Regildenia lutou contra assédio, se aposentou aos 45 e se tornou instrutora

Legado familiar: Guilherme Holanda Moura (assistente), Gustavo Holanda Souza (4º árbitro) e Bruno Henrique Mascarenhas Moura (2º árbitro assistente) todos sobrinhos de Regildênia (Foto: Luciano – @fotosguima)

No último sábado (05/10), Regildenia de Holanda Moura encerrou um ciclo de quase 20 anos dedicados à arbitragem. Foi na Rua Javari, em São Paulo, no jogo entre Juventus e Santos – válido pelo Campeonato Paulista masculino Sub-20 – que a árbitra escolheu se aposentar.

Sim, ela fez um pedido para a Federação Paulista de Futebol para que seu último jogo acontecesse em São Paulo para que ela pudesse contar com a presença da família na arquibancada. E lá estavam eles: mãe, irmãos, sobrinhos e primos todos uniformizados torcendo pela árbitra.

Dentro de campo, a família também marcou presença com Guilherme Holanda Moura Lima, Bruno Henrique Mascarenhas Moura e Gustavo Holanda Souza, seus sobrinhos e árbitros assistentes da partida. Na hora do apito final, Regildenia passou o bastão para Gustavo, simbolizando um legado que agora é ela quem deixa para eles. 

(Foto: Luciano – @fotosguima)

“Já tinha programado de encerrar minha carreira aos 45 anos de idade porque queria encerrar bem fisicamente, tecnicamente, fazendo grandes jogos e passando no teste físico para fazer jogos masculinos profissionais e aconteceu exatamente do jeito que eu imaginei”, revelou a árbitra às dibradoras.

Em janeiro, Regildenia passou no teste físico exigido pela Federação Paulista de Futebol pela 7ª vez para arbitrar jogos do campeonato masculino. Neste ano, ela foi árbitra principal de jogos da Série A3 do Paulista Masculino, do Brasileiro Feminino A2 – entre eles o primeiro jogo da final entre São Paulo e Cruzeiro – e do Brasileiro Feminino A1 – como a decisão entre Corinthians e Ferroviária no Parque São Jorge.

A família Holanda Moura (Foto: Luciano – @fotosguima)

“A minha intenção era de passar uma mensagem positiva e um exemplo para as meninas, principalmente na parte física, mostrando para elas que é possível. Apesar de toda a dificuldade de uma mulher fazer um teste físico masculino, com determinação e foco é possível. Quis mostrar isso para as menina de 25, 30, 35 anos, quando pensarem na dificuldade, lembrarem que a Regildenia com 45 anos conseguiu e que elas podem conseguir também”

O início

Regildenia nasceu em Ouricuri  (Pernambuco), é a caçula de seis irmãos e foi graças a um deles que ela se interessou pelo futebol e pelo apito. “Meu irmão Eraldo era apaixonado por futebol e jogava na várzea. Aí ele machucou o joelho, fez um curso de arbitragem e passou a apitar. Eu sempre ia ver ele apitar jogos e me interessei”, contou às dibradoras em 2017, no podcast pela Central3. 

Em 2000, ela começou a se preparar fazendo cursos de arbitragem e foi na liga de futebol amador em São Bernardo do Campo que ela começou a apitar. Em 2004,passou a trabalhar sob a chancela da Federação Paulista de Futebol, em 2007 integrou o quadro de árbitros da CBF e em 2012 se tornou árbitra FIFA.

Durante sua carreira, a árbitra revelou enfrentar mais resistência por parte de dirigentes de clubes e de quem escala a arbitragem para os jogos do que pelos atletas que estão dentro de campo. 

(Foto: Divulgação)

Em 2015, Regildenia entrou na Justiça contra o presidente do Sindicato dos Árbitros de Futebol do Estado de São Paulo e membro da Comissão de Arbitragem da FPF, Arthur Alves Junior, por assédio moral e sexual. 

Segundo relatou, o dirigente praticava assédio moral com homens e mulheres, manipulando os profissionais da arbitragem. “Como tinha o poder, ele escalava os árbitros e, caso o profissional não pudesse comparecer, o dirigente dizia: ‘ah, não vai? Então você vai ficar 15 dias sem apitar um jogo na Federação Paulista'”, contou.

Por anos, Regildenia ouviu cantadas e chantagens do dirigente, até que em certo momento decidiu agir. “Fui muito prejudicada e ele estava nessa gestão há dez anos. Pensei que alguém deveria fazer alguma coisa porque estava cada vez pior. Ele falava ‘eu mando, eu tenho o poder’ e nos ameaçava mesmo”, contou.

(Foto: Divulgação)

Decidida, Regildenia fez uma denúncia por conta própria na Corregedoria da FPF, prestou depoimento relatando os fatos e, depois disso, outros árbitros também confirmaram os episódios. O dirigente foi demitido e, na época, negou as acusações e chegou a declarar que a árbitra estava querendo aparecer.

“Muitos questionaram porque só decidi falar depois (o assédio aconteceu em 2009). Eu cheguei a falar com a Federação na época só que a coisa foi piorando e não só pro meu lado. Muitos árbitros bons deixaram a profissão porque não estavam aceitando se submeter a isso. Aquilo estava me irritando, sabia que poderia perder o escudo (de árbitra) e tudo que conquistei, mas poderia salvar uma nova safra de profissionais. Os novos árbitros não precisavam passar por aquilo que estávamos passando.”

Pós-carreira

Regildenia deu adeus ao campo de jogo no sábado, dia 05 de outubro de 2019. No dia seguinte, embarcou para o Equador para iniciar uma nova trajetória: ser instrutora de arbitragem. Pela vivência e tempo que tem na área, ela quer dividir o conhecimento com uma nova geração de profissionais.

“Tudo aconteceu do jeito que pensei. No dia seguinte embarquei para acompanhar a Libertadores Feminina onde já estou exercendo minha nova função que tanto sonhei, que é ser instrutora de arbitragem.”

Árbitra paranaense, Edina Alves Batista, realiza teste físico ao lado dos homens para conseguir apitar a Copa do Mundo Feminina em 2019 (Foto: Acervo pessoal)

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Comparando com sua trajetória no passado, Regildenia vê um cenário muito melhor para as mulheres que desejam se tornar árbitras hoje em dia. “Em 2004 eu tinha a Silvia Regina como exemplo, que abriu muitas portas para nós. Mas depois dela, a arbitragem feminina foi perdendo o espaço, as pessoas que comandavam o futebol na época não davam espaço para as mulheres. Vivemos tempos de ‘vacas magras'”, relembrou.

Depois de Silvia Regina, no início dos anos 2000, foi Regildenia quem apitou jogos masculinos como árbitra principal, mas não na Série A. Esse hiato quem quebrou foi Edina Alves Batista quando, após 15 anos, uma mulher voltou a ocupar o posto de árbitra principal em um jogo da elite do futebol brasileiro. Em maio deste ano, no estádio Rei Pelé, em Maceió, a paranaense comandou o jogo entre CSA e Goiás, pela Série A do Brasileirão.

Família de Regildenia na arquibancada com uniforme personalizado escrito “Arbitragem F.C”(Foto: Luciano – @fotosguima)

“Hoje o cenário é diferente. Com a chegada do Leonardo Gaciba na CBF, um dirigente jovem, que acabou de sair do campo de jogo e que tem um pensamento de que o árbitro deve ser valorizado, independentemente do gênero. Ele está dando essa abertura para as mulheres terem a oportunidade de mostrar seu potencial”, afirmou.

Regildenia não desistiu diante das barreiras, lutou pelos companheiros de profissão denunciando abusos sofridos e deixou um legado importantíssimo para as mulheres e para seus familiares. A Arbitragem F.C agradece!

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