Por que a condenação de Daniel Alves por estupro é um marco?

Daniel Alves Reprodução Instagram

Foto: Reprodução Instagram

Nesta quinta-feira (22), o tribunal de Barcelona, na Espanha, decidiu condenar Daniel Alves por agressão sexual. O jogador, que estava detido preventivamente desde janeiro de 2023, recebeu a sentença de 4 anos e 6 meses de prisão. Ele também terá de pagar uma indenização à vítima e pode recorrer da decisão no Tribunal Superior de Justiça da Catalunha (TSJC) e no Supremo Tribunal da Espanha. Enquanto isso, Daniel seguirá preso.

A indenização paga pelo jogador à vítima (150 mil euros, cerca de R$ 804 mil) amenizou a pena – a promotoria pedia 9 anos de prisão, a decisão foi por metade disso. A juíza Isabel Delgado, da 21ª Seção de Audiência de Barcelona, foi quem ordenou que Daniel Alves, após cumprir a pena, tenha liberdade supervisionada por cinco anos e fique afastado da vítima por nove.

A decisão do tribunal veio após pouco mais de um ano do crime denunciado em Barcelona, em dezembro de 2022. Segundo o relato da vítima, Daniel Alves a estuprou em um banheiro da boate Sutton no dia 30 de dezembro daquele ano. 

Em 20 de janeiro de 2023, Daniel Alves foi chamado para depor pela primeira vez sobre o caso e acabou detido preventivamente – as autoridades espanholas temiam que ele saísse do país e não cumprisse uma eventual pena (como aconteceu com o também jogador brasileiro Robinho, condenado em última instância por estupro na Itália, mas que nunca chegou a ser preso por estar no Brasil quando recebeu a sentença, já que a lei brasileira não permite que brasileiros sejam extraditados).

Um ano depois, o julgamento de Daniel acontece e, menos de um mês após esse julgamento, é anunciada a sentença. Ou seja, do dia em que a vítima denunciou o jogador até o dia em que ele recebeu a decisão da Justiça, passaram-se apenas 13 meses. Claro que o fato de a lei espanhola permitir amenização de pena por conta de pagamento de indenização é questionável, mas há o caso foi resolvido com celeridade no tribunal espanhol e deixa uma série de lições sobre como as instituições devem agir em crimes de violência contra a mulher.

Vale destacar que Daniel é o segundo jogador brasileiro com histórico de destaque na Seleção Brasileira de Futebol e em Copas do Mundo a ser condenado por estupro – o primeiro foi Robinho, citado acima -, que nunca chegou a ser preso por já estar no Brasil quando a condenação aconteceu. Já Daniel Alves é o primeiro jogador a ser preso e permanecerá assim até que os recursos de sua defesa sejam julgados.

Momento-chave

Um dos grandes diferenciais desse caso apontado pelos especialistas espanhóis foi o fato de o crime ter sido denunciado no dia em que aconteceu e com a possibilidade de se colher uma série de evidências importantes para a apuração dele.

Quando a vítima deixa o banheiro da boate Sutton, ela está chorando bastante, aparentando estar muito abalada. O comportamento diferente dela foi notado por funcionários da boate, que acionaram o protocolo para casos de agressão sexual – esse protocolo (de mais de 50 páginas) de segurança contra violências sexuais em ambientes de prazer em vigência na Catalunha tem como foco uma atenção prioritária à vítima da agressão. 

O funcionário da boate levou a suposta vítima a um local reservado, onde ela poderia se acalmar distante dos olhares curiosos do público da boate. Ali, ela relatou o que aconteceu e foi orientada por ele sobre o que fazer diante daquele fato. 

A polícia da Catalunha, então, foi acionada, atendeu a vítima e a encaminhou para o serviço de emergência médica, onde poderia fazer os exames que seriam essenciais para a coleta de evidências a respeito do crime relatado. 

Em todas essas instituições, a palavra da vítima foi ouvida e respeitada – e não descredibilizada, como muitas vezes acontece em casos assim no Brasil. Não houve questionamentos ao relato dela, como: “Mas você tem certeza que isso aconteceu? Mas será que não está exagerando? Que roupa você estava vestindo? Por que entrou no banheiro com ele?” Ou outras indagações que colocariam em dúvida seu relato. 

No encaminhamento ao serviço de emergência, a vítima foi estimulada a fazer os exames que funcionariam como provas da sua denúncia. E, de novo, foi acolhida. 

Começou pelo olhar atento dos funcionários da boate que acionaram o protocolo de segurança e terminou em um atendimento humanizado e acolhedor para uma mulher vítima de agressão sexual. Só por isso foi possível compor o caso de maneira minuciosa, com evidências que ajudaram a Justiça Espanhola a avaliar que havia prova material suficiente para manter Daniel Alves preso preventivamente durante a investigação – algo que impediu, por exemplo, que o caso terminasse sem que o suposto agressor cumprisse uma eventual pena a qual fosse condenado.

O processo

A Justiça Espanhola é bastante rígida também na proteção à identidade de vítimas de agressão sexual. O caso envolvendo o jogador Daniel Alves correu sob segredo de justiça e, quando as investigações começaram, o 15º Tribunal de Instrução de Barcelona determinou que nenhuma imagem, nome ou identidade da suposta vítima fosse divulgada ou mencionada em público ao longo do processo.

Em 2 de janeiro deste ano, Maria Lúcia Alves, mãe do jogador, publicou nas redes sociais um vídeo que supostamente seria da autora da denúncia se divertindo em bares e festas, seguido por reproduções de reportagens noticiando que ela apresentava sintomas de depressão, como se fossem comportamentos incompatíveis.

A exposição da identidade da jovem pela mãe de Daniel Alves gerou repúdio na opinião pública e na mídia espanhola, complicando ainda mais a possibilidade de um acordo, que era a estratégia da defesa do jogador para diminuir a possível pena de 12 anos de prisão. Em nota, a advogada que atende a autora da denúncia afirmou que iria processar a mãe do brasileiro.

O julgamento

A vítima em nenhum momento precisou ter contato visual com Daniel Alves durante o julgamento e foi cercada de cuidados para ter a identidade preservada. Acompanhada de psicólogos, ela foi ouvida por pouco mais de uma hora na mesma sala em que o jogador estava no tribunal, mas os dois ficaram separados por um biombo para evitar o contato visual. O depoimento dela foi reproduzido para os presentes no tribunal com imagem e voz distorcidas.

O nome da denunciante não pôde ser pronunciado em nenhum momento do julgamento e os presentes no tribunal também foram expressamente proibidos de divulgar ou publicar informações relativas à identidade dela ou mesmo de capturar imagens de parentes que prestaram depoimento.

O tribunal foi marcado pela presença feminina majoritária: 22 das 36 pessoas eram mulheres. Entre elas, a juíza Isabel Delgado Pérez teve papel de destaque por ter presidido o julgamento. Ela foi acompanhada pelos magistrados Luís Belestá Segura e Pablo Diez Noval.

Mudança na lei espanhola

Em maio de 2022, a Justiça da Espanha mudou o entendimento sobre a lei que abrange violência sexual no país. Antes, uma agressão sexual ou estupro só poderia ser configurada dessa forma em caso de intimidação ou violência física e a lei distinguia abuso sexual de agressão sexual. Já a Lei da Garantia Integral da Liberdade Sexual – que ficou conhecida como “Só o sim é sim” – passou a entender que, para ser considerado crime, basta não haver consentimento expresso para o sexo. Assim, qualquer interação sexual em que o consentimento da outra pessoa não é demonstrado de forma livre, voluntária e clara passou a ser considerada uma agressão.

O julgamento do jogador Daniel Alves é o primeiro com repercussão midiática internacional desde que a nova lei foi instaurada na Espanha, colocando o país em local de destaque na luta contra a violência sexual. A lei considerada vanguardista foi acompanhada de mudanças no procedimento legal, como na maneira de interrogar e acolher a vítima, além de condutas para proteger a identidade das mulheres.

Polícia especializada em crimes de agressão sexual

A Unidade Central de Agressões Sexuais (UCAS) da Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, foi criada em março de 2020 como uma resposta ao aumento de 50% dos casos de crimes sexuais na Catalunha entre 2015 e 2019. Trata-se de um grupo especializado nesse tipo de crime, que passa por amplo treinamento com uma visão centrada na vítima e que é acostumado a casos de grande repercussão, como o de Daniel Alves. Foi essa unidade da polícia catalã a responsável pela investigação que levou à prisão preventiva do jogador brasileiro.

A UCAS é chefiada por uma mulher e é composta por 70% de mulheres (22 dos 36 agentes). Foram algumas dessas agentes que atenderam a vítima no caso do Daniel Alves assim que a polícia foi acionada pela boate e que a direcionou depois para o hospital para fazer os primeiros exames e coletar as potenciais provas. O trabalho realizado, desde o atendimento cuidadoso à vítima até a rapidez para colher provas, foi essencial para dar andamento às investigações e ao julgamento, sendo visto pelas autoridades espanholas como um exemplo a ser seguido.

Por tudo isso, esse caso já pode ser considerado um marco no mundo todo. O fato de envolver o nome de uma celebridade mundial, um jogador de futebol conhecido internacionalmente, chama ainda mais a atenção. Segundo os relatos de quem esteve com a vítima no dia da agressão, ela repetia que não iria denunciar Daniel Alves porque “jamais acreditariam na palavra dela”.

Uma queixa que é, inclusive, recorrente entre as vítimas de violência sexual – e, considerando que o acusado seria uma pessoa famosa, a possibilidade de ser descredibilizada era ainda maior. Não por acaso, a primeira reação de Daniel Alves ao saber do caso foi dizer que “nunca tinha visto aquela mulher”, dando a entender que ela estaria “inventando” uma história.

Ainda assim, pela eficiência de todas as instituições nesse caso, a investigação aconteceu, teve a celeridade necessária, e terminou com o julgamento que todas as vítimas de violência contra a mulher mereceriam ter – evitando que elas sejam obrigadas a reviver traumas diante de seus agressores.

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