Foto: Ruairidh Barlow
Consolidado como potência do futebol feminino da atualidade, o Barcelona foi bicampeão da Champions League no início deste mês, após chegar na terceira final consecutiva do torneio europeu. É do Barça também a melhor jogadora do mundo pelo segundo ano seguido: a espanhola Alexia Putellas. O país que abriga tanto o clube quanto a meia-atacante também vem sendo hegemônico nas categorias de base. Em 2022, a Espanha foi bicampeã mundial sub-17 e conquistou o título inédito no mundial sub-20.
No auge do futebol feminino espanhol, porém, a seleção espanhola principal vive a maior crise da modalidade. Parte do elenco exige a demissão do técnico da seleção, Jorge Vilda, sob a ameaça de não disputar a Copa do Mundo da Austrália e Nova Zelândia, a partir de 20 de julho. O treinador é contestado pelos métodos de treino, gestão do grupo e resultados ruins à frente da equipe. A exigência foi feita pela primeira vez por 15 jogadoras, por um e-mail encaminhado por cada uma delas ao presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, em setembro do ano passado. As atletas também cobravam novos rumos no Comité Nacional de Futebol Feminino, presidido por Rafael del Amo.
Apesar de ser um país apaixonado por futebol, a Espanha disputou a primeira Copa do Mundo de futebol feminino apenas em 2015, na sétima edição da competição, quando a seleção foi eliminada na fase de grupos. Esse foi o ano em que o cenário da modalidade na Espanha começou a mudar. Um dos marcos foi a denúncia das jogadoras da seleção contra o técnico Ignario Quereda por tratamento desrespeitoso durante treinos e jogos e a consequente mudança no comando técnico, com a substituição de Quereda por Jorge Vilda, que trabalhava com as seleções femininas sub-17 e sub-19.
A crise de 2015 impulsionou também mudanças na conduta do campeonato nacional. Para que a liga feminina despertasse o interesse do grande público, os organizadores de La Liga cederam a expertise em comunicação e divulgação do Campeonato Espanhol masculino, um dos mais vistos no mundo. Paralelamente, a profissionalização do futebol feminino em grandes clubes, como o Barcelona, trouxe holofotes para a liga feminina espanhola. A chegada do time catalão também acirrou rivalidades com times que já tinham força no futebol feminino, como o Atlético de Madrid. Um jogo entre os dois pela liga espanhola, em março de 2019, contou com mais de 60 mil torcedores no estádio.
A Liga Feminina continuou crescendo gradualmente em públicos, fechou acordos de televisão e passou a atrair mais patrocínios, sendo a empresa de energia renovável Iberdrola o principal deles, em 2020. No início daquele ano, as atletas da primeira divisão feminina também fecharam um acordo histórico, após terem protagonizado boicotes e greves na edição anterior do campeonato. O acordo garantia a todas as jogadoras de futebol um salário anual, com direito a licença maternidade, pagamento por lesão e férias remuneradas.
Antes mesmo dessa profissionalização ampla das jogadoras da primeira divisão, a seleção feminina da Espanha dava mostras da ascensão que começava a trilhar na modalidade, com a conquista da Copa Algarve, em 2017, e da Copa Chipre, em 2018. Mas o país caiu nas oitavas de final da Copa do Mundo de 2019, eliminado pelos EUA (que seriam campeões depois). Além do reflexo positivo da profissionalização das jogadoras da liga espanhola na seleção, o Barcelona viveu uma ascensão meteórica e se consolidou de vez como uma potência do futebol feminino.
O clube foi responsável também por abastecer a base da seleção e as protagonistas, como Alexia Putellas, dona de duas Bolas de Ouro, e a artilheira Jenni Hermoso, que defendeu o clube catalão até 2022. Esse cenário culminou em uma grande expectativa por reverter os avanços em títulos expressivos para a seleção feminina principal. Mas a preparação para a Eurocopa 2022 marcou o início de uma nova turbulência nos vestiários da equipe entre parte das atletas e o treinador Jorge Vilda.
Segundo o jornal espanhol El Mundo, Irene Paredes, Patri Guijarro e Alexia Putellas reclamaram que os métodos de treino estão desatualizados, que a aplicação de novas metodologias poderia fazer delas melhores jogadoras e que o tratamento de Vilda com algumas colegas não é o mais adequado. Mas a exigência das 15 jogadoras pela demissão do treinador não foi bem recebida pela federação, que declarou apoio incondicional a Vilda e declarou que “a seleção contará somente com jogadoras comprometidas, ainda que tenha que jogar com as juvenis”. Um detalhe importante a ser destacado: o pai de Jorge Vilda, Angel Vilda, é o chefe do departamento de futebol feminino na Federação Espanhola.
A entidade também exigiu um pedido de desculpas das atletas que renunciaram a seleção caso quisessem retornar à equipe. Foi o que começou a acontecer no início deste ano, seis meses antes da Copa do Mundo. Uma parte do grupo de jogadoras já teria comunicado a federação que estava à disposição da seleção, a exemplo da meia Aitana Bonmatí, destaque do Barcelona na campanha vitoriosa na Champions. Outras, porém, mantiveram o posicionamento, casos de Mapi León, Patri Guijarro y Claudia Pina, segundo o El Partidazo.
As 15 jogadoras, que ficaram conhecidas como “Las 15”, foram: Patri Guijarro, Mapi León, Claudia Pina, Aitana Bonmatí, Sandra Paños e Mariona Caldentey pelo Barcelona; Lola Gallardo e Ainhoa Moraza pelo Atleti; Amaiur Sarriegi e Nerea Eizaguirre pelo Real Madrid; Leila Ouahabi, Laia Aleixandre pelo City; Lucía Garcia e Ona Batlle pelo United e Andrea Pereira pelo América. Alexia Putellas e Irene Paredes, ambas do Barça, não assinaram a mensagem, mas declararam apoio.
Com ou sem conciliação, o técnico Jorge Vilda segue como técnico da seleção feminina de futebol da Espanha e anunciou que divulgará em 12 de junho a pré-lista com 26 nomes para a Copa do Mundo – provavelmente com quatro a seis jogadoras das “Las 15” que pediram para voltar.
Recheado de talentos, a atual geração espanhola vem colhendo frutos do investimento que o país fez na modalidade nos últimos anos. Resta saber se, mesmo impulsionadas por esse bom momento, as espanholas estão prontas para consolidá-lo neste Mundial, ainda que diante de um contexto interno tão conturbado. A Espanha está no grupo C da Copa do Mundo feminina e estreia no torneio em 21 de julho contra a Costa Rica.