Aos 35, técnica do Canadá tenta manter a escrita de mulheres campeãs

O universo do esporte historicamente teve portas fechadas para as mulheres. E se já foi difícil para que elas conquistassem um espaço dentro do campo, das quadras, das piscinas, fora deles o desafio é ainda maior. As treinadoras ainda são raridade na maioria das modalidades, inclusive nas femininas.

Segundo levantamento do “Female Coaching Network”, apenas 26,8% das posições de comando dos esportes coletivos (técnicos, assistentes, etc) nos Jogos Olímpicos de Tóquio são ocupadas por mulheres. A maior disparidade acontece no rugby, modalidade que não tem nenhuma representante feminina trabalhando nas comissões técnicas das seleções participantes desta Olimpíada. Também chama a atenção a situação do futebol, em que elas representam apenas 15% dos treinadores e assistentes.

Isso fica evidente até mesmo no futebol feminino. Das 12 seleções que estiveram em Tóquio, cinco eram comandadas por mulheres (menos da metade). Todas elas avançaram até as quartas-de-final – mas só uma (Bev Priestman, do Canadá) chegou às semifinais e agora, na decisão, tentará manter uma escrita que já dura 21 anos.

A última vez que um homem sagrou-se campeão olímpico no futebol feminino como treinador foi nos Jogos de Sidney-2000, com Per-Mathias Hogmo pela Noruega. Depois disso, foram quatro edições olímpicas, sempre com treinadoras campeãs (April Heinrichs com os Estados Unidos em 2004, Pia Sundhage com os Estados Unidos em 2008 e 2012, Silvia Neid com a Alemanha em 2016).

Foto: AP

A tarefa para a treinadora de 35 anos não será fácil. O Canadá chega a essa decisão como “a zebra” desta Olimpíada, depois de ter deixado pelo caminho Brasil e Estados Unidos. Ela levou as canadenses pela primeira vez a uma final olímpica e agora busca a consagração absoluta com o ouro em cima das favoritas suecas – que, por sua vez, também buscam um título inédito nesses Jogos Olímpicos.

“Todo o crédito para as jogadoras. Elas deixaram tudo no campo. Significa muito para todas elas chegar a essa final. Para nós, fomos claros, queríamos mudar a cor dessa medalha. Vencedoras conquistam e nós vamos para essa final para conseguir a medalha de ouro”, disse Bev Priestman após a vitória por 1 a 0 sobre as americanas na semifinal.

(Foto: Koki Nagahama/Getty Images)

Consciente de ser “a exceção” em um universo ainda majoritariamente masculino dos treinadores de futebol, Bev nunca escondeu sua ousadia com a seleção canadense. “Estamos prontas para mudar a cor da medalha”, era o que ela dizia ainda antes dos Jogos Olímpicos começarem. O Canadá foi bronze nas duas últimas edições olímpicas e agora, ao menos isso já está garantido: a cor da medalha será outra.

“Acredite no que está fazendo. Para mulheres treinadoras, isso pode ser difícil. Nunca é um caminho sem obstáculos. Mas se você sonha alto, às vezes as coisas dão certo para você”, afirmou.

Quem é Bev Priestman?

Bev Priestman ainda é jovem – mais nova que Christine Sinclair, a lendária jogadora canadense de 38 anos que estará em campo na final -, mas já tem uma trajetória interessante no futebol. Nascida em Consett, norte da Inglaterra, ela não chegou a ser jogadora profissional, mas alimentou o amor pelo futebol desde a infância.

Jogando com os meninos, Bev teve a oportunidade de conhecer uma pessoa importante na sua futura carreira como técnica. Ela era a única menina do time de futebol da escola (a Castleside Primary School) e lá encontrou John Herdman, hoje técnico da seleção masculina do Canadá. Ele foi como um “mentor” para o início de Bev no futebol. Se como jogadora, ela acabou não “vingando”, aos 25 anos, a britânica teve a chance de ir para a Nova Zelândia para ser chefe do departamento de desenvolvimento de futebol feminino a convite de Herdman, que comandava a seleção neozelandesa. Nesta época, ela já havia estudado Ciência do Futebol na Universidade e já tinha a licença A de treinadores da Uefa.

Bev Priestman com John Herdman como auxiliar em 2016 (Foto: The Canadian Press)

“Eu sabia que não iria jogar profissionalmente. Eu era mais uma ‘peladeira’. John foi uma das pessoas que me encaminhou para a carreira de treinadora”, disse à CBC.

Isso aconteceu em 2011. Em seguida, o próprio Herdman deixou o cargo para assumir a seleção canadense, e pouco tempo depois, também levou Bev Priestman para lá. Entre 2013 e 2016, ela comandou a seleção sub-17 do país, depois de 2016 a 2018, ficou com a sub-20. Nesse meio-tempo, chegou a ir para competições como auxiliar de Herdman na principal – inclusive esteve na equipe técnica em 2016, quando as canadenses conquistaram o bronze vencendo o Brasil na disputa.

Mas 2018 foi o ano da separação. Bev recebeu um convite para ser auxiliar do técnico Phil Neville na Inglaterra e foi para lá – ela fez parte da campanha da seleção inglesa na Copa do Mundo de 2019 (quarto lugar).

Bev Priestman com Phil Neville como auxiliar na Inglaterra (Foto: Getty Images)

“A melhor coisa que eu fiz para o meu desenvolvimento pessoal foi ir para a seleção inglesa. Quando você trabalha com uma pessoa (Herdman) por tanto tempo e vê as coisas de uma forma, isso é tudo o que você sabe. Eu sabia que eu queria ser uma treinadora. Para a minha jornada pessoal, foi crucial, se eu não tivesse feito isso, acho que não estaria aqui hoje”, disse.

“Ao mesmo tempo, eu não teria tido essa oportunidade sem o apoio e o desenvolvimento que pude ter com John. Ele fez muito pelo futebol feminino no Canadá. Sem ele, teria sido muito mais difícil. Então acho que sair daqui por um tempo foi bom porque agora, quando eu falo, as jogadoras agora sabem que não estão ouvindo John Herdman, elas estão ouvindo Bev Priestman”.

Chance de ouro

A oportunidade de comandar a seleção principal do Canadá veio em outubro de 2020. Por conta da pandemia, a treinadora só pôde “estrear” oficialmente no cargo no torneio amistoso “She Believes Cup”, que aconteceu em fevereiro, nos Estados Unidos – saiu de lá com duas derrotas (para Brasil e Estados Unidos) e uma vitória (sobre a Argentina). Mas talvez ali ela tenha identificado algumas estratégias que poderia ter para vencer as duas equipes caso elas viessem a se encontrar novamente nos Jogos Olímpicos (como efetivamente aconteceu).

“Nós jogamos contra as americanas em fevereiro e isso nos deu uma ideia do que poderíamos explorar”, disse depois da semifinal.

Foto: Canada Soccer

Bev Priestman chegou a tomar decisões que muitos questionaram, como a troca da zaga titular do Canadá durante a Olimpíada apostando em Vanessa Giles (25 anos, uma das estreantes em Tóquio) para o lugar de Shelina Zadorsky (28 anos, titular na Copa de 2019 e bronze na Rio-2016), e na titularidade de Sinclair pela importância da liderança que ela exerce em campo.

Mas por enquanto, tudo deu muito certo. A defesa tomou apenas três gols em toda a competição e passou ilesa nas quartas-de-final e semifinal. A organização tática do time faz com que os melhores ataques do mundo (como o americano) encontrem dificuldades para infiltrar na área canadense. Ainda falta ter um ataque mais agressivo, mas considerando o início de trabalho de Bev Priestman à frente do time, a simples presença dela em uma final olímpica inédita já é um feito enorme.

A final será contra a Suécia nesta sexta-feira às 9h com transmissão do Sportv.

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