Quatro anos após 1ª menina competir com meninos, CBF regulamenta times mistos

A catarinense Natália Pereira já jogava em uma escolinha de futebol quando pediu aos pais para começar a participar de campeonatos. Isso aos 7 anos. O que para um menino é tarefa simples, para a Nati era o começo da trajetória que a tornaria pioneira. As oportunidades de formação para meninas no futebol são raras e, quando existem, começam por volta dos 14 anos. Cenário que contrasta com a quantidade de categorias de base masculina. A missão daquela garota de laço colorido no cabelo e talento de sobra nos pés passou a ser convencer os clubes de Florianópolis de que ela poderia jogar entre os meninos. 

Aos 9 anos, Nati foi a primeira menina a jogar em uma categoria de base masculina no Brasil. O que foi possível graças a uma exceção, aberta pelo Avaí em 2019, passou a ser regra em todo o Brasil neste mês. A CBF regulamentou o futebol misto no país. Agora, meninas e mulheres poderão fazer parte de equipes masculinas e de competições antes reservadas apenas para eles. A nova regra pode ser aplicada em todas as categorias, da iniciação esportiva ao futebol amador adulto. Só que a autorização fica a critério das entidades organizadoras dos torneios. Por isso, a CBF anunciou que fará campanhas para que a mudança seja efetiva.

“Quando a minha mãe me mandou a notícia, o meu olho até encheu de lágrimas. Fiquei muito feliz pela conquista das mulheres. Vai ser bom todas as meninas terem a mesma oportunidade que eu tive”, comemora Nati, hoje com 13 anos. “Estar em uma categoria de base é muito diferente de uma escolinha de futebol. Quando entrei no Avaí, eu não sabia o que era tática de jogo. Só depois que fui treinar jogada de falta, de escanteio. Isso é muito legal, porque começa a ter um entendimento maior do futebol”, completa.

Nati Pereira foi a primeira menina em um time de base masculino: chegou ao Avaí com 9 anos | Foto: Fabiano Rateke

Nati passou quatro anos treinando e competindo com os meninos no Avaí. E sempre contou com todo o apoio dos pais. “Eu quase infartei quando ela me mandou a primeira foto de alojamento. Ela dormia nos colchões colocados nas salas de aula das escolas. A regra era que ela jogaria com eles e seria um deles”, conta, aos risos, a Karyna Pereira, mãe da Nati. O sorriso recheado de bom humor ao relembrar esses momentos é resultado da felicidade da filha com o tratamento igualitário: “Ela pulava, dava pinotes, adorou!”.

Segundo Natália, os meninos e o técnico do Avaí lidavam com ela como uma integrante do time igual a todos os outros. “Dentro de campo, eu jogava como um menino e me tratavam igual a um deles. Só que as pessoas de fora estranhavam muito. Quando eu roubava a bola e fazia gol, escutava gritarem da arquibancada que eles não podiam perder a bola para uma menina.”

Diante dos desafios nessa trajetória, a mãe da jovem craque ressalta o suporte encontrado no Avaí. “Se para a Natália não foi fácil, acho que para o Avaí também não foi. O clube tinha um coordenador e um técnico que eram extremamente parceiros”, pondera Karyna. Para ela, a regulamentação estipulada pela CBF implicará em mais oportunidades de iniciação às meninas. Por outro lado, os clubes terão de passar por uma adaptação que não é fácil, pois exigirá paciência e compromisso.

Ferramenta contra exclusão nos campeonatos

Natália não foi a primeira nem a única menina a treinar em times masculinos. Mas a grande maioria das que conseguem ser aceitas nos espaços de futebol acaba proibida de participar dos campeonatos por serem meninas. Há seis meses, a família da Emanuelle Oliveira, de 10 anos, conseguiu garantir na Justiça o direito da filha de jogar em um torneio em Belo Horizonte.

No ano passado, Laís Matias apelou para um abaixo-assinado para tentar mudar o regulamento do campeonato estadual de futsal sub-9 do Espírito Santo. A filha Laurinha, 8 anos, jogava futsal desde os quatro no Cruzeiro da Ilha de Santa Maria, em Vitória. Em 2019, Maria Clara tinha 10 anos quando viveu essa exclusão em São Luiz do Maranhão.

Em 2016, o time da habilidosa Laura Pigatin, no município paulista de São Carlos, ficou sem a capitã pelo simples fato de ela ser menina, mesmo com apenas 12 anos. A partir de hoje, essas meninas terão a resolução da CBF como uma nova arma para pressionar as entidades que organizam os torneios espalhados por todo o país a liberarem a participação delas.

Além de oficializar a prática do futebol misto em competições de caráter amador, a CBF instituiu o “Mecanismo de Dispensa Etária do Futebol Misto” (MDE). Ele permite que atletas e equipes femininas de uma determinada categoria participem de competições mistas em uma faixa etária inferior. Meninas com até 17 anos (sub-17), por exemplo, passam a ter autorização para disputar campeonatos com meninos de até 13 anos (sub-13), a critério da entidade organizadora que utilizar o MEC como referência no regulamento específico de suas competições.

 

Do início com meninos ao Corinthians feminino

Nati assinou o primeiro contrato com um clube de base feminino apenas quatro anos depois de entrar no Avaí. Ela chamou a atenção do Corinthians quando disputou o Paulista feminino da sua categoria pelo Meninas em Campo, projeto social voltado para a formação de garotas no futebol. “Quando tive a reunião no Corinthians para acertar tudo, eu estava tão nervosa que chegava a suar, eu nunca tremi tanto. Nem lembro de nada, só da técnica apertando a minha mão e falando para eu ir pro Corinthians”, conta a atual “brabinha do Timão”.

A categoria de base feminina mais jovem do Corinthians é a sub-15, que Nati foi aprovada em agosto de 2022, aos 13 anos. Para realizar o sonho de jogar no clube brasileiro mais vencedor do futebol feminino, a família fez um malabarismo. O pai mudou-se com a filha para São Paulo, enquanto a mãe ficou com o filho mais velho em Florianópolis. “Morar em São Paulo é um sonho para a Natália. Mas, para a gente, significa boletos dobrados”, pondera Karyna, mãe da jovem craque.

Mas nem todas as famílias têm condições de se mudarem para cidades onde o futebol feminino proporciona maiores condições de formação. Por isso, Karyna acredita ser importante fomentar a iniciação das meninas desde cedo nas estruturas já existentes. “Assim como o Corinthians, outros clubes estão montando bases femininas, mas não será suficiente para a quantidade de meninas que tem no Brasil. Se olhar para os meninos, em cada esquina tem um clube de Série A, B, C ou D com trabalho de base”, argumenta a mãe da Natália.

O próprio presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, reconhece que faltam equipes e, sobretudo, competições amadoras em nível local e regional nas primeiras categorias de iniciação e formação desportiva feminina, como a sub-10, sub-12 e sub-14. As competições nacionais femininas são disputadas a partir da categoria sub-17.

 

Aos 13 anos, Nati Pereira realizou o sonho de integrar o Corinthians Sub-15 Feminino | Henrique Barreto/Divulgação/ND

A regulamentação do futebol misto ajudará a corrigir esse problema, incentivando a participação de milhares de jogadoras em equipes e competições mistas. Com o tempo, o aumento de atletas registradas também poderá levar à criação de equipes e competições exclusivamente femininas nas categorias mais jovens”, discursou Ednaldo Rodrigues.

A regulamentação do futebol misto é vigente em países como França e Alemanha. Na Inglaterra, atletas de ambos os sexos podem jogar juntos até os 18 anos, enquanto na Holanda e na Dinamarca não existem restrições de idade. 

A sueca Pia Sundhage diz ter tido sorte por ter jogado com meninos quando criança. “Isso não tem nada a ver com meninos ou meninas e, sim, com o futebol. Se nós conseguirmos criar espaços onde se pratica o futebol, não importa se é uma menina ou menino. É uma oportunidade muito grande para todos nós que jogamos futebol”, avalia a técnica da seleção brasileira e ex-jogadora.

No caso da Nati, a paixão pelo futebol também vem desde bem pequena. A agora meio-campista do sub-15 do Corinthians ressalta a oportunidade de ter a experiência de treinar tanto com os meninos quanto com as meninas. “Meu estilo de jogo mudou bastante quando vim jogar no Corinthians. No Avaí, era totalmente diferente. Com os meninos, o jogo envolvia muito mais força e disputa no corpo. Com as meninas é um jogo muito mais tático, de pegar a bola e tocar de primeira, olhar o ponto futuro”, compara.

Nati mora com o pai em São Paulo em frente ao clube, o que facilita a logística. A rotina é bastante dinâmica. Todos os dias, ela se apresenta cedo no clube, onde treina, toma banho e almoça. Depois vai para a escola, onde as aulas começam pontualmente às 13h. Duas vezes por semana, ela ainda tem inglês à noite. Depois de tudo, só resta capotar de sono na cama. “É uma correria, mas vivo a vida dos meus sonhos. Estou jogando futebol, estudando com as meninas que jogam futebol, o que já é uma resenha absurda na aula, e adoro morar em São Paulo”, comemora a jovem jogadora.

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