Nalanda Carvalho no DreamTour de Ferrugem (Foto: @davicastrophotos)
Onde estão as surfistas negras e nordestinas do cenário do esporte brasileiro? Segundo dados da Confederação Brasileira de Surf (CBSurf), essas mulheres estão ao alcance dos nossos olhos. No Dream Tour (divisão principal do Campeonato Brasileiro de Surfe), há 24 mulheres competindo e, neste cenário, 10 são negras e 9 nordestinas: Silvana Lima, Yanca Costa, Nicole Cristina da Silva, Monik Santos, Ariane Gomes, Nalanda Carvalho, Potira Castaman, Juliana dos Santos e Diana Cristina.
“Somos um país multirracial. Mulheres negras e nordestinas fazem e devem fazer parte desse novo capítulo do surfe brasileiro. Na realidade, elas sempre estiveram presentes e lutando por esse espaço. O que precisamos é garantir que essas atletas talentosas tenham chance de competir em igualdade de condições”, declarou Brigitte Mayer, primeira brasileira surfista profissional no país e que foi eleita como vice-presidente da CBSurf, em 2022. Essa foi também a primeira vez que uma mulher ocupou esse cargo na Confederação.
Érica Prado, jornalista e ex-surfista profissional por dez anos, é fundadora do Movimento Surfistas Negras, que nasceu em 2019 para dar mais visibilidade e apoio a essas mulheres. “Agora, com esse time do Dream Tour, houve uma troca de guarda. Têm meninas que são de uma novíssima geração, entre 18 e 25 anos, como a Nalanda Carvalho, Ariane Gomes, Nicole Santos, Kaiane Reis, Yanca Costa e Julia Santos. Mas, antes dessas meninas, tinham a Tita Tavares, Alcione Silva, Cris de Souza, Silvana Lima, Viviane Maria, Alessandra Vieira… Sempre tivemos muitas mulheres negras e nordestinas no circuito, mas essas mulheres não estavam em evidência”, ressaltou Érica, em entrevista ao Dibradoras.
Construção de um novo caminho com mais presença feminina
As mulheres chegaram a ficar 10 anos sem um Campeonato Brasileiro para disputar, o que prejudicou muito o desenvolvimento da modalidade feminina. A CBSurf é presidida pelo ex-surfista Teco Padaratz desde 2022 e foi com iniciativa dele que a Dream Factory passou a promover o Dream Tour no início do ano, resgatando a Divisão Principal do Circuito Brasileiro de Surf por meio da Lei de Incentivo ao Esporte do Governo Federal, pelo Ministério do Esporte. Vale destacar que, além do DT, atualmente há outros campeonatos de surf, como a Taça Brasil, Groom Search, Circuito de Base, Longboard e etc.
Em entrevista ao Dibradoras, Brigitte também destacou a forte presença feminina na organização do torneio. “É inspirador ver que o time interno da Dream Factory (responsável pelo Dream Tour) conta com uma equipe 70% feminina. Isso sugere que mudanças em uma área historicamente dominada por homens estão acontecendo”, disse. Segundo a vice-presidente da CBSurf, as mulheres estão ocupando as mais diversas áreas de atuação na entidade, como marketing, financeiro, patrocinador e até mesmo como head de produto e CEO do DT, posto ocupado por Luana Cloper.
Há também um esforço para que haja capacitação para mulheres que desejam atuar no desenvolvimento da modalidade como juízas na equipe técnica, coordenadoras de prova nos campeonatos, técnicas exclusivas para equipe feminina, locutoras, comentaristas e nas áreas de gestão. “Temos assegurado a presença de pelo menos uma mulher no painel de julgamento em quase todas as etapas do DT e na Taça Brasil. E, como consequência, nos cursos de julgamento ministrados pela CBSurf, a procura das mulheres por capacitação vem aumentando consideravelmente. Mais uma prova de que as coisas acontecem quando criamos oportunidades e mecanismos”, ressaltou Brigitte.
Surfistas negras ainda buscam visibilidade e patrocínio
Érica é carioca, mas começou a pegar gosto pelo surf ainda criança, por influência do irmão mais velho. Morando em Itacaré, na Bahia, ainda garota começou a competir e seus primeiros resultados vieram entre 2003 e 2006, quando foi bicampeã municipal em Itacaré, bicampeã ilhaense e campeã baiana. Em 2009, Érica integrou a elite do surfe nacional, competiu em algumas etapas do Qualifying Series (QS), a divisão de acesso da Liga Mundial de Surf, e dedicou dez anos de sua vida à competição. Mas a barreira enfrentada por Érica segue a mesma de muitas garotas até hoje: a falta de patrocínio.
“Estou nesse meio há muitos anos. Sofri na pele com a falta de patrocínio e não entendia muito bem os motivos disso acontecer comigo e com outras meninas. Depois de anos, com meu letramento racial, fui entender de que forma o racismo afetava o universo do surf também. Era um assunto velado, as pessoas não falavam muito”, disse.
“Eu via as ‘Silvanas Lima’ e ‘Titas Tavares’ da vida sem patrocínio, enquanto tinham mulheres que atendiam outros padrões e estereótipos com patrocínio. Eu despertei pra isso em 2017, 2018, quando fui pra California e conheci o projeto Black Girl Surf. Na hora, eu falei: ‘Irado esse movimento, tinha que acontecer alguma coisa parecida no Brasil’, só que eu não via muita abertura'”, declarou.
Para competir nas etapas que acontecem por todo o Brasil, as atletas precisam de apoio (contar com um patrocinador) ou de trabalho remunerado, que dificulta a dedicação integral que o esporte exige. Segundo Érica, as atletas buscam alternativas para participar de campeonatos, como por exemplo, fazer rifas para pagar seus custos de viagem, hospedagem e inscrição nos torneios.
“Surfistas sem patrocínio de bico vivem de parceria (o patrocínio de bico é como se fosse um patrocínio master, a empresa estampa sua marca no bico da prancha, local de maior visibilidade). Por exemplo, nesse momento (quando a entrevista foi feita) está acontecendo uma etapa no Paraná e termina no domingo. Na terça, começa a etapa de Salvador do Campeonato Brasileiro. Nem de ônibus essas meninas conseguem chegar a tempo. Aí, a pessoa sem patrocínio precisa dar o seu jeito, pagar o avião pra sair do Paraná e ir até Salvador dois dias depois. Muitas atletas dão aulas de surf e trabalham com outras coisas para se manter. Mas elas não focam 100% no surf e isso reflete no desempenho nas competições. E elas ainda pagam filiação anual para a Confederação”, explicou a jornalista.
O cenário parece ter mudado um pouco, mas ainda está longe do ideal. “O que a Yanca e a Julia Santos estão passando hoje é exatamente o que eu passei há 15 anos e o que a Tita Tavares passou há dois anos. E quando vai mudar? Essa desculpa de que ‘ah, eu não conheço as surfistas, elas não são as melhores’ não vai colar, porque elas são as melhores! Basta abrir o site da Confederação Brasileira de Surf, ver quem são as últimas seis campeãs brasileiras e você vai se deparar com mulheres negras e nordestinas. São fatos, não é algo que estou inventando”, completou Érica.
Ainda assim, a ex-surfista valoriza a importância do Movimento Surfistas Negras e começa a enxergar e celebrar os pequenos avanços. “É muito curioso porque quando a gente começou o movimento, a maioria das últimas cinco campeãs (Yanca Costa, Julia Santos, Monik Santos, Silvana Lima e Tita Tavares) estava sem patrocínio e, hoje, a gente já vê Larissa dos Santos, Yanca Costa com patrocínio de bico. Então, tivemos uma evolução, mas estamos na luta oficialmente com Surfistas Negras há cinco anos e o intuito foi esse: ‘Puxar a orelha da galera, dar essa visibilidade, jogar luz ao tema e nessas mulheres que são as melhores do Brasil'”.
Pensando no futuro
São as referências e o fomento na base que vão inspirar e impulsionar a nova geração de atletas que já estão despontando com forma. Uma delas é a Maria Eduarda, atleta de 15 anos que colocou o nome na galeria de campeãs das categorias de base do esporte nacional ao ficar com o título da categoria sub-16 do Circuito Brasileiro de Surf, há um mês.
“Acho importantíssimo a gente ter referências e o Movimento Surfistas Negras faz esse trabalho muito bem, de colocar essas mulheres em evidência para que elas sirvam de exemplo para a nova geração. E isso tem acontecido: no circuito de base, a gente tem a Maria Eduarda, de 15 anos, que foi campeã da categoria Sub-16 e é um jovem talento, surfa muito e é uma querida! Acabou de fechar patrocínio de bico com uma grande marca que está olhando para essa causa, pegando uma atleta jovem para formá-la para o universo do surf profissional. Então, o trabalho está funcionando”, observou Érica.
Como nos explicou Brigitte, começar cedo permite que as surfistas desenvolvam habilidades fundamentais e a paixão pelo esporte. O caminho a percorrer geralmente passa pelas escolinhas de surfe, campeonatos das associações locais, das federações até chegar ao Circuito Brasileiro de Base. A partir daí muitas delas já começam a competir no circuito Taça Brasil – classificador para o sonhado Dream Tour – e começam a participar de eventos regionais do circuito mundial.
Em paralelo a isso, a CBSurf lançou o Programa Talento Feminino. “Neste programa, a equipe técnica do núcleo feminino vai até as cidades ao longo da costa brasileira para mapear e estimar o potencial esportivo das jovens surfistas. Durante alguns dias, elas participam de treinamentos técnico e tático com simulação de baterias no formato individual e Tag Team, além de assistirem a palestras. O projeto tem sido um sucesso, já passamos por Fortaleza, Balneário Camboriú, Rio de Janeiro e estaremos no Guarujá no fim do ano”, contou Brigitte.
“A volta do circuito foi ótima porque agora a gente tem pra onde mirar: ‘Quero participar daquele Circuito, qual é o caminho?’ Na época do hiato em que ficamos cinco anos sem nenhum evento feminino, não tinha pra onde mirar. Vai virar profissional e vai ser surfista pra quê, se não tem campeonato? Agora a realidade é outra, a gente está mais otimista com isso!”, valorizou Érica.
Para Brigitte, os avanços também estão acontecendo. “Estamos todos na Confederação trabalhando com dedicação e entusiasmo. O circuito Dream Tour que foi lançado em 2023, sem dúvidas, impulsionou todas as engrenagens do surfe nacional com uma premiação recorde e igualitária. Tornou-se objeto de desejo de todas as surfistas do Brasil. A prova disso é que estamos batendo recordes de inscrições na Taça Brasil, circuito classificatório para a elite do tour dos sonhos”, revelou.
“Além disso, todas as modalidades, o longboard, o sup surf, sup race e o parasurf estão tendo maiores oportunidades. Paralelamente a isso, a quantidade de mulheres interessadas em fazer parte em outras áreas de atuações dentro da confederação também está crescendo. Em 2024, o desejo será despertar o senso de pertencimento das mulheres no surfe em todas as suas vertentes. Com a equidade instaurada, o ambiente mais igualitário irá trazer mais oportunidades a todas”, afirmou a vice-presidente da CBSurf.