A Libertadores feminina coleciona problemas em todas as suas edições, desde 2009 até aqui. Mas a deste ano parece ter atingido o ápice. Enquanto Quito vivia um caos político com protestos, bombas e confrontos entre polícia e manifestantes acontecendo todos os dias nas ruas, a Conmebol mantinha a “organização” de um torneio considerado o mais importante das Américas para o futebol feminino.
Os times não puderam sair do hotel por dias, qualquer mínima movimentação precisava ser feita com escolta. Treinos foram cancelados e a preparação de equipes que chegaram mais cedo à cidade – justamente para se adaptarem à altitude – foi completamente prejudicada. Havia toque de recolher em vários pontos da cidade. O governo chegou a transferir sua sede administrativa para Guayaquil por segurança, e até mesmo o Campeonato Equatoriano masculino ficou suspenso. O aeroporto ficou fechado, ninguém podia desembarcar em Quito, nem decolar de lá para outro lugar.
A própria Conmebol mudou a sede de uma reunião que aconteceria ali no dia 17 de outubro para definir a sede da final da Libertadores masculina de 2020. Ela estava, claramente, preocupada com seus dirigentes. Mas com as mulheres que ali estavam para disputar o torneio não houve a mesma preocupação. A reportagem, aliás, tentou contato com a entidade, mas ela só se manifesta por meio de comunicados oficiais.
Em meio a todo o caos que aconteceu ao longo de toda a última semana, a Conmebol insistiu em manter o torneio acontecendo em Quito. O Corinthians, um dos representantes brasileiros, precisou mudar de hotel por questões de segurança. Jogadoras de diversas equipes que estavam ali para a disputa relataram medo para a FIFPro, uma espécie de sindicato de atletas de futebol do mundo inteiro, e a entidade chegou a escrever uma carta à Conmebol pedindo a suspensão da competição. Tudo em vão.
A @FIFPro , uma espécie de sindicato de atletas de futebol do mundo todo, escreveu uma carta pedindo à @CONMEBOL a suspensão da Libertadores Feminina. Jogadoras dos clubes envolvidos na competição contataram a entidade afirmando estarem com medo de permanecerem em Quito. https://t.co/0Lrmh1DZpg
— dibradoras (@dibradoras) October 13, 2019
O torneio começou na sexta-feira com todos os jogos acontecendo, mesmo com a cidade sob protestos. No sábado, ao menos uma decisão sensata: com o agravamento da situação, a rodada prevista para aquele dia foi adiada. Ninguém saiu do hotel naquele dia. Somente no domingo, equipes tiveram autorização para treinar escoltadas. Houve pressão inclusive da CBF para que a Conmebol garantisse a segurança dos times, sem prejudicá-los com adiamento de treinos e jogos, em caso de manutenção da competição.
E, na noite deste domingo, um acordo entre manifestantes e o governo equatoriano parece finalmente ter selado a paz em Quito. O presidente Lenín Moreno aceitou a reivindicação dos indígenas para voltar com os subsídios aos combustíveis (que tinham sido suspensos na última semana, desencadeando os protestos). Com isso, os protestos programados para acontecer nos próximos dias foram cancelados.
Diante disso, a Conmebol anunciou que manterá a Libertadores feminina, remarcando a rodada que deveria ter acontecido no sábado para esta segunda-feira. No comunicado, um discurso que faz parecer que ela realmente estava preocupada com os clubes – só que, se realmente estivesse, não teria deixado sequer as equipes desembarcarem em Quito em meio a tanto caos.
“Por meio da presente, nos dirigimos a vocês e por seu intermédio dos clubes participantes do evento em referência, com o fim de informá-los que a Conmebol decidiu prosseguir com a Libertadores feminina – Equador 2019.
A Conmebol Libertadores feminina é o torneio mais importante de clubes sul-americanos, teve uma preparação de mais de 5 meses e envolve mais de 600 pessoas entre jogadoras, árbitras, e equipes de trabalho.
A Conmebol, o Comitê Organizador e a Federação Equatoriana de Futebol estiveram trabalhando de maneira coordenada com as autoridades locais nos últimos dias com o objetivo de garantir a segurança das equipes e dar continuidade ao torneio, garantindo a segurança dos participantes. Da mesma forma, durante esses dias, a comunicação com as Associações Membro e clubes tem sido constante.
Levando em consideração a reunião entre o governo equatoriano e representantes dos manifestantes que terminou em uma acordo que poderá garantir o fornecimento de serviços básicos e da segurança adequada a esse tipo de evento, a Conmebol decidiu continuar com a realização do torneio.
No dia 14 de outubro, serão realizados os jogos originalmente agendados para od ia 12 de outubro, e a versão ajustada da tabela será enviada em breve”.
A situação em Quito nesta segunda-feira já é muito mais tranquila por conta do acordo firmado na noite de domingo. No entanto, isso não apaga a irresponsabilidade da Conmebol ao lidar com o problema até aqui, mantendo delegações inteiras “presas” nos hotéis, em meio à tensão de tudo o que ocorria na cidade. Estava muito claro há dias que não havia qualquer condição de realizar um torneio deste (ou de qualquer) porte numa sede que vivia tamanho caos. Não seria seguro para as atletas, não seria seguro para torcedores e não seria sequer adequado esportivamente. Como fazer times entrarem em campo diante do medo que sentiam simplesmente de estarem na cidade? Sem poder treinar ou se preparar como haviam planejado?
O Corinthians pagou suas próprias passagens para viajar uma semana antes da estreia, com o intuito de se ambientar com a altitude. Metade dos treinos da equipe foi cancelada ao longo desses dias por questões de segurança. O time estreia nesta segunda, às 19h, contra o Clube Ñañas, do Equador (transmissão do DAZN).
Agora, as equipes aguardam a divulgação do novo calendário e esperam não serem ainda mais prejudicadas, com jogos acontecendo num intervalo menor do que 72h (como, aliás, já aconteceu em Libertadores passadas).
A Conmebol precisa olhar com mais respeito para o futebol das mulheres e parar de “fingir” que organiza um campeonato importante.