Como é um jogo de futebol só com mulheres e crianças na arquibancada?

Foto: Gustavo Oliveira

É possível imaginar mulheres grávidas torcendo tranquilamente em um estádio de futebol? Tente visualizar a cena de duas mães sentindo-se tão seguras que levam seus bebês e os amamentam nas arquibancadas sem sentirem-se constrangidas enquanto prestigiam os clubes do coração. Parece até ficção, mas aconteceu.

A advogada Bruna Mayara de Oliveira cultivou a paixão pelo Coritiba indo ao estádio desde pequena com o pai. Em janeiro, ela fez o mesmo com a filhinha Anita, que tinha apenas 1 ano e meio, na estreia do time no Campeonato Paranaense, contra o Aruko, em meio a quase 9 mil pessoas. 

O diferencial daquele dia foi que o público era composto apenas por mulheres e crianças de até 12 anos, por decisão judicial inédita do Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-PR), que reverteu parcialmente a punição de perda do mando de campo pelas confusões no clássico Athletiba em 2022 para a presença restrita de mulheres e crianças no Couto Pereira.

“Eu não fiquei com medo de ir ao estádio. Na hora de amamentar minha filha, não senti aqueles olhares, às vezes, até maliciosos e com julgamentos. Me senti totalmente confortável, sem brigas, sem assédio”, conta Bruna. Por isso, a advogada lembra daquele dia como um “jogo histórico”. “Sei que muitas mulheres não vão ao estádio porque sentem medo de casos de violência e assédio, que são muito comuns, infelizmente”, lamenta.

Bruna Mayara e a filhina Anita na torcida pelo Coxa no Couto Pereira | Foto: arquivo pessoal

Para driblar essas barreiras e fazer valer o direito de assistir a um jogo, muitas torcedoras vão acompanhadas de amigos ou companheiros, outras se juntam em grupos de mais mulheres para se sentirem protegidas. Mas o sonho é que nada disso fosse necessário. E os jogos com a presença restrita de mulheres e crianças tem mostrado que essa é uma realidade possível!

As mulheres da família da advogada Thais Roberta de Ramos Pereira também se organizaram para apoiar o Coritiba no estádio Couto Pereira. Ao total, foram sete mulheres da mesma casa! Acompanhada da mãe Márcia Pereira, de 54 anos, e das três irmãs, Thais sentiu-se segura para levar pela primeira vez ao estádio a filha Helena, com apenas 10 meses, e a sobrinha, também bebê. 

“A hora de amamentar é bastante difícil, porque é uma coisa natural, mas ainda assim temos muito tabu. Na prática, temos que ficar nos cobrindo, se escondendo ou procurando lugares para não nos sentirmos constrangidas. Mas dentro do estádio com público 100% feminino, eu não tive nenhum constrangimento, problema, burburinho ou incômodo, porque as mulheres se ajudam”, relata Thais. 

A família saiu feliz da partida por ter participado do apoio massivo e barulhento das torcedoras, que souberam incentivar o Coxa sem que houvesse nenhum registro de ofensas ou agressões. “Lógico que cobramos os jogadores, falamos uma palavra ou outra mais calorosa, mas sem qualquer ofensa que leve para outro lado e sem se sentir insegura por estar ali no meio”, ressalta Thais. “Além de termos voz, somos um exemplo a ser seguido. A forma como nos comportamos no estádio não gerou nenhuma confusão e foi uma festa linda”, completa.

A reversão das punições a clubes de futebol por brigas de torcida tem se tornado recorrente. Depois do Coritiba, foi a vez do Athletico-PR encher a Arena da Baixada com 32 mil torcedoras e crianças contra o Maringá e, depois, com 37 mil pessoas contra o Foz do Iguaçu, ambos em janeiro. Em vez de portões fechados, os estádios de futebol abrem as portas apenas para mulheres e crianças e, no caso do Sport no último sábado (20/05), também para pessoas com deficiência. 

A empresária Thalita Guerra estava entre os mais de 18 mil torcedores que protagonizaram uma verdadeira festa na Ilha do Retiro, em Recife, sem nenhum registro de violência na vitória do Sport sobre o Botafogo-SP, por 3 a 0, pela Série B do Brasileiro. Torcedora ferrenha do Sport, Thalita frequenta a Ilha do Retiro há mais de 10 anos. A empresária costuma chegar ao estádio cerca de duas horas antes do início dos jogos e deixar a arena com pressa após a partida para fugir de possíveis confusões. 

Mas, na última vez que foi ao estádio, Thalita teve uma sensação completamente nova. “Eu nunca me senti tão segura ao ir no estádio como nesse dia. Fui sozinha, meu esposo me buscou em um ponto que, se fosse em outros jogos, eu jamais iria andando até lá”, conta.

Essa tranquilidade não foi percebida apenas nas arquibancadas. O técnico do Sport, Enderson Moreira, disse que nunca presenciou uma energia parecida num estádio de futebol. “Foi o maior e melhor acolhimento que eu, como treinador, já vi de uma torcida para um time”.

Apesar do clima leve na torcida, a Ilha do Retiro apresentou problemas com falta de organização e estrutura na primeira vez que recebeu o público restrito por mulheres, crianças e pessoas com deficiência. Antes do jogo, um grupo de torcedoras foi barrada na entrada do estádio com camisas que tinham referências à organizada do clube. Muitas das torcedoras ficaram de sutiãs e organizaram um protesto na sede do clube.

Após a partida, o movimento Elas e o Sport,  maior grupo de torcedoras rubro-negras, publicou uma carta aberta reivindicando melhorias em relação a banheiros sujos, falta de pontos de venda de comida e bebida, problemas para liberação da entrada de instrumentos da bateria e falta de segurança na saída do estádio. 

O Sport informou que os responsáveis pelo operacional das partidas iriam se reunir durante a semana visando o próximo jogo para “corrigir o que for necessário”. A assessoria ainda reiterou que “o clube lamenta os ocorridos e assume o compromisso perante a torcida de providenciar um melhor espetáculo e experiência não apenas para os dois próximos jogos em que vigora a determinação do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), mas para qualquer partida na Ilha do Retiro, à altura do que foi presenciado neste 20 de maio de 2023”.

Por que estádios de futebol não são acolhedores sempre? 

Ao contrário do clima de paz e tranquilidade que marcaram os jogos com restrição da torcida masculina, os estádios de futebol brasileiros têm sido com frequência palco de episódios violentos e preconceituosos. O Mineirão, por exemplo, registrou 11 casos de importunação sexual desde novembro de 2021, quando o público voltou a frequentar o estádio após o afastamento provocado pela pandemia de covid-19. 

Casos de racismo também são recorrentes. O Relatório anual da discriminação racial no futebol contou 64 casos de discriminação racial envolvendo futebol no Brasil em 2021. No último ano, episódios de preconceito contra pessoas LGBTQIA+ aumentaram 76% no futebol brasileiro. Foram registrados 74 casos de LGBTfobia em estádios, redes sociais e mídia em 2022 e 42 episódios do mesmo tipo em 2021, segundo Anuário do Observatório do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+, realizado com apoio da CBF.

Mas por que um estádio de futebol não pode ser um ambiente acolhedor para todos sempre? Claro que o problema não está em todos os homens. Os autores de ações violentas, sejam verbais ou físicas, muitas vezes são minoria dentro dos estádios ou nos demais meios do futebol. O problema é que essas atitudes causam muito estrago. 

As experiências diante das reversões das punições impostas pelo STJD vem mostrando que é possível fazer dos estádios um espaço de festa e convivência efetivamente de todos, sem violência, gritos homofóbicos ou atitudes racistas. Para isso, é preciso coibir ativamente atos preconceituosos e violentos nos ambientes esportivos, além de promover maior preparo dos profissionais para lidar com situações desse tipo. Os agentes envolvidos na organização do futebol têm de estar envolvidos com a busca dessa mudança.

Compartilhe

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *