O que mudou no futebol feminino do Brasil desde a última Copa?

 Palmeiras e Grêmio em confronto pelo Brasileiro feminino (Foto: Morgana Schuh/Grêmio FBPA)

Muito se fala dos avanços do futebol feminino no Brasil e no restante do mundo nos últimos anos. E avançou mesmo! No Brasil, essas mudanças começaram principalmente em 2019, depois do boom da Copa do Mundo da França. Os marcos naquele ano foram desde a chegada de um número massivo de clubes de camisa ao futebol feminino – quando começou a valer a obrigatoriedade aos times masculinos da Série A do Brasileiro e da Libertadores de ter equipes femininas – até a volta das transmissões do Brasileiro feminino na televisão. 

Muita coisa melhorou, é verdade. Mas o desenvolvimento do futebol jogado por mulheres é cheio de desafios e percorre uma trajetória de altos e baixos.

Já em clima de Copa do Mundo, o Dibradoras relembra como estava o futebol feminino no Brasil há quatro anos com o objetivo de não esquecer – nem retroceder – aos avanços conquistados.

Seleção brasileira e CBF
Vadão com Andressa Alves (esq) e Pia Sundhage com Angelina (dir.) | Fotos: Lucas Figueiredo/CBF/Thais Magalhães/CBF


>Em 2019: 

A seleção brasileira chegou na Copa de 2019 sob o comando de Oswaldo Alvarez, o Vadão, com nove derrotas nos últimos nove jogos antes do Mundial. O treinador era muito criticado pela segunda passagem à frente da equipe, ainda mais porque retornou após a demissão da técnica Emily Lima, em 2017, que teve muitos protestos das jogadoras. Mesmo assim, aquela edição já mostrava que seria diferente. Foi a primeira vez que a convocação da seleção feminina foi anunciada como um evento diante de dezenas de jornalistas na sede da CBF – na Copa de 2015, por exemplo, a lista foi divulgada apenas no site oficial.

Outra mudança começou a ser a presença de mulheres na comissão técnica da seleção brasileira – desde 2016, a Fifa exige nos torneios femininos organizados pela entidade que as seleções tenham, ao menos, uma mulher na comissão técnica e uma mulher na comissão médica. Em 2019, a CBF cumpriu a regra à risca: com a fisioterapeuta Katherine Ferro e a assessora de comunicação Laura Zago na seleção brasileira feminina. Agora, mulheres em cargos de gerência já era pedir demais para a CBF em pleno 2019.

>Hoje: 

Sob o comando da técnica bicampeã olímpica Pia Sundhage, a seleção brasileira se prepara para os últimos dois jogos antes da Copa da Austrália e Nova Zelândia com uma comissão técnica bem mais diversificada com homens e mulheres. As oscilações de desempenho da equipe também trazem críticas da mídia em relação ao trabalho da treinadora sueca no Brasil. A todo o momento, porém, Pia ressalta que é preciso correr atrás do prejuízo em que o futebol brasileiro se encontrava quando ela chegou ao cargo. A preparação do Brasil comandada pela Pia visa uma renovação de quase 70% das jogadoras brasileiras

A começar pela treinadora, a quantidade de mulheres gerindo o trabalho da seleção feminina também é bem diferente de quatro anos atrás. Em 2020, a CBF criou cargos dedicados à modalidade dentro da entidade nacional para trabalhar com as competições e contratou Aline Pellegrino como coordenadora do futebol feminino e Duda Luizelli como diretora de futebol feminino, posto ocupado atualmente por Ana Lorena Marché. No mesmo ano, a CBF passou a pagar diárias iguais a homens e mulheres enquanto estiverem a serviço da seleção brasileira.

Times de camisa no brasileiro feminino

>Em 2019:

Foi o primeiro ano que passou a valer a regra que obriga clubes masculinos da Série A do Brasileiro e da Libertadores a terem equipes femininas. Isso impactou diretamente o Campeonato Brasileiro feminino com um número recorde de clubes ditos de camisa. Dos 16 times que disputaram a Série A1, seis eram tradicionais: Corinthians, Santos, Flamengo, Internacional, Vitória e Sport. E a Série A2 contou com um número recorde de 36 participantes, sendo 11 deles de camisa: Palmeiras, São Paulo, Cruzeiro, Botafogo, Fluminense, Vasco, Atlético-MG, Bahia, Ceará, Grêmio e Chapecoense.

>Hoje: 

O Brasileiro feminino conta com três divisões desde 2022, mesmo ano em que o calendário nacional também passou a contar com a Supercopa feminina. Nesses últimos quatro anos, muitos clubes tradicionais no masculino se firmaram na elite do feminino. Neste ano, a Série A1 tem 13 times de camisa: Corinthians, Palmeiras, Flamengo, Cruzeiro, Santos, Internacional, Grêmio, São Paulo, Bahia, Athletico-PR, Atlético-MG, Avaí/Kindermann e Ceará. Mesmo que nem sempre o peso da camisa seja revertido em valorização e profissionalização para o feminino.

Contratos e condições de trabalho
Foto: Meu Timão


>Em 2019: 

Levantamento realizado pela Folha em março de 2019 apontou que apenas oito dos 52 times das Séries A1 e A2 do Brasileiro feminino daquele ano tinham todas as jogadoras registradas com carteira profissional, o que representava 15%. Os times que ofereciam CLT (carteira do trabalho) às atletas eram Internacional e Santos na primeira divisão; e América-MG, Atlético-MG, Ceará, Chapecoense, Cruzeiro e Grêmio na segunda divisão. O Corinthians, por exemplo, já era um dos clubes com os maiores investimentos (com folha salarial em torno de R$ 170 mil), mas o elenco completo não tinha carteira assinada.

>Hoje: 

Dos 16 times do Brasileirão Feminino, 14  declararam ao ge que fazem pagamento de salários às jogadoras por meio de contratos profissionais – Internacional, por exemplo, diz pagar integralmente em CLT, enquanto o Cruzeiro paga 60% na CLT e 40% em direito de imagem. A exceção fica por conta do Real Ariquemes, que mescla salários com ajuda de custo. Também são 14 os clubes que têm orçamento específico para o futebol feminino, sendo que 12 deles aumentaram o investimento na modalidade para 2023. Na contramão, estão Ceará e Avaí/Kindermann, que cortaram o orçamento do feminino motivados pelo rebaixamento dos clubes no futebol masculino.

Categorias de base
Inter foi campeão da 1ªedição do Brasileiro feminino sub-18 e voltou a vencer o sub-20 em 2022 | Foto: Lucas Figueiredo/CBF

>Em 2019:

Após o sucesso da Copa do Mundo da França, a CBF criou as primeiras competições nacionais de base feminina para atender a uma demanda dos clubes de dar mais experiência competitiva às atletas em formação. Em julho, a entidade realizou o Brasileiro feminino sub-18, com 24 times participantes – e o Internacional saiu como campeão após vencer o São Paulo na final disputada em dois jogos. Em novembro, foi a vez do Brasileiro feminino sub-16, com 12 clubes participantes – em que o São Paulo saiu vitorioso, com vitória em cima do Santos em final única. Desde 2022, as idades dos campeonatos foram reajustadas: o sub-16 virou sub-17 e o sub-18 virou sub-20.

>Hoje:

Os dois campeonatos nacionais de base continuam sendo o Brasileirão, agora com sub-17 e sub-20. Dos 16 clubes da Série A1 do Brasileiro feminino, dez contam categoria de base, segundo apuração do portal ge. São eles: Atlético-MG (Sub-15, Sub-17 e Sub-20), Ceará (não especificou), Corinthians (Sub-14 ao Sub-20), Ferroviária (Sub-14, 15, 17 e 20), Flamengo (não especificou), Grêmio (Sub-14, Sub-17 e Sub-20), Internacional (Sub-15 ao Sub-20), Santos e São Paulo (não especificaram).

Os outros seis clubes da primeira divisão nacional contam com apenas a equipe principal: Avaí/Kindermann, Bahia, Cruzeiro (base está em construção para o segundo semestre de 2023), Real Ariquemes, Real Brasília e Palmeiras (disputam campeonato utilizando atletas das escolinhas e consulados).

Visibilidade e transmissões
Com equipe feminina, Band retomou transmissão do Brasileiro feminino na TV em 2019 | Foto: reprodução Twitter

>Em 2019:

O Brasileiro feminino A1 de 2019 começou sem transmissão na TV, mas com uma novidade importante: o Twitter, em parceria com a CBF, viabilizou a transmissão de pelo menos um jogo por rodada pela internet. Dois meses – e seis rodadas – depois do início do campeonato, a TV Bandeirantes fechou acordo para transmitir o restante da competição, com a exibição de um jogo por rodada na TV aberta, aos domingos.

Desde 2017, os jogos do Brasileiro feminino não haviam sido exibidos por nenhuma televisão, já que o campeonato perdeu a patrocinadora (Caixa), que bancava os custos para gerar as transmissões aos canais de TV. Muitos clubes exibiram os próprios jogos pela internet, como vem acontecendo também neste ano! Mas as semifinais e finais do Campeonato Paulista de 2018, por exemplo, foram exibidas pela ESPN, aproveitando a geração de imagens da Federação.

Vale lembrar que no ano que antecedeu à Copa da França nenhuma emissora de TV transmitiu o Brasil se tornar heptacampeã da Copa América feminina. O torneio continental que também deu vaga ao Mundial e às Olimpíadas teve alguns jogos transmitidos pela internet graças à primeira vez que CBF e Twitter firmaram parceria no futebol feminino. 

>Hoje:

O Grupo Globo comprou a exclusividade dos direitos de transmissão na televisão do Brasileiro feminino até 2024. Neste ano, a emissora optou por exibir dois jogos por rodada da primeira fase do campeonato no SporTV; e passar apenas a fase mata-mata na TV aberta. Sobre as transmissões na internet, ainda não há nada oficializado pela CBF. A entidade segue em uma negociação arrastada com a Eleven Sports.

A final do Brasileiro 2022, disputada  entre Corinthians e Internacional, no início da tarde de um sábado, fez a Band alcançar a vice-liderança de audiência na Grande São Paulo, com 3,8 pontos no Kantar Ibope Media (ou seja, 780 mil espectadores), com pico de 5,8 pontos de audiência (mais de um milhão de pessoas assistindo). Neste ano, a fase mata-mata do Brasileirão promete mais recordes de audiência, pois será transmitida na TV Globo.

Público nos estádios
Corinthians foi tetracampeão brasileiro feminino diante de mais de 40 mil torcedores em 2022 | Foto: CBF

>Em 2019:

A Ferroviária foi bicampeã nacional em 2019, sob o comando de Tatiele Silveira, que tornou-se a primeira treinadora campeã da história do Campeonato Brasileiro. Cerca de 8 mil pessoas marcaram presença no Parque São Jorge para acompanhar a segunda final entre Corinthians e Ferroviária. O título acabou decidido nos pênaltis, com vitória da Ferrinha por 4 a 1, após empate em 1 a 1 no tempo regulamentar.

Mas o primeiro recorde de público em jogos entre clubes feminino foi registrado no Paulistão daquele ano! O Corinthians foi campeão estadual sobre o São Paulo, por 3 a 0, diante de 28.862 presentes na Arena do clube. A festa foi linda e era só o começo de uma sucessão de recordes de público que o Timão bateria ano após ano. 

>Hoje:
O público vem crescendo nos estádios que recebem jogos de futebol feminino. Os recordes mais recentes para um jogo feminino de clubes no Brasil foram quebrados nas últimas finais do Brasileirão feminino, disputadas em setembro do ano passado. No jogo de ida, Internacional e Corinthianso jogaram diante de 36.330 torcedores no estádio Beira-Rio. Uma semana depois, o Corinthians reuniu 41.070 presentes na Neo Química Arena para a partida de volta da decisão, registrando também um recorde sul-americano de público.

A final do Paulista feminino de 2023 não contou com o Corinthians, clube que vem puxando esse bonde no país. Ainda assim, os finalistas fizeram bonito. Mais de 20 mil torcedores marcaram presença no Alianz Parque para ver o Palmeiras ser campeão sobre o Santos – foi o melhor público das Palestrinas em jogos de futebol feminino.

Premiação
Marta foi homenageada na 1ª premiação igual aos destaques do Brasileirão masculino e feminino| Foto: Lucas Figueiredo/CBF

>Em 2019:

Campeã brasileira em 2019, a Ferroviária levou R$ 120 mil em premiação da CBF pelo título; enquanto o Corinthians recebeu R$ 60 mil por ter sido vice-campeão. Foram os mesmos valores desembolsados às mulheres pela CBF desde 2016. Isso porque o Brasileiro feminino foi criado em 2013 sem qualquer premiação.

Mas aquela edição marcou a primeira vez que a CBF premiou, de forma igual, mulheres e homens que foram destaques do principal campeonato nacional, no Prêmio Brasileirão 2019. “Depois da Copa do Mundo na França, colocamos mulheres no comando do futebol feminino e multiplicamos as competições femininas”, discursou o então presidente da CBF, Rogério Caboclo.

>Hoje:

A premiação dos melhores do Brasileirão continua acontecendo no feminino ao fim de cada edição, mas a edição 2023 do campeonato começou novamente sem informar o valor da premiação aos clubes. No ano passado, o campeão Corinthians ganhou R$1 milhão e o vice Internacional, R$500 mil. Ao todo, a CBF distribuiu R$ 5 milhões aos clubes participantes. Vale ressaltar realmente o aumento dos valores, que devem continuar acompanhando a evolução das competições femininas, mas ainda há bastante o que melhorar.

Os clubes começaram o Brasileirão deste ano novamente sem informação sobre os valores que podem receber ao longo do campeonato. No ano passado, a CBF comunicou a premiação apenas três dias antes do segundo jogo da final. Diferentemente de 2019, quando havia apenas uma competição nacional no futebol feminino do país, a Supercopa Feminina chegou à segunda temporada neste ano. O Corinthians foi o campeão e recebeu  R$ 500 mil, enquanto o Flamengo levou R$ 300 mil pela segunda colocação. 

O que ainda precisa avançar
Cristiane e Formiga deixaram o SPFC frustradas | Fotos: Reprodução Instagram/Rubens Chiri/saopaulofc.net

Em 2019, o São Paulo reativou o time feminino e ainda contratou a Cristiane como estrela do novo projeto. A então atacante da seleção brasileira tinha acabado de voltar a jogar no Brasil e ajudou a equipe a ser campeã da Série A2, conquistando o acesso à elite. Cristiane, porém, se despediu do São Paulo no fim daquele ano com muitas reclamações da falta de estrutura e profissionalismo com o futebol feminino.

Quatro anos depois, é a vez de a Formiga repetir as críticas ao São Paulo. A eterna camisa 8 da seleção deixou o Paris Saint-Germain em 2021 para se aposentar no time do coração que a revelou para o futebol mundial. Duas temporadas depois, porém, ela diz ter se arrependido do retorno ao São Paulo. As queixas são inacreditavelmente extensas para o tamanho do clube e incluem gramado sintético usado para os treinos do feminino, horário limitado para uso da academia, quantidade limitada também de uniformes disponibilizados às jogadoras e disponibilidade de apenas um turno para fisioterapia.

Formiga estava entre as 12 jogadoras do profissional e da base que se desligaram do São Paulo no fim do ano passado, além do treinador Lucas Piccinato. “A gente juntava a galera para conversar e debochavam quando eu sugeria melhorias. A estrutura que dão até hoje para o futebol feminino não é boa. Não é bacana”, contou Formiga, em entrevista ao Uol.

Cristiane divulgou solidariedade à Formiga e às demais atletas por meio das redes sociais. “Quando falamos algo que o clube pode fazer de melhor pelo futebol feminino, é porque vivenciamos de tudo nessa vida profissional, altos e baixos, por isso temos propriedade de falar sobre aquilo que estamos sugerindo”, desabafou a atual atacante do Santos. “Enquanto tratarem um assunto tão sério com deboche e amadorismo, sempre iremos retornar às obscuridades do passado”, completou. E olha que as autoras das críticas são a Formiga e a Cristiane. Duas jogadoras históricas do Brasil!

É preciso respeitar e reconhecer os espaços conquistados pelas mulheres. O futebol feminino evoluiu em muitos aspectos no Brasil, mas ainda há muitos dirigentes ultrapassados em clubes de futebol que travam um avanço maior. Um exemplo gritante neste ano é a maneira como o Ceará vem lidando com a equipe feminina no primeiro ano na elite após ter sido campeão da Série A2 no ano passado.

Mesmo clubes que fazem investimentos mais robustos, como Palmeiras, Flamengo e o próprio São Paulo, cometem deslizes, como a escolha do mando de campo de jogos decisivos, que inibem todo o potencial que poderiam apresentar na modalidade.

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