Formiga: ‘Fizemos o alicerce, agora elas constroem a pilastra para sustentar’

Se no final de 2016 Formiga se despediu da seleção brasileira de futebol de maneira tímida, sem grandes homenagens, a história é diferente agora. A meio-campista já havia afirmado que os Jogos Olímpicos de Tóquio marcariam o seu adeus à equipe brasileira, mas ela foi convocada pela técnica Pia Sundhage para atuar no Torneio Internacional de Futebol Feminino, em Manaus, e ter a tão merecida despedida e homenagens.

Em entrevista às Dibradoras, durante sua última convocação, Formiga declarou que na época do seu primeiro adeus, havia um certo cansaço em continuar brigando por mais apoio ao futebol das mulheres. “Foram dois motivos que me fizeram deixar a seleção após os Jogos Olímpicos de 2016. O primeiro é que já haviam novas peças para recompor o meio campo do time e o segundo motivo é que eu estava sentindo um pouco de cansaço de estar sempre lutando e pedindo por respeito, não só para a Confederação, mas também para as Federações e para as pessoas que pudessem apoiar o futebol feminino”, afirmou.

“É uma luta nossa que vem de anos, que começou com as pioneiras e eu vivia um momento de ‘será que eu vou ficar brigando e me desgastando tanto com as pessoas e não vou ver nenhum reconhecimento?’ O público começava a reconhecer, mas de onde a gente esperava não vinha (o reconhecimento)”, concluiu a camisa 8.

Foto: Arquivo Pessoal

E depois de ouvir sua esposa Erica, algumas jogadoras e o apelo do técnico Vadão, ela retornou ao plantel verde e amarelo. “Acredito que surtiu efeito (voltar para a seleção) de uma certa forma. Mas agora adianto a vocês que é uma despedida mesmo, já era, ainda mais agora que tem mais peças ainda para jogar, obrigada Senhor, agora vai!”, declarou aos risos.

Despedida em Manaus

(Foto: Thaís Magalhães / CBF)

Foi no dia 9 de novembro que a CBF convocou as atletas para o Torneio Internacional, na Arena da Amazônia, diante das equipes da Índia, Venezuela e Chile. Formiga foi uma das selecionadas e, nesta quinta-feira, diante da Índia, dará seu adeus à seleção.

“Já vinha rolando umas conversinhas (sobre a despedida), uns burburinhos, e eu só ligada. E achei maravilhoso, quem não fica feliz de ter seu trabalho reconhecido e ter essa oportunidade de ter uma despedida, ainda mais se tratando de nós, mulheres que lutamos tanto, sem contar tantas outras que passaram por aqui e não tiveram essa oportunidade”, afirmou.

Após 26 anos servindo o Brasil, Formiga será a primeira atleta a receber uma homenagem justa pelos seus feitos, organizada pela CBF. “Fico feliz demais em ser a primeira a ter esse reconhecimento, mas não quero ser a última. Quero que todas que construíram história na seleção possam ter esse reconhecimento também. A estrada é longa, não é fácil, tem que fazer por onde e se dedicar à modalidade porque o trabalho não pára e não pode ser em vão.”

“Formiga é o futebol feminino”, afirmou Pia Sundhage em entrevista coletiva na véspera do jogo contra Índia, e ela tem razão. A camisa 8 do Brasil é o elo entre o passado, presente e futuro da seleção. Do início dos anos 90 pra cá – quando aconteceu  a 1ª Copa do Mundo e a 1ª edição de Jogos Olímpicos – muita coisa evoluiu, mas ainda é preciso mais. Para a meio-campista, a sua despedida é também uma homenagem às mulheres que batalharam em campo antes e ao lado dela.

(Foto: Thaís Magalhães / CBF)

“Quero deixar esse recado às pioneiras, que tenham certeza que essa homenagem também se estende a elas, pelo tanto que fizeram ao futebol feminino e ainda continuam fazendo. Passei tantos momentos difíceis com elas e hoje vivo momentos positivos e felizes com a nova geração, passando os valores que aprendi com as mais velhas para as mais novas. É importante que as mais jovens continuem construindo esse pilar para que todas possam ter oportunidade de usufruir de algo que muitas não usufruíram. Quem dera se todas que passaram pela seleção tivessem vivido um pouquinho da estrutura que tem hoje o futebol feminino. Fizemos somente o alicerce e agora é momento delas construírem a pilastra pra sustentar bem a laje da modalidade”, frisou.

Barreiras e preconceitos quebrados

Também foi essa geração que carregou muito preconceito e machismo pelo simples fato de quererem jogar futebol. Entre as pioneiras, a falta de apoio por parte da família foi enredo parecido com quase todas. Formiga, por exemplo, apanhava dos irmãos cada vez que voltava da pelada na rua. Sissi, a primeira grande craque do Brasil, era julgada por raspar seu cabelo, deixando de lado sua feminilidade, eles diziam.

Formiga jogou com quase todas as gerações da seleção brasileira e jogou com Sissi na década de 1990 (Foto: Arquivo Pessoal)

E foram anos difíceis, de proibição por lei e de preconceito, que fizeram com que muitas delas deixassem de ser quem realmente são. Formiga viveu essa época e reconhece que foi preciso aguardar o momento certo para, finalmente, se libertar.

“Nos anos 90, era bem difícil das pessoas aceitarem a nossa orientação sexual, sempre fomos taxadas, não só por jogar futebol, mas também por nossas escolhas. Vejo que tudo acontece pelo momento, hoje futebol feminino tem vez e, de certa forma, temos uma proteção de uma família que nos aceita, da modalidade que é aceita no país, querendo ou não de algumas pessoas e o nosso posicionamento correto que não agride ninguém. Estamos apenas nos mostrando para o mundo e dizendo quem somos”, reforçou a atleta.

Casada com Érica Jesus há pouco mais de 3 anos, Formiga afirmou que hoje vive livre e feliz ao lado de sua companheira. “É muito válido se libertar e mostramos para o mundo que somos jogadoras de futebol, independente de cor, raça, cabelo, estilo… Esse momento já poderia ter sido combatido há muitos anos, mas com respeito respeito à família brasileira, chegou o momento de realmente mostrar quem somos e sair do armário. Até porque não estamos agredindo ninguém, estou sendo feliz com a minha companheira e fazendo ela feliz, que mal tem? Da minha parte foi muito feliz poder sair do armário, hoje eu vivo livre, sem medo. Antes mesmo de eu me libertar as pessoas já me criticavam, e eu pensei: “por que vou continuar me escondendo? eu vou mostrar pra todo mundo!”. E acredito que depois que a pessoa assume, ela fica mais leve, vive mais a vida com alegria porque quando você anda com medo de ser descoberta de algo, você não consegue andar flutuando, de certa forma. O amor é pra todo mundo!”

A Formiga do futuro

A jogadora tem contrato com ao São Paulo até o final de 2022 e, nos próximos dias, decidirá a final do Campeonato Paulista diante do Corinthians. E, quando pensa em pós-carreira, é claro que Formiga deseja continuar contribuindo com o desenvolvimento da modalidade.

(Foto: São Paulo FC)

“Venho refletindo desde o meu retorno ao Brasil, e vi que precisamos  de estruturas nos clubes, precisamos ter esse caminho livre pra chegar num presidente de um clube e discutir sobre melhorias do futebol feminino. Penso em fazer os cursos de gestão e de treinadoras para saber um pouco de cada coisa e escolher o meu caminho. Na verdade, eu quero ter livre acesso. Para chegar no responsável de um clube e colocar na mesa o que o clube dele precisa. Se eu estiver só nas três linhas, demarcadas, só como treinadora, bater e voltar, acredito que não tenha êxito tão grande se tiver oportunidade de estar todo tempo com um presidente de clube, mostrando a dificuldade do futebol feminino e fazer acontecer”.

Antes de se despedir, Formiga pediu para que a CBF também conceda capacitação para as ex-jogadoras, para que elas possam colaborar com o desenvolvimento da modalidade e atuar como profissionais em uma área que também entendem.

“São tantos pedidos, mas eu diria para eles (dirigentes) serem um pouco flexíveis e que pudessem pensar um pouquinho nas pioneiras e dar um curso de capacitação para as meninas, porque elas têm muito o que agregar ao futebol feminino. A história delas é linda e elas têm uma experiência vasta para ajudar as meninas que estão chegando hoje a valorizar o que se tem. Se pudessem dar oportunidade para que essas mulheres trabalhem no futebol feminino, eu ficaria muito feliz.

O dia do adeus

Na véspera do jogo, Formiga foi recepcionada com fogos e homenagens no Centro de Treinamento do 3B, clube amazonense de futebol feminino. Com a fechada decorada com suas fotos, ela treinou pela última vez ao lado das companheiras e recebeu muito carinho por parte do staff da seleção brasileira.

Em entrevista pós-treino, a volante revelou viver um misto de alegria e tristeza, mas fez questão de explicar que não se trata de amargura, mas sim de saudades de seguir fazendo parte do time brasileiro. “Não é uma tristeza de amargura, mas sim de ‘cara, não vou estar mais ali, brigando junto com as meninas para conquistar algo mais positivo ainda’, sabe? Quando falo de tristeza é de ‘poxa, queria continuar, mas não jogando, queria estar ali no meio, todo santo dia, pra estar ajudando’. Sei que elas estão em boas mãos, fico feliz por tudo que está acontecendo na vida delas, com as oportunidades que estão tendo hoje. É uma alegria saber que elas estão tendo um suporte bom, uma qualidade muito boa de tudo”

Taila (sobrinha), Dona Celeste (mãe), Formiga, Erica (esposa), Nina (assessora) e Edinalva (amiga da família). Foto: Dibradoras

Na tarde desta quinta-feira, os familiares de Formiga chegaram em solo amazonense para acompanhar de perto a despedida da atleta mais longeva da história do futebol brasileiro – entre homens e mulheres. Dona Celeste, de 71 anos, vive momentos inéditos, desde a viagem de avião de Salvador até Manaus até o jogo desta noite, onde verá sua filha atuando em campo pela 1ª vez.

“Vai passando as horas, coração vai apertando, vai dando uma coisa. A tortura começou hoje cedo, com as homenagens que fizeram aqui (em Manaus). Eu tô no ritmo do choro, ainda mais com a presença da minha mãe. Vocês não têm noção, era a coisa que mais estava me emocionando e me deixando empolgadona, de tirar meu sono. É a primeira vez que minha mãe vai pisar num estádio para me ver jogar. Mesmo que eu não fosse jogar, mas que ela estivesse ali, prestigiando esse momento, seria o maior dos prêmios que eu já tive no futebol”, declarou.

Na recepção do hotel em que está concentrada, Formiga parecia uma criança aguardando a mãe chegar em casa. E quando Dona Celeste chegou, ela não se conteve de alegria. “O sentimento hoje é de alegria, porque ela correu atrás do que queria e conseguiu”, afirmou a mãe, de poucas palavras, assim como a filha.

Conseguir é pouco! A luta de Formiga por reconhecimento dentro de campo e por respeito fora dele foi a missão cumprida por uma mulher que veio ao mundo para contrariar a lógica do esporte. 43 anos de vida, 26 de seleção e um legado eterno. Talvez seja impossível mensurar o tamanho que Formiga representa para o futebol brasileiro. De fato, Miraíldes Maciel Mota é interminável!

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