“Vini Jr fez um país inteiro se olhar no espelho”, diz Tati Mantovani

Correspondente internacional da TNT Sports responsável pela cobertura diária do Real Madrid, Tatiana Mantovani acompanha de perto a carreira de Vinicius Junior desde a chegada dele ao futebol europeu, em julho de 2018, com apenas 18 anos. A jornalista que presenciou os Merengues conquistarem quatro títulos da Champions League, com direito a entrevistas divertidíssimas ao lado de Marcelo e Casemiro, hoje é testemunha dos jovens talentosos Vini Junior e Rodrygo se consolidarem como protagonistas dentro de campo e como vozes ativas contra o racismo fora dele.

“O Vinicius entendeu muito bem onde ele está e qual a posição que ocupa para ser uma voz de quem não tem essa voz. Ele está fazendo um país inteiro se olhar no espelho e entender que existe um problema dentro do futebol, mas que esse também é um problema que está fora dele”, avalia Tati Mantovani. Para ela, a missão de uma correspondente internacional é ser uma espécie de “tradutora de culturas”. Por isso, o Dibradoras bateu um papo com essa jornalista especializada em Real Madrid que vive há quase 12 anos na Espanha para entender como a repercussão sobre os ataques racistas contra Vini Junior em campo estão chacoalhando toda a Espanha. Veja a entrevista completa abaixo.

Como tem sido a repercussão na Espanha dos casos de racismo sofridos por Vinicius Junior?

O impacto é muito grande. Eu quero acreditar que é algo que possa fazer as coisas mudarem. Porque é um acontecimento a nível mundial muito grande, que faz com que o foco esteja, hoje, nas decisões que os agentes do futebol espanhol devem tomar para acabar com o que acontece há muitos anos na Espanha e que nunca tinha tomado essa proporção depois dos insultos racistas ao Vinícius no estádio do Valência. 

Mas atitudes racistas na Espanha e, especificamente, no futebol espanhol não são novidade.

O racismo é um tema que aqui na Espanha não estava em pauta. O que surpreende bastante, porque são 10 casos de racismo envolvendo só o Vinicius Junior até chegar ao episódio no estádio do Valência, fora os outros casos que foram para a Justiça e davam a impressão que não davam em nada por questões de formulação da lei na Espanha (que entende insultos raciais, entre outros muitos tipos de delitos, como delito de ódio). 

O que mudou?

A partir do que aconteceu em Valência, a sensação é que o debate entrou de uma forma mais homogênea na sociedade espanhola, que não ficou só no âmbito esportivo. O que faz com que a maquinaria para solucionar isso comece a andar. Tem que haver um debate para poder chegar nas esferas das pessoas que tomam as decisões. O triste é ter que acontecer algo nesse nível para que as coisas andem. Até esse caso em Valência, não existia o debate sobre fazer alguma coisa para coibir o racismo em um estádio de futebol e, portanto, para que o racismo seja uma questão abordada no Congresso para existir uma lei específica contra o racismo ou coisas desse tipo. Para você ver o momento em que está a sociedade espanhola em relação a esse assunto. Eu quero acreditar que toda a repercussão causada em função do que aconteceu com o Vinicius Junior pode ser uma mudança de chave em direção a realmente não acontecer mais casos de racismo dentro de um estádio de futebol e que seja um reflexo do que pode vir a acontecer na sociedade em geral. 

Como você enxerga a mídia espanhola na cobertura desses casos de racismo no futebol?

A minha percepção é que essa cobertura da imprensa espanhola é um reflexo da sociedade como um todo na Espanha. As sociedades europeias são formadas com um histórico de colonialismo muito forte, mas não da mesma forma. Durante esses dias, os espanhóis tentaram entender como eles chegaram nesse ponto. Mas o que me chama atenção é a cobertura da imprensa não esportiva, porque é um caso que chegou na grande massa. Eu até publiquei nas minhas redes sociais um vídeo de um programa espanhol tradicional de debates sobre política, economia e sociedade, da Rádio Acadêmico, a principal da Espanha. Nesse dia, o apresentador fez uma análise profunda explicando aos espanhóis o porquê ele considera que o país dele é racista. E porquê o mundo, hoje, está considerando a Espanha um país racista. É interessante ver como a cobertura desse fato saiu dos meios só esportivos e foi parar em programas de debate, porque isso é incomum na Espanha.

O Vini Junior declarou que a imagem que os brasileiros têm da Espanha é de um país racista. Como essa postura dele foi recebida na Espanha? 

O Vinícius entendeu muito bem onde ele está e qual a posição que ocupa para ser uma voz de quem não tem essa voz. Ele está fazendo um país inteiro se olhar no espelho e entender que existe um problema dentro do futebol, mas que esse também é um problema que está fora dele. E é interessante ver como essa sociedade entendeu isso. O que falta ver é se realmente vai acontecer uma punição para isso, o que até agora não tem. Fizeram muitos debates, estão levantando muitas opções de como acabar com o racismo dentro do estádio de futebol para que possa ser um reflexo depois para a sociedade. Nesse caso, o futebol pode servir como um catalisador para uma mudança da sociedade. Quero acreditar que seja esse o caminho.

Você acompanha de perto a trajetória do Vini Junior desde a chegada dele no Real Madrid. 

Eu lembro da primeira entrevista que eu fiz com o Vini, ele tinha 18 anos, era a primeira temporada dele no Real Madrid e é muito especial ver a evolução dele em todos os sentidos. Ele chegou com aparelho nos dentes, aquela cara de moleque, bem moleque mesmo, e sempre rindo. Ele continua sempre rindo. Mas é muito legal ver esse amadurecimento dele enquanto ser humano, porque às vezes a gente esquece que um jogador de futebol é um ser humano. Os caras são grandes estrelas, mas existe uma pressão absurda em jogar no Real Madrid e ele e o Rodrygo eram meninos de 18 anos quando chegaram no clube. O Vinícius é um caso muito extraordinário. Ele chegou com uma pressão absurda de ter custado o que ele custou, na janela de transferência em que o Real Madrid perdia a principal estrela dos últimos anos – o Cristiano Ronaldo – e, naquele momento, o peso que tinha que sair sobre jogadores mais experientes do clube caiu nas costas de um menino de 18 anos. O Vinicius simplesmente disse: “Eu vou carregar esse peso e vou estar sorrindo todo o tempo”. Ele não mudou a personalidade dele, mesmo com todo esse peso que nem era dele. É realmente impressionante e, dentro disso, ele sofreu pra caramba. Porque as coisas dentro do Real Madrid têm proporção muito grande. 

Como você percebe que está o Vini de hoje, aos 22 anos?

Aos 22 anos, ele é muito diferente. Ele passou por um processo de amadurecimento enquanto pessoa e enquanto jogador de futebol. Ele realmente não sentia absorver todo aquele peso e sempre teve muito claro na cabeça dele onde ele quer chegar e como ele quer fazer esse caminho. E esse caminho passa por ele ter uma voz e usar essa voz. Hoje, ele é um jogador dentro de campo absurdo que os rivais não conseguem parar na bola, então resolvem parar ele de outra forma, com hostilidades. E a imprensa na Espanha que, às vezes, não entende o que é que está acontecendo, porque se o debate do racismo nem existia… Formou-se uma uma bolha enorme em que se normalizou barbaridades até chegar no jogo do Valência. Foi quando o Vinícius disse que para ele não dava mais. A primeira denúncia de racismo na La Liga ao Vinícius é de 2021. Do primeiro caso até esse de Valência, foram quase dois anos e nada mudou para combater as agressões, que foram crescendo. Mas é impressionante ver realmente a maturidade do Vinícius para lidar com isso e se posicionar. Realmente ele é muito novo, saiu muito novo do Brasil, é tudo muito extraordinário na carreira do Vini.

No Brasil, a ausência do Vinicius Junior no prêmio The Best da FIFA da última temporada foi bastante criticada. 

Para conquista de prêmios individuais tem que fazer coisas muito grandes dentro de campo, mas tem também que conquistar títulos coletivos e ser esse jogador muito conhecido. Tem muitos grandes jogadores que são muito bons, mas que não chegam nesse nível. O Benzema demorou quanto tempo para entrar nessa briga? Tudo bem que teve a era de Cristiano Ronaldo e Messi, mas para entrar nesse lugar tem que crescer muito. Tanto que os vencedores das últimas bolas de ouro foram jogadores de mais de 30 anos. Para ver quanto tempo demora para conseguir chegar lá. A temporada passada da Champions colocou o Vinícius Júnior no mapa e a atual coloca ele em um nível acima. Se ele tivesse chegado na final da Champions, apostaria que era favorito para ser o melhor do mundo.

Vimos muitos casos de racismo e agressões de espanhóis contra o Vinicius Junior, mas como é a relação dos torcedores do Real Madrid com ele? 

Essa é uma temporada que o Vinícius se transformou não apenas enquanto jogador de futebol, mas como uma bandeira muito maior na luta contra o racismo. Dentro de campo, é a temporada na qual o Vinícius se tornou o principal jogador do maior clube do mundo. Quem vai jogar contra o Real Madrid, hoje, sabe que tem que parar o Vinícius. Quem vai assistir aos jogos do Real Madrid vai para assistir ao Vinícius. Então, hoje, ele é esse cara! Na temporada passada, o Benzema foi quem levou o time até o primeiro jogo das semifinais, o Rodrygo foi quem colocou o time na final e o Vinícius quem deu o título. A Supercopa da Europa foi o último título que tem mais a assinatura do Benzema. Depois, o Mundial de Clubes quem deu ao Real Madrid foi o Vinicius Junior, a Copa do Rei quem deu ao Real Madrid foram o Rodrygo e o Vinicius. Hoje, Roydrigo e Vinícius são fundamentais para o Real Madrid ganhar qualquer coisa dentro de campo.

Qual é a rede de amparo do Vinicius Junior na Espanha? 

Durante muito tempo, o apoio vinha por parte dos outros brasileiros do grupo, o Rodrygo e o Éder Militão, acho que eles são um grande apoio do Vini. Mas, no geral, a sensação era que os meninos estavam sozinhos nisso. Agora está todo mundo se mexendo, porque o Vinícius disse chega, foi o Vinícius quem falou “deu pra mim, precisa resolver esse problema porque eu vou continuar lutando mesmo que seja longe daqui”. Ele deixou claro na postagem dele que poderia deixar de jogar no Real Madrid. Foi quando a La Liga começou a se mexer. Demorou para os entes do futebol espanhol entenderem o que estava acontecendo. A La Liga, que dizia não ter competência para resolver, procurou ferramentas para passar a ter a competência. A Federação espanhola tem que se mexer muito ainda. O mesmo vale para o governo espanhol. Se existisse uma lei específica, talvez a justiça tratasse de outra forma. Mas eu nunca tinha visto o Real Madrid se posicionar como fez, finalmente, de ter um estádio inteiro abraçando o Vinicius, de colocar o clube à disposição dele. Quero acreditar que é um primeiro passo. Um passo muito importante para mostrar apoio ao Vinicius de que ele não tá sozinho nisso e para que as coisas comecem a se mover em direção á buscar soluções. Está chegando tarde, muitos passaram por isso antes dele e nada foi feito. Não tinha o debate sobre o racismo, não se falava sobre isso nem buscava soluções. Quero acreditar que que pode ser o início de uma mudança. Sou uma pessoa otimista.

Como é sua relação com os brasileiros que jogam ou jogaram no Real Madrid, como nas entrevistas divertidas com Casemiro e Marcelo em 2018? 

Eu tenho a sorte de estar no lugar certo e na hora certa, porque trabalho na TNT há mais de sete anos na cobertura da principal competição de clubes do mundo, que é a Champions League e caí no Real Madrid justamente nesse momento tão vencedor do clube. A TNT durante muito tempo foi o único meio de comunicação brasileiro a estar no dia a dia do Real Madrid. Por isso é evidente que os jogadores brasileiros acabam me vendo e a TNT em todos os jogos. Eu sempre dizia para o Marcelo e o Casemiro que eu era o canal entre eles e o Brasil, porque eu acabava falando com eles todo dia. No Brasil, as pessoas querem saber mais dos brasileiros e acabei construindo essa relação de proximidade. Eu agradeço muito a TNT por me proporcionar isso e também por ter a sorte de nesse caminho ter encontrado jogadores diferentes. 

Há quanto tempo você está na Espanha? Como é sua relação com o país? 

Estou aqui desde 2011, vai completar 12 anos em outubro. Não sei explicar, mas me apaixonei por Madri. Ela realmente é a minha cidade no mundo, onde pretendo ficar para sempre. Digo que tem gente que tem a sorte de nascer no lugar onde pertence. E tem gente que encontra esse lugar ao longo da vida. Eu encontrei Madri no caminho e já são 12 anos morando aqui e 7 anos trabalhando como correspondente da TNT. Na verdade, primeiro morei no Norte da Espanha em 2009 para fazer meu primeiro mestrado. Depois, em 2010, vim para Madrid, trabalhei um tempo numa rádio e, aí sim, me apaixonei pela cidade. Fiquei um ano no Brasil e voltei de vez. Trabalhei com várias coisas em Madrid até a TNT me encontrar, porque foi um encontro realmente incrível. 

Como é ser uma brasileira na Espanha que trabalha com futebol para um canal de TV do Brasil? 

Morar fora nunca é fácil. Porque a gente deixa a família inteira longe, perde casamento, aniversários. A gente perde muita coisa, mas ganha também a possibilidade de conhecer outras coisas, de encarar desafios. Uma das minhas melhores amigas aqui é da Guatemala. Existe alguma possibilidade da gente se conhecer se eu tivesse ficado no interior do Rio Grande do Sul? Provavelmente nenhuma. Mas nem sempre a gente encontra tudo lindo, maravilhoso. Geralmente, na verdade, tem que lidar com muitas situações complicadas, mas é conseguir se adaptar às diferentes situações que a vida vai te colocando. Se viver fora do Brasil é um desafio, trabalhar como correspondente é mais ainda! É um desafio fazer com que as pessoas no Brasil tenham um pouco da noção do que está acontecendo aqui, dos motivos de as coisas aqui acontecem de determinada forma. Se eu estou morando aqui na Espanha, eu acabo sendo uma referência para quem me assiste do Brasil, então o meu trabalho é um traduzir eterno

Como é trabalhar com futebol, lidando diariamente com o Real Madrid e com jogos da Champions League? 

Mesmo com todos os desafios, o trabalho de correspondente é maravilhoso. E é maravilhoso trabalhar com a Champions. Quando comecei, eu tinha tanta preocupação e, fazer tudo certo, entregar o boletim ao vivo, falar as informações certas e tal. Agora, eu tento aproveitar, porque ter o privilégio de trabalhar com futebol no maior campeonato do mundo é para muito poucos. Eu costumo responder pro pessoal que me manda mensagem nas redes sociais para que se sintam-se aqui quando me veem trabalhando. Eu tento levar para as pessoas tudo que estou sentindo, porque é realmente muito emocionante. Às vezes, eu me emociono nas transmissões, porque eu era aquela pessoa que estava lá na TV assistindo ao jogo e, agora, sou a pessoa que está aqui contando a história do jogo. Eu tento aproximar o Real Madrid do torcedor brasileiro, que tem cada vez mais e são ávidos por informação. Isso é muito legal. Outro dia, publiquei nas minhas redes sociais o bastidor de como foi a chegada do Vini Junior na posição da entrevista da TNT, que ele chega e cumprimenta todo mundo. 

E como é ser mulher nesse meio?

Como mulher, tenho noção de que não estávamos nesse lugar há um tempo atrás. Mas chegamos aqui agora e tem um monte de menina que olha para nós e hoje sonha em ser correspondente para cobrir grandes clubes, a Champions League, enquanto eu nem me imagina nesse lugar lá atrás, porque não tinha mulher fazendo isso. Tinham duas ou três apresentadoras, repórter na TV já era um negócio extraordinário. Eu também sei dessa responsabilidade de ocuparmos bem esse lugar que batalhamos tanto para conseguir e de poder ir abrindo as portas. Eu agradeço muito à TNT, porque realmente nós somos metade homens e metade mulheres na equipe de correspondentes. Cada um faz o seu, somos todos parceiros, o time é incrível e isso também ajuda. Mas é difícil. Eu tenho o privilégio de estar no topo do topo. No universo da maior competição de clubes do mundo em um dos maiores clubes do mundo é tudo muito profissional e tratam o repórter da mesma forma independentemente se sou eu, Fulaninho ou Ciclaninho. Mas é óbvio que da porta do estádio para fora é outra coisa, lidar com torcedores e até mesmo para conquistar um espaço de respeito e credibilidade sendo mulher dentro desse universo.

Desde que você chegou na Espanha, viu um aumento de mulheres no jornalismo esportivo que cobre futebol no país?

Às vezes, eu sou a única mulher na coletiva do Real Madrid. Mas antes era mais assustador. Ainda é um caminho longo a ser percorrido. Tanto no Brasil, quanto na Espanha esse caminho está sendo construído. No Brasil, inclusive, já colocamos bastante tijolos. Agora é asfaltar. Somos muitas e quase todas entendemos o nosso lugar e a nossa responsabilidade de puxar a outra que está vindo atrás para sermos mais. Abrimos uma porta e temos a consciência que da importância de mantê-la aberta para as que estão vindo poderem entrar também. É um trabalho difícil, mas estamos fazendo.

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