois da conquista do título, direto dos vestiários da seleção espanhola.
Depois, a jogadora se pronunciou por meio da Associação de Futebolistas Profissionais da Espanha (Futpro): “Meu sindicato Futpro e minha agência TMJ estão encarregados de defender meus interesses e serem interlocutores neste assunto”. A nota emitida pelo Futpro em nome de Hermoso expressou a “firme e total condenação de quaisquer condutas que atentem contra a dignidade das mulheres”, solicitou à RFEF que implemente os protocolos necessários e adote medidas exemplares diante do ocorrido e afirmou que denunciou o dirigente ante o Conselho Superior de Desporto.
25 de agosto: A tentativa do Rubiales de se manter no poder
Após o beijo não consentido em Jenni Hermoso, Luis Rubiales foi criticado por diversas autoridades da Espanha, entre elas o premiê em exercício Pedro Sanchez, e foi denunciado no Conselho Superior de Desporto (CSD) do seu país dois dias depois do ocorrido. Ainda assim, em assembleia geral extraordinária da Federação Espanhola realizada cinco dias depois, o dirigente discursou contra o “sensacionalismo do falso feminismo” e repetiu que não iria renunciar ao cargo de presidente da RFEF.
“Chegou o momento de dizer algo. Vocês acreditam que isso é motivo para sofrer o cancelamento que estou sofrendo? É tão grave para que eu saia? Não vou renunciar, não vou renunciar, não vou renunciar”, discursou Rubiales, que foi aplaudido por todo o auditório cheio de dirigentes do futebol.
Antes de reafirmar que se manteria no poder, Rubiales contou outra versão sobre o beijo na atacante da seleção da Espanha: “No momento em que Jenni apareceu, ela me levantou do chão e agarrou meus quadris. Quase caímos e quando nos levantamos nos abraçamos e eu disse a ela: ‘Esqueça o pênalti, sem você não teríamos vencido a Copa do Mundo’. Ela me disse que eu era um craque e eu falei: ‘Um beijinho?’. Ela entendeu e viu isso como uma brincadeira. Aí começam essas pressões, o silêncio da jogadora e uma afirmação que não consigo entender. Aqui está acontecendo um assassinato social, estou sendo acusado de matar”.
25 de agosto: Hermoso desmente Rubiales e atletas se recusam a defender seleção
Jenni Hermoso desmentiu Rubiales: “Quero esclarecer que em nenhum momento consenti no beijo que ele me deu e em nenhum caso procurei levantar o presidente. Não tolero que minha palavra seja questionada e muito menos que se inventem palavras que eu não tenha dito”.
A atacante de 33 anos recebeu apoio massivo das companheiras. As campeãs mundiais anunciaram que não voltariam a defender a seleção espanhola se Luis Rubiales e os dirigentes da sua gestão seguissem na Federação Espanhola. O protesto em apoio à Hermoso foi assinado por cerca de 80 jogadoras, entre elas as 23 campeãs da Copa do Mundo.
26 de agosto: Fifa suspende Rubiales do futebol por 90 dias
No dia seguinte ao discurso de Rubiales afirmando que não renunciaria ao cargo de presidente da Federação Espanhola, o Comitê Disciplinar da Fifa, presidido pelo colombiano Jorge Iván Palacio, anunciou a suspensão provisória do dirigente de todas as atividades relacionadas ao futebol, nos níveis nacional e internacional. A Fifa afirmou que a suspensão teria duração inicial de 90 dias e seguiria até que o processo disciplinar, aberto pela entidade quatro dias após o beijo, fosse concluído.
5 de setembro: Hermoso processa Rubiales na Justiça espanhola
Em 5 de setembro, Jenni Hermoso abriu um processo contra Luis Rubiales pelo beijo forçado. A promotoria da Audiência Nacional (ANE) já havia aberto uma investigação preliminar contra o dirigente por “suposto crime de assédio sexual”, mas a queixa da jogadora era importante para que o processo judicial avançasse.
Hermoso afirmou que se sentiu “vulnerável e vítima de uma agressão” e que para ela o ato foi “impulsivo, machista, inadequado e sem qualquer tipo de consentimento da minha parte”. Uma reforma do Código Penal espanhol recente determinou que um beijo não consensual pode ser considerado agressão sexual, uma categoria criminal que agrupa todos os tipos de violência sexual.
5 de setembro: Jorge Vilda é demitido da Federação Espanhola
Em 5 de setembro, a Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) anunciou a demissão de Jorge Vilda dos cargos de técnico da seleção feminina da Espanha e de diretor de futebol feminino da entidade. O treinador era alvo de críticas e protestos de grande parte das jogadoras espanholas, mas foi mantido nos cargos da federação por Luis Rubiales. No discurso em que Rubiales afirmou que não renunciaria, Vilda fez coro aos aplausos ao dirigente na assembleia geral extraordinária da Federação Espanhola.
5 de setembro: RFEF promove assistente de Vilda à técnica da seleção
No mesmo dia da demissão de Jorge Vilda, a Federação Espanhola anunciou Montse Tomé como treinadora da seleção espanhola, sendo a primeira mulher a ocupar o cargo. Mas a ex-jogadora de 42 anos não era a opção que as jogadoras entendiam como a ideal, já que ela era assistente técnica adjunta de Jorge Vilda. Além disso, essa é a primeira vez que Montse Tomé comanda uma equipe profissional de futebol feminino.
15 de setembro: Jogadoras cobram mais mudanças
Em 15 de setembro, 39 jogadoras, incluindo 21 das 23 campeãs do mundo, emitiram um novo comunicado no qual afirmavam que não voltariam a defender a seleção se a Federação Espanhola de Futebol (RFEF) não promovesse mais mudanças. A substituição do técnico Jorge Vilda pela sua assistente Montse Tomé e o afastamento do então presidente Luis Rubiales, que depois renunciou ao cargo, não foram consideradas suficientes para as atletas espanholas após o escândalo do beijo não consentido de Luis Rubiales em Jenni Hermoso.
“As alterações especificadas para a RFEF baseiam-se na tolerância zero para com pessoas que, nos seus empregos dentro da RFEF, incitaram, ocultaram ou aplaudiram atitudes que vão contra a dignidade das mulheres. As mudanças produzidas até agora não são suficientes para que as jogadoras se sintam seguras”, dizia um trecho do comunicado. Nele, as atletas apelaram à RFEF para reestruturar o antigo gabinete de Rubiales, o Secretariado-Geral, o Departamento de Comunicação e Marketing e a chamada Unidade de Integridade.
Diante do protesto das atletas, a RFEF adiou uma coletiva de imprensa na qual a recém-nomeada técnica Montse Tomé anunciaria a convocação da seleção para a Liga das Nações, em que a Espanha enfrentará a Suécia, na sexta-feira (22), e depois a Suíça, na terça (26), em Córdoba.
18 de setembro: Convocação da Espanha sem Jenni Hermoso
Montse Tomé foi apresentada oficialmente como a nova técnica da seleção espanhola na última segunda-feira (18), quando também divulgou a lista de convocadas da Espanha para a Liga das Nações Feminina da Uefa. A surpresa foi a ausência da atacante Jenni Hermoso, vítima do assédio pelo beijo não consentido de Luis Rubiales. A justificativa da treinadora foi que essa era “a melhor forma de protegê-la”. Outras 15 atletas campeãs do mundo foram chamadas para os jogos contra a Suécia.
Comunicado en relación a los últimos acontecimientos del día de hoy // Official Statement regarding today's latest events #SeAcabó pic.twitter.com/OXMmfyPGz5
— Jenn1 Hermos0 (@Jennihermoso) September 18, 2023
“Estamos com Jenni em tudo e com todas as jogadoras. A única forma de ajudá-la é ouvi-la. Acreditamos que a melhor forma de protegê-la é assim. Temos Jenni, trabalho com ela há cinco anos. Concordamos como colega de profissão. Gosto de ouvi-las, de estar perto delas. Tudo o que aconteceu nesses dias é muito desagradável”, explicou Montse Tomé, na coletiva de imprensa da convocação.
19 de setembro: Jogadoras decidem se apresentar à seleção, mesmo sob protesto
Contrárias à nomeação de Montse Tomé à técnica da seleção da Espanha, 19 das 23 jogadoras que foram convocadas assinaram o manifesto em que renunciavam defender a seleção até que fossem realizadas mudanças estruturais na federação de futebol do país. Mas apenas Jenni Hermoso foi atendida no pedido de não ser convocada. Ainda assim, a atacante fez questão de demonstrar seu total apoio às companheiras de seleção e questionou a justificativa dada pela treinadora pela sua ausência.
“Quero mostrar meu apoio total a minhas companheiras que hoje foram surpreendidas e forçadas a reagir ante outra situação lamentável ocasionada pelas pessoas que hoje em dia seguem tomando decisões dentro da RFEF. Também gostaria de deixar algo muito claro. Hoje tentaram argumentar que o ambiente seria seguro para minhas companheiras quando na mesma entrevista coletiva se comunicou que não me convocam para me proteger. Proteger-me de que? Ou de quem?”, publicou Hermoso nas redes sociais, após a convocação de Montse Tomé.
Mesmo sob protesto, as jogadoras decidiram se apresentar à seleção espanhola pela preocupação de receber punições. Segundo o jornal catalão “Sport”, elas consultaram profissionais do meio jurídico e sindical e foram orientadas a se apresentarem. A legislação esportiva espanhola prevê que atletas que recusam convocação para uma seleção nacional sem apresentar uma justificativa razoável estão sujeitos a penalidades que vão desde multa a suspensão de até cinco anos.
20 de setembro: Mapi e Patri deixam seleção, restante entra em acordo com Federação
Mapi León e Patri Guijarro deixaram a concentração da seleção da Espanha na manhã desta quarta-feira (20). As duas estavam entre as 15 jogadoras que não disputaram a Copa do Mundo em protesto à Federação Espanhola. “A situação para Patri e para mim é diferente ao resto das companheiras. Não foram nem a maneira nem as formas de voltar. Não estamos em condição de dizer: “agora volta e…”. É um processo. Estamos contentes porque estão produzindo mudanças e nisso apoiamos totalmente nossas colegas, como fizemos de fora nesse período”, comentou Mapi.
As demais jogadoras convocadas pela técnica Montse Tomé aceitaram continuar com a seleção espanhola para disputar a Liga das Nações Feminina. O acordo aconteceu após uma reunião de 7 horas entre atletas, dirigentes e membros do Conselho Superior de Esportes (CSD) e do sindicato Futpro, realizada nesta quarta-feira. A Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) prometeu que fará “mudanças profundas e imediatas” em sua estrutura.
A presidente do Futpro, Amanda Gutiérrez, disse que as jogadoras veem essa conduta como uma reaproximação: “É o início de um longo caminho pela frente. Mais uma vez, as atletas se mostraram coerentes, e a grande maioria decidiu ficar por causa desse acordo”.
Jogos da Espanha na Liga das Nações
Espanha x Suécia – Sexta-feira (22), às 13h30 (de Brasília)
Espanha x Suíça – Terça-feira (26), às 16h (de Brasília)