Como foi o caminho da seleção americana até o acordo por igualdade

Após seis anos de uma luta na Justiça, as jogadoras da seleção feminina dos Estados Unidos chegaram a um acordo de 24 milhões de dólares (cerca de R$ 123 milhões) em seu notório processo contra a US Soccer, federação responsável pelo esporte no país. O motivo do processo era uma acusação de que a entidade discriminava as jogadoras, pagando menos do que aos atletas do futebol masculino, muito embora eles executassem a mesma função.

As jogadoras vão dividir 22 milhões de dólares entre elas e a US Soccer se comprometeu a usar o restante para estabelecer um fundo de apoio para ajudar jogadoras no período pós-carreira. A entidade ainda prometeu igualar os valores pagos às seleções masculina e feminina, incluindo bônus por Copas do Mundo.

“Este vai ser um daqueles momentos incríveis, vamos olhar para trás e dizer que o futebol mudou para sempre, que a US Soccer mudou para sempre, e que o cenário do futebol neste país e no mundo mudou para sempre por causa disso”, disse Megan Rapinoe após o anúncio.

No entanto, a notícia não foi bem aceita por Hope Solo, uma das primeiras atletas a se posicionar sobre o tema. Segundo a ex-goleira, pagar um grupo de jogadoras e não efetivar um novo acordo coletivo de termos e condições do trabalho não garante que os avanços prometidos sejam efetuados. “Este acordo não é uma ‘grande vitória’. É de partir o coração, é revoltante. Uma ‘promessa’ de pagamento igualitário pela Federação e a luta não era sobre isso”, publicou ela no Twitter. Além disso, Hope fez questão de criticar a atuação das ex-companheiras de seleção Megan Rapinoe e Alex Morgan.

“Durante todo o processo, Rapinoe e Morgan eram as duas mais de acordo com a USSF e, até hoje, continuam a aceitar termos que não estão nem próximos do que nós começamos a fazer. Elas sabem que isso não é uma vitória. Elas sabem que é uma saída fácil de uma luta na qual elas nunca estiveram investidas.”

Rapinoe e Morgan não se pronunciaram após as críticas da ex-companheira de seleção. Ainda não dá para saber se esta promessa será cumprida, mas este acordo é um reconhecimento de que, sim, houve tratamento desigual, além de uma compensação para as jogadoras que sofreram com esta discriminação. É um precedente que pode abrir muitas portas para o futuro.

O processo

Para muita gente, é difícil lembrar como este processo começou. Já contamos por aqui, na época das Olimpíadas de Tóquio, a história da Title IX: lei aprovada nos anos 1970 nos EUA que dizia: “Nenhuma pessoa nos Estados Unidos deve, com base no sexo, ser excluída da participação, ter benefícios negados ou ser sujeita a discriminação em qualquer programa ou atividade educacional que receba assistência financeira federal.”

Isso já garante que a participação de mulheres no esporte seja ampla pelo país. E, ao ver os resultados da seleção feminina – ouro em duas Copas do Mundo e duas Olimpíadas – e comparar com os da masculina, não fazia sentido que elas recebessem menos do que os homens.

Entre 2013 e 2014 – mais ou menos na época de lançamento da primeira temporada da NWSL -, a seleção feminina e a federação assinaram um memorando que serviria como acordo coletivo até o fim de 2016 – o CBA inicial havia expirado em 2012. No entanto, em 2015, a associação de jogadoras da seleção entra em contato com a US Soccer e afirma que, como o acordo coletivo já não existia, o memorando poderia ser anulado pela própria seleção.

Alex Morgan comemora gol da seleção norte-americana contra a Inglaterra. Foto: US Soccer

Meses depois, em março de 2016, o grupo formado por Hope Solo, Carli Lloyd, Megan Rapinoe, Alex Morgan e Becky Sauerbruun apresentou uma queixa formal na Comissão de Oportunidades Iguais de Trabalho (EEOC, na sigla em inglês), afirmando que havia diferenças no pagamento e tratamento dado às duas seleções.

A batalha judicial se estendeu até o dia em que o memorando expirou, em 31 de dezembro de 2016. Entre ameaças de greve e negociações, em 2017 a seleção e a US Soccer assinaram um novo acordo coletivo, válido até 2021. O novo termo garantiu um aumento de valores e diárias e melhores condições de viagens.

A luta não parou por aí. Dois anos depois, no Dia Internacional da Mulher, a seleção entrou com uma queixa na corte federal alegando discriminação por gênero e pedindo pagamento retroativo, igualdade de valores e outras compensações. A US Soccer se defendeu alegando que as diferenças não eram devido ao gênero, mas sim decisões administrativas. Em 2020, a seleção afirmou que, de acordo com especialistas, elas deveriam receber 66 milhões de dólares como resultado do processo.

Meses depois, em março de 2020, o então presidente Carlos Cordeiro pediu desculpas por afirmar, entre os documentos do processo, que homens eram mais fortes que mulheres e que a seleção feminina seria menos habilidosa do que a masculina. Ele renunciou ao cargo no dia seguinte – mas já anunciou que pretende voltar à posição.

Ainda em 2020, uma corte na Califórnia julgou que as jogadoras da seleção feminina aceitaram uma estrutura diferente de pagamento do que a masculina e, por isso, não deveriam receber o pagamento retroativo. No entanto, aceitou que as queixas de tratamento desigual poderiam seguir em frente. Na época, várias jogadoras se pronunciaram garantindo que não iam desistir.

Enquanto isso, o então candidato à presidência Joe Biden prometeu reduzir os fundos dedicados à Copa do Mundo Masculina de 2026 nos Estados Unidos a não ser que a US Soccer garantisse o “equal pay” às jogadoras.

No começo de fevereiro de 2022, a EOCC anunciou que o recurso da seleção começaria a ser ouvido em 7 de março. No entanto, 13 dias antes da data, surgiu o anúncio do acordo. A US Soccer e a seleção divulgaram um comunicado em conjunto. “Hoje, reconhecemos o legado das líderes do passado da seleção feminina que ajudaram a realizar o dia de hoje, assim como as mulheres e meninas que ainda virão. Juntos, dedicamos este momento a elas.”

A luta destas jogadoras durou anos, mas não começou ali. Em um país que já reforça há décadas o direito de mulheres de participarem de esportes e serem recompensadas por isso de forma igualitária, a US Soccer levou muito tempo tentando combater a mudança ao invés de aceitar que as reivindicações de uma das seleções mais vencedoras do mundo seria justa. E a luta não para por aí. Ela deve se estender para outras seleções, para as ligas de clubes e para outros mercados de trabalho fora do esporte, pois este foi só mais um passo na luta pela igualdade de gênero.

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