Aos 27 anos, Bia Zaneratto vai disputar pela segunda vez uma Olimpíada pela seleção brasileira. Ela foi artilheira do Brasil nos Jogos Olímpicos de 2016 com três gols, mas hoje se vê uma jogadora muito mais completa e madura para assumir até mesmo um protagonismo maior no time comandado pela técnica Pia Sundhage.
Uma das artilheiras da equipe desde que a sueca chegou, e também uma das principais “garçonetes”. Os números mostram que Bia Zaneratto vai muito além de ser uma exímia finalizadora. Inteligente, versátil, habilidosa, ela cria, gera espaço e dá passes para servir suas companheiras como ninguém.
Se quando surgiu no futebol feminino ainda em Araraquara, a cidade de sua infância, Bia se via mais como uma meia armadora, a camisa 10 clássica como se diz por aí, hoje ela tem dificuldade para definir sua posição. Uma 10 que joga de 9? Uma 9 que joga de 10? Tudo junto e misturado. A atacante conta que, mais do que ocupar uma posição, ela cumpre algumas funções dentro de campo e credita essa evolução ao trabalho do técnico Ricardo Belli no Palmeiras e de Pia Sundhage na seleção.
“O Ricardo fala muito dessa questão de função, e não posição, então a gente tem a liberdade de vir buscar a bola e da outra ocupar o espaço. Acho que consegui trazer um pouco disso para a seleção. No jogo, a Pia às vezes tem me usado também jogando aberta, uma meia aberta, um diferencial pra mim, porque eu tinha jogado de ponta, mas não assim”, contou Bia.
“Ela acredita também no meu potencial de construção de jogo, não apenas como finalizadora. A melhor forma que eu puder ajudar, na posição que a Pia achar que eu puder jogar, eu tô pronta para dar o meu melhor.”
Nesta entrevista exclusiva com as Dibradoras, Bia também falou sobre seu momento no Palmeiras (e seu futuro no clube), a evolução do futebol feminino no Brasil e suas expectativas para Tóquio.
Leia a entrevista completa com Bia Zaneratto:
Dibradoras: Em Tóquio, você vai para sua segunda Olimpíada. Como vê sua evolução de 2016 para cá?
Bia Zaneratto: Acho que houve uma grande evolução desde a Rio-2016. Meu treinador na Coreia me fez uma centroavante, porque eu não me via dessa forma, eu achava que eu era uma meia de construção mesmo. Mas durante os anos lá eu fui percebendo que eu também poderia ser uma centroavante. Não uma centroavante fixa dentro da área, mas uma centroavante mais móvel, que é como hoje também o Ricardo Belli (técnico do Palmeiras) tem me usado também. Eu começo o jogo como uma 9, centroavante, porém eu tenho essa liberdade para vir buscar, para fazer essa construção do jogo. Tanto que os números mesmo mostram isso, minha participação em gols e assistências. O Ricardo também fala muito dessa questão de função, e não posição, então a gente tem a liberdade de vir buscar a bola e da outra ocupar o espaço. Acho que consegui trazer um pouco disso para a seleção. No jogo, a Pia às vezes tem me usado também jogando aberta, uma meia aberta, um diferencial pra mim porque eu tinha jogado de ponta, mas não assim, ela acredita também no meu potencial de construção de jogo, não apenas como finalizadora. Acho que tem englobado um todo, a oportunidade que a Pia está me dando aqui, o bom momento que eu vivo no Palmeiras…a melhor forma que eu puder ajudar, na posição que a Pia achar que eu puder jogar, eu to pronta para dar o meu melhor.
Dibradoras: A Pia fala muito que quer ver uma rotação das quatro atacantes de frente. Como vocês têm ensaiado esses movimentos para encaixar o ataque para a Olimpíada?
Bia Zaneratto: A gente não teve muitos jogos e, nesta última fase de treinamentos, a Debinha e a Marta chegaram depois. Então ela está testando bastante, tem rodado todo mundo, todo mundo está tendo oportunidade, acho que com a Pia ninguém tem sua posição ali garantida, todo mundo está correndo atrás para estar entre as 11. Ela cobra bastante da gente as corridas para a área. Mas ela também dá liberdade, se eu estiver mais lá na frente e quiser construir também, eu posso, mas tem que ter alguém ocupando o espaço. É uma dinâmica. É ocupar o espaço e não cada uma ficar ali parada, porque aí fica mais fácil para a marcação. Então acredito que essa mobilidade e essa liberdade que ela nos dá, as quatro ficam muito à vontade pra fazer seu melhor.
Ela cobra muito organização, ela não quer ver bagunça. É tudo muito pensado pra não fazer bagunça porque se não a mulher fica doida com nóis (risos). Mas dentro de movimentações, de criação, ela quer que a gente tenha liberdade de criação do Brasil ali na frente, de fazer acontecer. É a organização sueca com o improviso brasileiro, esse é o desafio.
Dibradoras: Como tem sido o convívio com a Pia na seleção e como tem sido o trabalho dela com vocês nesses dois anos?
Bia Zaneratto: Acho que, nesse tempo todo, eu estou desde o início dela aqui, eu não vi nenhum dia essa mulher de cara feia. Ela transmite muita energia boa também, em treinamento. Ela também adora baguncinha fora do campo, então ela ouve uma música e já chega para dançar daquele jeitinho dela, ela traz essa energia muito boa pra gente. E de trabalho, é encantador ver o quanto ela se dedica, e o quanto ela consegue extrair o melhor de nós. Cada vez que ela chega ali perto do campo, ela realmente se entrega para aquele momento e faz com que a gente também dê nosso melhor. Essa combinação veio para agregar muito para o futebol brasileiro, é nítido o quanto a gente evoluiu taticamente, fisicamente, na questão da organização, então, nem se fala. Toda vez que a gente entra num jogo ou num treinamento, ela sempre consegue tirar um diferencial nosso.
Dibradoras: Você passou sete anos jogando na Coreia e aí voltou para o futebol brasileiro no ano passado. Fala um pouco sobre esse momento do futebol feminino no Brasil em comparação com como era quando você saiu.
Bia Zaneratto: Na época, quando eu saí, lá em 2013, eu jogava no Vitória de Santo Antão, mas era mesmo aquela coisa do amor de estar jogando. A gente passava por muitas dificuldades na época. Passei pelo Santos antes, que tinha uma baita estrutura, mas aí o projeto acabou e fui para o Vitória de Santo Antão.
Lá, era gostoso de jogar porque a torcida acompanhava muito, mas a gente passava por necessidades que, se meus pais soubessem, eles não me deixariam ficar lá. Muita coisa eu escondi dos meus pais, porque se eles soubessem, eles não me deixariam ficar. Mas eu escondi porque eu queria jogar futebol e tive que passar por isso para ali na frente poder conquistar algo maior.
E aí na sequência eu tive a oportunidade de ir para a Coreia. Naquele momento, era algo mirabolante, se tratando de futebol feminino, principalmente financeiramente. E eu sempre vi o futebol como uma oportunidade de poder ajudar minha família, então foi quando tomei a iniciativa de ir, de encarar, fui com a Thais, que joga hoje no Santos. Aí você percebe que você consegue viver uma realidade diferente, uma estrutura mil vezes melhor do que a que a gente tinha aqui, a gente nem acreditava tudo o que tinha lá. A gente tinha um monte de material à sua disposição, coisa que aqui é sempre contadinho, é triste falar sobre isso, e a precariedade que a gente tinha até fora do campo.
Aí comecei a jogar lá, um, dois anos, três anos, e todo mundo: nossa, como você consegue ficar lá do outro lado do mundo, na Coreia? É muito difícil porque eu sou muito família, foi difícil a adaptação por conta deles. Mas em questão de campo, de trabalho, de estrutura, era mil vezes melhor lá. Eu falava: gente vocês não sabem o que eu tava vivendo lá. Consegui ajudar minha família de forma incrível.
Retornei para o Brasil, na verdade era para eu ir direto para a China, mas aí aconteceu a questão da pandemia e surgiu a oportunidade de jogar aqui no Brasil por empréstimo. Em 2020, ainda era o início de um projeto, o Palmeiras tinha acabado de conseguir o acesso, e o Alberto (Simão, diretor de futebol feminino do Palmeiras) é um cara apaixonado por futebol feminino, que se dedica muito para que a modalidade cresça cada vez mais, eu abracei a ideia, a causa do Palmeiras para o futebol feminino. Mas eu percebi naquele pouco tempo que ainda faltava muita coisa na questão da estrutura. A gente tinha evoluído, daquilo que eu tinha vivido antes, mas ainda lá fora estava muito na frente. A gente vê que para essa temporada, tem um projeto mais estruturado, mas ainda assim, precisa evoluir principalmente na questão de estrutura para as atletas. Acredito que isso é gradativo.
Torço para que isso aconteça, não ficou definida ainda minha situação, mas tenho muito carinho pela torcida, espero que evolua a modalidade no geral e que de fato seja concretizada no Brasil com a estrutura que merece.
Em 2013, eu vivia do amor pelo esporte, de acreditar que em algum momento eu conseguiria chegar no topo, e a gente também precisa arriscar, sair para o outro lado do mundo para conseguir algo melhor. E eu não quero que a gente sempre tenha que passar por isso, quero que as outras gerações possam aqui no Brasil ajudar a família, conquistar o que merece sem ter que sair do Brasil.
Muitas meninas não têm nem oportunidade, não têm com quem jogar. Como elas vão chegar no topo se elas não têm nem como começar? Eu espero que as próximas gerações possam ter essa estrutura, não viver só do amor ao futebol, mas se sustentar, viver do futebol.
Dibradoras: O que você acha que ainda falta de estrutura nos clubes do futebol brasileiro?
Bia Zaneratto: Acho que essa questão de material acaba sendo básica, mas até ano passado faltava, falando do Palmeiras, neste ano melhorou. A questão de fisioterapia, acho que tem que ter uma fisioterapia preparada para receber todos os atletas e para todas as necessidades. O GPS (para monitorar as atletas durante os jogos) é algo que chegou agora também. São coisas que estão acontecendo agora. Nós, aqui da seleção, como nem todos os clubes tinham GPS, nós compramos o nosso GPS para estarmos monitorando, porque era algo que a Pia também queria de nós. Essas coisas estão caminhando, engatinhando.
Por isso que a gente fala, eu vejo uma evolução, mas falta. Estrutura de fisioterapia, dar tranquilidade para o atleta de que ele vai se recuperar da melhor forma. Questão de material é básica, eu briguei no Palmeiras ano passado, briguei esse ano, a torcida começou a cobrar, de ter o material à disposição. Isso não é algo que deveria ser cobrado, tinha que ter lá.
Dibradoras: E sobre a situação no Palmeiras?
Bia Zaneratto: Deixei essa questão para o meu empresário. Não quero pensar nisso agora, tem algo muito maior para se pensar e focar, que é a Olimpíada. Ele está resolvendo isso. O empréstimo acabou. Existe a vontade do Palmeiras em fazer um novo contrato, mas aí existe uma rescisão, então envolve outras coisas. Mais tardar fim da Olimpíada eu vou saber para onde eu vou.
Dibradoras: Você passou por uma Olimpíada em casa, depois uma Copa do Mundo em que vocês tiveram uma sequência muito ruim de resultados antes de estrear. Como você vê esse momento da seleção?
Bia Zaneratto: A Rio-2016 foi o momento auge, a família, a torcida, isso ajuda demais dentro de campo, é como se empurrasse a gente. Eu via naquele momento o melhor cenário para a gente conquistar uma medalha, e aí de repente as coisas não aconteceram. Aí a sequência para a Copa não foi boa, mas chegamos lá muito unidas, todo mundo se entregou e a gente fez uma boa competição. Hoje, a gente vê um cenário atípico pela pandemia, a coisa de vai ter Olimpíada, não vai, nossa preparação não aconteceu da forma como queríamos, a Pia queria muito mais jogos do que a gente teve. Mas esse tempo de treinamento tem sido muito intenso, ela tem conseguido extrair nosso melhor. Estamos tentando um melhor entrosamento nesses dias também, estamos muito focadas, estamos trabalhando duro para estrear bem.
A cada treinamento, sinto que ela (Pia) entrega o melhor dela e nos cobra nosso melhor também. E fora das quatro linhas nas reuniões, ela demonstra muito essa confiança no grupo todo, no nosso potencial. Ela trouxe a filosofia dela para agregar com a filosofia do Brasil. Ela acredita nessa mistura para ser o diferencial. Ela fala muito da nossa qualidade técnica, do nosso improviso, mas com a organização sueca. Se a gente entender o que ela tem nos passado e executar da melhor forma, é a fórmula para a gente conseguir conquistar o que ela já conquistou duas vezes (ouro olímpico).
Dibradoras: Pra finalizar, você já se vê no seu auge como atleta?
Bia Zaneratto: Acho que a gente sempre tem que querer algo a mais, evoluir. Me cobro muito quando as coisas não dão certo. Não me vejo no meu melhor momento, não, acho que eu sempre posso dar um pouquinho a mais e vou estar sempre buscando isso.