“Não tenho que ser campeã todo ano pra mostrar que sou capaz”, diz Tatiele Silveira

Em entrevista exclusiva, a primeira treinadora campeã brasileira avalia o mercado do futebol para as mulheres e conta como está sendo a experiência à frente do Colo-Colo, que acabou de ser campeão chileno

Foto: Colo-Colo/Divulgação

Treinadora do Colo-Colo feminino desde julho, Tatiele Silveira foi para o Chile com objetivo de romper fronteiras, internacionalizar a carreira e poder ver o futebol feminino por outra perspectiva. O primeiro grande desafio foi a Libertadores. De volta à competição sul-americana após um jejum de três anos, o clube vem investindo para resgatar o protagonismo que o time feminino teve quando foi campeão da América em 2012 e vice em 2011, 2015 e 2017. 

Os objetivos de Tatiele, porém, vão além: “Quando eu aceitei esse convite do Chile foi exatamente para reforçar a nossa capacidade enquanto treinadora brasileira. A Emily (Lima) abriu uma porta no cenário de seleções na América do Sul e acho que eu venho abrir essa porta no âmbito dos clubes”. 

Oportunidades que ainda oscilam muito quando se trata de mulheres no mercado para treinadoras de futebol. Até mesmo para quem tem um título de campeã brasileira no currículo, como é o caso de Tatiele Silveira com a Ferroviária em 2019, quando se tornou a primeira técnica mulher campeã do Brasileirão. No último sábado (25), ela repetiu o feito à frente do Colo-Colo ao conquistar o título do Campeonato Chileno Feminino, desta vez, como a primeira treinadora do clube a levantar a taça do torneio nacional.

Ainda assim, Tatiele almeja pelo dia em que a pressão e as cobranças por resultados tenham a mesma medida para todos treinadores, sejam homens ou mulheres. “Porque não adianta a mulher fazer um bom trabalho, a sensação é que precisa comprovar toda hora. E eu não tenho que ser campeã todo ano para mostrar que tenho uma boa capacidade”, desabafa. 

Afinal, é de se estranhar que Tatiele não tenha comandado nenhum clube da Série A1 do Brasileirão depois da saída dela do Santos, em agosto de 2022. O trabalho seguinte não foi como treinadora, mas como coordenadora do Departamento de Futebol Feminino do Vasco, que assumiu em fevereiro de 2023 e ficou por cinco meses até receber a proposta de treinar o Colo-Colo. Por sinal, sob indicação da técnica Lindsay Camila – mostra do fortalecimento feminino que vem rompendo barreiras para ocupar cada vez mais espaços.

Mesmo a mais de 3 mil quilômetros de distância do Brasil, o nome de Tatiele voltou a circular entre torcedores como uma possibilidade para substituir Arthur Elias no comando do Corinthians. Diante dos burburinhos, a treinadora comemora: “Que legal que isso está acontecendo no futebol feminino. Quando a gente imaginou que estaria falando de especulações de uma treinadora na modalidade?”. Apesar da empolgação, Tatiele esclarece se tratar apenas de especulações: “Meu foco, neste momento, está aqui no Chile”.

Veja entrevista completa com Tatiele Silveira

Foto: Colo-Colo/Divulgação

– Como está sendo a experiência de trabalhar no futebol feminino chileno?

Tatiele: Eu aceitei vir pro Chile para sair de uma zona de conforto, por querer crescer, romper fronteiras, internacionalizar a carreira e poder ver o futebol feminino por outra perspectiva, entender o que está acontecendo no futebol feminino de outros países e vivenciar outra cultura latina, conhecer o Chile, viver em um país gelado. Hoje está 9 ºC aqui, mas está bom porque não está chovendo. E tudo isso vem junto de um desafio pessoal de dominar outra língua, dar um treino em espanhol, montar o planejamento, fazer reuniões com diretoria, fazer a apresentação do trabalho.

– O convite para trabalhar no Colo-Colo teve indicação da Lindsay Camila, também técnica brasileira?

Tatiele: Acho que as pessoas pensam que quando nos enfrentamos dentro do campo, nós não falamos com ninguém, mas na verdade eu e a Lindsay somos amigas. Inicialmente, a Lindsay recebeu o convite para ser treinadora do Colo-Colo, mas ela estava na transição para assumir as categorias de base da seleção brasileira outra vez. Como naquele momento ela não tinha essa possibilidade, ela me indicou. O clube queria uma treinadora com experiência em competição internacional. O Colo-Colo tem uma história grande na Libertadores Feminina e há algum tempo já não conseguia voltar a competir. A Lindsay me ligou, explicou que aquele convite não daria para ela naquele momento e me perguntou o que eu achava. Ela abriu essa possibilidade para eu bater um papo com o pessoal do clube e foi bem legal! Então foram dois pontos importantes nessa indicação da Lindsay: o primeiro é esse fortalecimento e engajamento feminino; e o segundo se deve à nossa proximidade, por já termos um contato direto.

– Como avalia o momento que vive o futebol feminino no Chile?

Tatiele: Eu participei da evolução do futebol feminino no Brasil para, hoje, termos uma outra competição com muito mais equipes organizadas e investimentos. Agora, o Chile vem caminhando para essa evolução também. Esse processo passa, primeiro, pela federação em reorganizar um campeonato com mais datas e mais jogos e por permitir duas divisões. É essencial ter a divisão principal e a segunda divisão, porque cria-se a dinâmica do acesso e do rebaixamento, aumenta a briga de qualidade, os times têm que apresentar resultado, buscar evoluir. A evolução da modalidade no país passa, em segundo lugar, pelo nosso clube investir não só na busca por jogadoras, mas também na comissão técnica para somar cada vez mais profissionais, com psicólogo, nutricionista, um analista de desempenho específico, um analista de rivais, trouxe uma treinadora brasileira. Hoje, estou aqui trabalhando e isso mostra o interesse do clube. Tudo isso se soma a esse momento que o Colo-Colo busca de resgate do protagonismo no futebol feminino sul-americano. Eu fico feliz de participar também desse processo aqui no Chile e vejo que o crescimento técnico e tático é muito maior porque todo mundo se interessa.

Sob comando de Tatiele Silveira, Colo-Colo sagra-se campeão do Campeonato Chileno Feminino 2023 | Foto: Colo-Colo/Divulgação

– Como os profissionais brasileiros do futebol feminino são vistos no Chile?

Tatiele: Quando o Colo-Colo busca subir um degrau no futebol feminino e voltar a ser protagonista e a brigar no cenário sul-americano, a ideia é buscar profissionais nas equipes e nos trabalhos de referência. E, hoje, o Brasil é realmente uma referência nesse contexto. Acho que a escolha pelo meu trabalho juntou a experiência e tudo que eu já construí no Brasil com o desejo de o clube somar outra ideia para formar uma metodologia diferente. E, se hoje está ao alcance do Colo-Colo buscar uma treinadora brasileira, que legal que eles foram atrás disso! 

– Qual sua avaliação da campanha do Colo-Colo na Libertadores 2023? 

Tatiele: Inicialmente o objetivo era o bicampeonato do torneio nacional chileno e, depois, realmente entender qual o nível que poderíamos competir internacionalmente pensando na Libertadores. Só que eu cheguei em julho e tive praticamente dois meses e meio de preparação até a Libertadores. O que as pessoas, às vezes, não entendem é que nesse período teve data Fifa e eu “perdi” oito atletas para a seleção do Chile e outras para as seleções do Paraguai e da Venezuela. Mas encontrei um grupo muito competitivo, inteligente e com jogadoras experientes que voltaram da Europa para reforçar o elenco nesta temporada. Também foi interessante começar o trabalho com jogos no Campeonato Chileno para fazer as experiências que eu queria e as atletas receberam a metodologia muito bem e muito abertas às novas ideias, que eram diferentes do que elas estavam habituadas. Eu vim sozinha sem nenhum outro profissional comigo e tive essa boa receptividade também do meu corpo técnico. Aliamos a qualidade técnica desse grupo muito qualificado a uma disciplina e evolução tática em pouco tempo. Na Libertadores, classificamos bem e ainda brigamos nas quartas de finais. Apesar de termos caído diante de uma equipe brasileira (Internacional), sabíamos que teríamos essa dificuldade e a nossa avaliação geral foi muito positiva.

– O que você pensa sobre o formato da Libertadores Feminina?

Tatiele: Do lado do Colo-Colo, existe todo um trabalho visando a Libertadores. Na nossa participação nessa Libertadores, eu apresentei o meu coordenador para todos os coordenadores que eu conhecia, fiz esses links para eles trocarem ideias, conversar sobre as dificuldades e as possíveis soluções. Os clubes estão se organizando para levar oficialmente para a Conmebol sugestões de um novo formato para a Libertadores Feminina. Não sei se será tão breve como na competição masculina de ser jogos de ida e volta para poder jogar diante do seu torcedor, mas a sugestão que fizemos é de fazer pelo menos uma fase de grupos em uma cidade e a fase mata-mata com dois jogos, de ida e volta na cidade de cada time, podendo incluir esses confrontos no meio das competições nacionais dos países participantes.

A final do Campeonato Brasileiro quebrou recorde de público entre clubes femininos com mais de 42 mil pessoas, mas o recorde uma semana antes tinha sido do Campeonato Peruano, com mais de 41 mil pessoas. Quando eu cheguei aqui no Chile, o Colo-Colo tinha ido ao Peru jogar um amistoso internacional contra o Alianza Lima. Quando fui assistir ao jogo, vi que aproximadamente 28 mil pessoas tinham ido ao estádio! Se conseguirmos juntar clubes importantes e se fortalecer, dá para fazer acontecer. Estou tentando plantar essa sementinha aqui no Colo-Colo. O Corinthians também tem pressionado muito por essa mudança de formato. O caminho é a união dos clubes para fazer um pedido em conjunto. 

– Como é ter o seu nome levantado nos bastidores como uma possível substituta de Arthur Elias no Corinthians? 

Tatiele: Que legal que isso está acontecendo no futebol feminino! Poxa, quando a gente imaginou que estaria falando de especulações de uma treinadora no futebol feminino? Há cinco, dez anos, ninguém imaginaria que estaríamos discutindo especulações para uma treinadora. E, claro, isso é um reconhecimento do meu trabalho, de toda a experiência que tenho dentro do Brasil, nos times, do que eu construí no futebol feminino brasileiro. Mas acho que não passa de especulações. Eu estou focada aqui no meu trabalho e acho que causou um pouco mais de questionamento porque Colo-Colo e Corinthians se enfrentaram na estreia da Libertadores. Eu fiquei muito feliz que conseguimos competir e realmente fazer um bom jogo contra uma equipe que é referência e, não à toa, foi mais uma vez campeã dessa competição tão importante. Penso que o torcedor é ansioso e isso faz parte do futebol, mas a gente tem que seguir focado no trabalho e o meu foco, neste momento, está aqui no Chile. 

– Sobre o mercado de treinadoras de futebol, você recebeu proposta para trabalhar na Série A1 depois que saiu do Santos? 

Tatiele: Quando eu saí do Santos, em agosto de 2022, recebi algumas propostas, mas veio a questão da valorização. Eu também tenho que valorizar o meu trabalho. Eu sei de tudo que sou capaz de fazer. Às vezes, temos um ano em que as coisas não acontecem como gostaríamos por vários motivos, mas eu tenho muita convicção do que eu posso contribuir para uma equipe. Eu tive muitas conversas com meu agente e não encontramos, naquele momento, um clube que realmente tivéssemos esse denominador comum, então resolvi que eu preferiria esperar uma oportunidade que realmente tivesse a ver com meu trabalho, que eu enxergasse um propósito e uma conexão com a minha maneira de ver o futebol e de trabalhar. Achei melhor ficar em casa, voltei a estudar, terminei a Licença Pro de treinadora, participei de eventos em São Paulo e me dediquei a esse viés mais acadêmico. Pouco depois, surgiu um outro convite do Vasco, que não era para ser treinadora, mas em uma área que eu também gosto muito, mais ligada à gestão de pessoas.

Tatiele Silveira cursa a Licença Pro na CBF

– Ainda sobre o mercado para treinadoras no Brasil: como enxerga as oportunidades dada às mulheres por clubes brasileiros? 

Tatiele: Essas oportunidades oscilam muito, pelo momento do mercado, pelas ideias dos clubes. O que eu imagino para o futuro é nós termos, pelo menos, 50% dos times do Campeonato Brasileiro, por exemplo, sendo dirigidos por mulheres. O meu maior desejo é que os clubes abram as portas para as treinadoras, porque sempre digo que os homens têm 100% do futebol, já que podem trabalhar no feminino e no masculino. Agora, é difícil ter uma mulher trabalhando no futebol masculino em um nível competitivo. E precisa ter sempre a mesma medida de pressão e resultado, porque não adianta a mulher fazer um bom trabalho, a sensação é que precisa comprovar toda hora. Eu não tenho que ser campeã todo ano para mostrar que tenho uma boa capacidade.

Mas fico feliz pela Ferroviária manter uma abertura grande para as mulheres, pelo Atlético-MG ter efetivado a Vantressa Ferreira depois da saída da Lindsay Camila, pela Rosana Augusto ter assumido a Seleção Feminina Sub-20 e a Simone Jatobá estar nas Seleção Sub-15 e Sub-17. Espero que surjam outras oportunidades, porque eu não vejo tantas treinadoras dirigindo times no futebol brasileiro. Nós temos mais chances como assistentes técnicas. E o futebol nunca vai ser um espaço só de homens ou só de mulheres, mas é importante ser realmente valorizada pelo teu trabalho. Quando eu aceitei o convite do Chile foi para reforçar a nossa capacidade enquanto treinadora brasileira. A Emily (Lima) abriu uma porta no cenário de seleção e acho que eu venho para abrir essa porta nesse âmbito de clubes. O meu desejo é que as mulheres ocupem mais esse espaço de liderança, que sejam também responsáveis por tomar a decisão, escalar o time, ser a dona da última palavra. Que se valorize o nosso trabalho por onde quer que a gente passe e que sirva de inspiração.

Compartilhe

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *