Como a Holanda revolucionou o futebol feminino e virou finalista da Copa

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Essa é apenas a segunda participação da Holanda na história da Copa do Mundo feminina e o país já conseguiu um feito impressionante: chegar a uma final. Campeã europeia de 2017 desbancando países mais tradicionais na modalidade, como Suécia e Inglaterra, a seleção holandesa chegou a esse Mundial com mais prestígio, mas as próprias jogadoras admitiram após a semifinal que a classificação para a decisão era algo “inacreditável” para elas.

Um resultado expressivo, independentemente do placar final da partida deste domingo contra o poderoso Estados Unidos, e que não veio à toa. O plano de desenvolvimento do futebol feminino na Holanda começou há pelo menos 15 anos e os frutos têm sido colhidos agora.

“Acho que o potencial estava na Holanda já há muito tempo, mas as instalações para o desenvolvimento não estavam. Depois de 2007, com o investimento dos clubes, as jogadoras conseguiram ter o que precisavam para melhorar, pra se desenvolver como atletas. Agora, as jogadoras agora são muito experientes e elas acreditam que podem chegar mais longe”, afirmou a técnica Sarina Wiegman na coletiva após a semifinal.

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Inspiradas por uma thread do Twitter “Copa Além da Copa”, viemos contar aqui um pouco do “segredo” que fez com que a seleção holandesa virasse uma das principais do mundo em tão “pouco” tempo. Para resumir lembrando o bordão do técnico Muricy Ramalho, a palavra-chave aqui é trabalho.

Investimento na base

O plano que iniciou o desenvolvimento do futebol feminino na Holanda começou em 2004 e era chamado Jeugdplan Nederland (Plano de Base para a Holanda). A ideia era relativamente simples: promover a iniciação no futebol para meninas e meninos juntos. Até a adolescência, os clubes e campeonatos passaram a ser mistos para abrigar tanto os garotos, quanto as garotas, e isso possibilitou a estrutura que faltava para que elas começassem a jogar futebol.

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Antes, uma menina que quisesse jogar bola, não teria onde treinar, nem um campeonato para disputar. Com essa medida, elas passaram a treinar tanto quanto os meninos e foram incluídas nas competições também. Vera Pauw, ex-jogadora e técnica da Holanda entre 2004 e 2010, explica que até mesmo os nomes dos campeonatos mudaram para “torneios de base” em vez de “torneios masculinos ou femininos”. O desenvolvimento foi gigantesco, porque aproveitou uma geração inteira de garotas que sonhavam em jogar bola, mas não tinham oportunidade de fazê-lo. O problema, porém, passou a ser a continuação após a base.

Os meninos tinham toda uma liga profissional estruturada, inúmeros clubes e possibilidades para que eles continuassem no futebol. Já as meninas, quando chegavam à fase adulta, tinham uma regressão. Os poucos clubes femininos que existiam eram amadores e não forneciam estrutura de treinamento adequada.

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“Era o momento em que elas tinham uma queda. Na base, treinavam cinco vezes por semana com os técnicos mais qualificados; na categoria adulta feminina, treinavam duas vezes na semana, em um pedaço do campo, tarde da noite e com técnicos voluntários. Então em 2007, nós tivemos que fazer algo para mudar a realidade dos times adultos. Aí nós começamos uma liga com equipes femininas que eram vinculadas aso clubes masculinos”, contou Pauw ao site AIPS Media.

Futebol masculino e feminino conectados

A chave aí foi fazer com que os principais times masculinos da Holanda passassem a investir no futebol feminino. Assim, as mulheres poderiam contar com uma estrutura profissional de treinamento e jogo para que pudessem se desenvolver como atletas.

“As jogadoras na época atuavam em times amadores e eram privadas de qualquer experiência internacional de futebol porque tudo isso estava nas equipes masculinas e nos campeonatos dos homens. Então nós quisemos conectar aqueles clubes profissionais masculinos com o futebol feminino e esse foi o segredo. Foi uma luta, mas conseguimos, e isso possibilitou o surgimento dos talentos holandeses nas equipes femininas”, disse a ex-jogadora.

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O resultado disso pode ser visto nos números. Se até 2006, a Holanda tinha cerca de 88 mil jogadoras registradas, em 2017 esse número passou a ser 153 mil.

Essa profissionalização também teve reflexo na “exportação” das jogadoras holandesas para alguns dos principais clubes europeus. Um dos maiores destaques da seleção, Lieke Martens, joga no Barcelona; Miedema joga no Arsenal; Van de Sanden é do Lyon; Groenen joga na Alemanha, no Frankfurt. E assim por diante.

Com a estrutura para treinar desde pequenas e para jogar profissionalmente, a Holanda alavancou o futebol feminino do país e formou um time “cascudo”, que mostrou sua força em 2017 ao ser campeã da Eurocopa em casa, quando poucos apostariam na seleção do país para o título. Mas é preciso pontuar que essas conquistas vieram depois do investimento feito nos últimos 15 anos.

Para se ter uma ideia, há dois anos, a Inglaterra era o país que mais investia no futebol feminino, com cerca de R$ 67,8 milhões por ano. A Holanda era o segundo país que mais investia, com R$19,6 milhões por ano.

Técnica Sarina Wiegman levou Holanda a ser campeã europeia e agora disputará final da Copa (Foto: FIFA / Getty Images)

Nenhum resultado no futebol pode vir sem que o devido trabalho seja feito antes. Foi assim que a Holanda conseguiu “tirar o atraso” de tantas décadas em que ignorou a presença das mulheres nesse esporte – o primeiro time feminino lá surgiu em 1924, mas foi excluído pela confederação do país, que mantinha o retrógrado pensamento de que o papel da mulher deveria se resumir ao da esposa e dona de casa.

Em 1955, as equipes femininas se juntaram para fazer a primeira liga à despeito do reconhecimento da confederação e foi só em 1971 que o futebol feminino foi reconhecido pela entidade. Foram muitos anos de descaso, não à toa a hoje técnica holandesa, Sarina Wiegman, foi jogar nos Estados Unidos no fim da década de 1980 justamente por não ver qualquer perspectiva para a modalidade em seu país de origem. Hoje, porém, a Holanda virou exemplo. A Euro conquistada em casa atraiu olhares de milhões de torcedores, que passaram a acompanhar a seleção feminina literalmente por onde ela fosse – em todos os estádios da França onde elas jogaram, uma multidão laranja esteve junto para apoiá-las. O futebol passou a ser uma possibilidade para as meninas, graças ao investimento e ao trabalho que agora fizeram da Holanda finalista da Copa do Mundo.

As holandesas sabem muito bem que não são favoritas para o confronto contra os Estados Unidos. Mas elas também têm consciência de que o legado que deixam para as próximas gerações é muito maior do que qualquer troféu que eventualmente possa vir neste domingo.

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