Aplauso ao assediador na Espanha é tentativa de silenciar campeãs do mundo: não vão conseguir

Presidente da Federação Espanhola diz que não irá renunciar, relativiza assédio em Hermoso e é aplaudido por técnicos e dirigentes espanhóis

Passaram-se cinco dias do maior feito da história da seleção espanhola no futebol feminino. Em vez de estarmos exaltando as jogadoras pela conquista inédita da Copa do Mundo, nos deparamos com a necessidade de combater aquela violência diária com a qual aprendemos a lidar desde crianças – e da qual não nos livramos nem mesmo no auge das nossas carreiras: o assédio.

Jenni Hermoso subiu ao palco da premiação da Copa do Mundo como uma das principais jogadoras dessa conquista. Aos 33 anos, ela foi titular e fundamental no meio-campo da ofensiva Espanha que encurralou a Inglaterra numa final perfeita. O título veio coroar a campanha de um time que buscava, para além de mostrar o melhor do seu futebol, ter voz nas suas reivindicações. Mas foi justamente quando os holofotes do mundo inteiro se voltavam pra elas que um homem tentou roubar a cena.

Do alto do seu poder de presidente da Federação Espanhola de Futebol (RFEF) e da absoluta certeza da impunidade, Luis Rubiales tascou um beijo na boca de Jenni Hermoso sem o menor constrangimento. As câmeras das televisões do mundo inteiro estavam ali filmando, registrando a cena, garantindo a prova cabal do assédio e, ainda assim, Rubiales não pestanejou. A ousadia é condizente com a realidade dos homens brancos e poderosos: seus abusos são relativizados – e mais, são aplaudidos, aclamados, com a conivência de um auditório inteiro.

“No momento em que Jenni apareceu, ela me levantou do chão e agarrou meus quadris. Quase caímos e quando nos levantamos nos abraçamos e eu disse a ela: ‘Esqueça o pênalti, sem você não teríamos vencido a Copa do Mundo’. Ela me disse que eu era um craque e eu falei: ‘Um beijinho?’. Ela entendeu e viu isso como uma brincadeira. Aí começam essas pressões, o silêncio da jogadora e uma afirmação que não consigo entender. Aqui está acontecendo um assassinato social, estou sendo acusado de matar”, disse Rubiales, em assembleia geral extraordinária da Federação Espanhola realizada nesta sexta-feira (25).

“O sensacionalismo do falso feminismo. A imprensa, grande parte da imprensa deste país, matou-me e continuará a fazê-lo, mas estou tranquilo porque digo a verdade. Não é legal, mas não me importo. É uma questão de humildade. Estou disposto a ser difamado por dizer a minha verdade”, prosseguiu.

“Chegou o momento de dizer algo. Vocês acreditam que isso é motivo para sofrer o cancelamento que estou sofrendo? É tão grave para que eu saia? Não vou renunciar, não vou renunciar, não vou renunciar” – e, nesse momento, foi aplaudido por todo o auditório.

O discurso do presidente da Federação Espanhola – e vice-presidente da Uefa, diga-se – diante dos dirigentes das federações regionais de futebol da Espanha foi tenebroso, mas, ao mesmo tempo (e infelizmente), não nos surpreendeu.

Quando Rubiales coloca a responsabilidade do beijo na suposta atitude de Jenni Hermoso, quando diz que foi “espontâneo” e “acima de tudo consentido” – ignorando a manifestação da própria jogadora, que já afirmou ter se sentido incomodada -, quando destaca o mérito apenas de Jorge Vilda, treinador alvo de protestos das jogadoras, na conquista do título mundial e, quando finalmente grita ao auditório que não irá renunciar, ele tem a certeza de que os homens que ali estão vão concordar com ele.

Todos cúmplices. Firmados no pacto da masculinidade que sempre tenta absolvê-los. “Foi uma brincadeira.” “Não foi nada demais, vocês estão exagerando.” “Vocês estão interpretando errado.” “Não há nada de mal.” Quantas vezes já ouvimos isso?

Quantas vezes vimos situações abusivas, comportamentos inadequados, assédios descarados no ambiente de trabalho serem relativizados pelos nossos pares, pelos nossos chefes, pelos homens em cargos de poder? Quantas vezes vimos os mesmos assediadores subirem de cargo, serem agraciados com uma promoção, mesmo diante de denúncias graves contra eles? No Jornalismo Esportivo, em que tantas de nós já fomos vítimas, o silenciamento era regra, e a impunidade deles era a garantia da nossa submissão.

A cena de hoje, ao mesmo tempo que nos revolta, não nos choca. Porque é a reprodução nua e crua da nossa realidade diária. E serve para lembrarmos o quanto a luta ainda é longa.

Porque nem mesmo após uma Copa do Mundo histórica, com recordes de público e de audiência, com jogos de altíssimo nível, com uma campeã inédita, nem mesmo após termos mostrado a potência do futebol feminino, nós temos sossego. Essas mulheres tiveram seu momento de maior alegria no futebol forjado por um homem que cometeu uma violência e foi aplaudido pelos seus comparsas. Escancarando quem de fato MANDA no jogo. As mulheres campeãs do mundo não têm voz, esse é o recado. Não importa o quanto elas gritem, o comando ainda é deles.

Mas essa história ainda não acabou. Se a Fifa, a Uefa, e as principais instituições que comandam o futebol (não à toa geridas por homens brancos) têm se omitido, as mulheres não vão aceitar esse silenciamento.

Diversas jogadoras e ex-jogadoras da seleção espanhola já se manifestaram em favor de Jenni Hermoso. Alexia Putellas, melhor jogadora do mundo e um dos símbolos da ascensão do futebol feminino na Espanha, disse: “Isso é inaceitável. Acabou. Contigo, companheira Jenni Hermoso”. A melhor jogadora da Copa, Aitana Bonmatí, também registrou seu apoio à camisa 10 espanhola. Redondo, Mariona, One Battle, Paredes, todas postaram algo a respeito da situação.

Entre as atletas que não foram para o Mundial em protesto pelas condições a que eram submetidas pelo técnico Jorge Vilda e pela Federação Espanhola, Mapi León e Patri Guijarro também se colocaram a favor da atleta.

E jogadores e ex-jogadores da seleção masculina também se manifestaram. Algo muito importante, já que o próprio técnico da equipe masculina, Luis de La Fuente, esteve aplaudindo Rubiales no discurso. O goleiro Casillas, capitão e campeão do mundo em 2010 com a Espanha, disse que a situação gerava “vergonha alheia”. Sergi Roberto, capitão do Barcelona, escreveu: “Estamos com vocês”, ao retuitar o post de Alexia Putellas.

Os clubes Barcelona e Sevilla divulgaram comunicados contra a atitude de Rubiales. A Liga Feminina Espanhola também.

As manifestações não se limitaram a atletas e instituições espanholas. Beath Mead, craque da Inglaterra, publicou ser “inaceitável e também ridículo que estes homens ainda tenham tanto poder”. A atacante sueca Rolfö, que defende o Barcelona, declarou, juntou ao apoio à Hermoso, que “ninguém deveria ter de lutar no seu local de trabalho por respeito, para se sentir seguro ou pelos seus direitos humanos básicos”.

E ainda na tarde desta sexta-feira, as jogadoras atuais da seleção que foram campeãs do mundo divulgaram um comunicado assinado junto às ex-atletas da Espanha falando sobre todos os abusos que sofreram ao longo dos últimos anos.

“Quero esclarecer que em nenhum momento consenti no beijo que ele me deu e em nenhum caso procurei levantar o presidente. Não tolero que minha palavra seja questionada e muito menos que se inventem palavras que eu não tenha dito. “, diz Jenni Hermoso.

“Queremos terminar esta afirmação, pedindo mudanças reais, tanto esportivas como estruturais, que ajudem a seleção a continuar a crescer, para poder transferir este grande sucesso para as gerações posteriores”, afirmam as jogadoras.

As 23 atletas campeãs mundiais e outras 33 que assinam o comunicado dizem que não vestirão mais a camisa da Espanha enquanto o presidente da Federação seguir no cargo.

Rubiales tem a certeza de que ficará impune. O aplauso para sua fala é a tentativa de silenciar as campeãs do mundo. Mas a voz das mulheres unidas contra eles – e dos homens que estão chegando como aliados – está ecoando cada vez mais forte. Esse título mundial não será em vão.

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