A Supercopa do Brasil foi criada no futebol feminino em 2022 com o intuito de ser uma competição nacional para abrir a temporada reunindo representantes de diferentes partes do Brasil. O torneio em formato eliminatório dura uma semana e, no ano passado, ofereceu jogos competitivos e interessantes, com transmissão em TV aberta e fechada, que atraíram bons públicos e também chamaram a atenção de patrocinadores.
Para esta edição de 2023, a expectativa era ainda maior, já que a CBF anunciou uma premiação financeira para o torneio – R$500 mil para o campeão e R$300 mil para o vice. Se em 2022, seis estados estavam representados (SP, RJ, RS, MG, DF e PA), neste ano foram oito: SP, RJ, RS, MG, DF, SC, PR, CE.
Só que logo na primeira rodada, vimos um resultado discrepante e incomum para a elite do futebol feminino. O Flamengo recebeu o Ceará no estádio Luso Brasileiro no Rio de Janeiro e aplicou uma goleada de 10 a 0. O jogo, exibido em rede nacional (pela TV Globo no Rio de Janeiro, Ceará e em outros estados do país), chamou a atenção pelo desnível técnico entre um time e outro.
Assim como no futebol masculino, goleadas acontecem em competições nacionais femininas, mas uma desse tamanho, em tempos tão profissionais como esses que estamos vivendo, é praticamente inexistente – na Série A1 do ano passado, a maior diferença de gols foi seis (um 7 a 1 aplicado pelo Palmeiras no Cresspom).
Mas há explicação para tamanho desnível. O Ceará, campeão da Série A2 do Brasileiro feminino em 2022 (e que vai disputar a A1 neste ano), entrou na competição com um time sub-20. A jogadora mais velha da equipe que foi inscrita tinha 22 anos – a goleira Thais Maria. Houve até uma atleta de 14 anos em campo.
Não foi “estratégia” técnica para dar rodagem à equipe da base. Foi descaso.
A diretoria do Ceará decidiu, ao final de 2022, não renovar contratos com as jogadoras e comissão técnica que conquistaram a tão suada vaga inédita na elite do futebol feminino. A justificativa foi “corte de custos”. O Ceará caiu para a Série B no futebol masculino e, consequentemente, sofrerá grandes cortes na arrecadação com patrocinadores e direitos de TV para este ano.
Só que o time feminino do Ceará comprometia no ano todo menos de 1% do orçamento total do clube para a temporada passada com o time masculino. O custo que o clube teve com jogadoras e comissão técnica em toda a temporada 2022 equivale a mais ou menos um mês de salário de um dos principais jogadores do elenco.
Considerando que o custo do time feminino representava uma porcentagem tão pequena do orçamento do clube, cortar delas traria um impacto ínfimo nas contas gerais. E mais: se o Ceará se propusesse a manter a equipe – que era competitiva em 2022 -, poderia até mesmo brigar para chegar à final da Supercopa, uma competição de tiro curto e com jogos eliminatórios, e garantir uma premiação de R$300 mil que já bancaria boa parte do orçamento do time feminino no ano.
Com a decisão de dispensar o time adulto e manter apenas a base – onde as jogadoras não têm vínculo profissional e recebem ajuda de custo -, o Ceará expôs suas atletas tão jovens a uma situação constrangedora na competição. Atletas que se esforçaram bastante, mas visivelmente, estavam em desvantagem física em relação às suas adversárias. Com jogadoras de 17, 18 anos, o time alvinegro não conseguiu oferecer resistência ao Flamengo.
O resultado foi uma goleada de 10 a 0, que poderia ter sido pior não fossem algumas grandes defesas da goleira Thaís Maria. Ainda no primeiro tempo, o jovem técnico Felipe Soares fez alterações buscando melhorar o time, e a lateral direita Maria Fernanda foi a campo. Com apenas 14 anos, ela correu muito para tentar marcar as atacantes do Flamengo que avançavam em velocidade pela beirada. Seria justo fazer uma menina dessa idade estrear no profissional em uma partida eliminatória transmitida em rede nacional?
Além disso, o descaso dos dirigentes ficou exposto em uma transmissão para milhões de pessoas. Será que os patrocinadores do Ceará gostaram de ver o tratamento que o clube dá ao futebol feminino? Como será no Brasileiro, a estreia das alvinegras na elite? Servindo de saco de pancadas para os adversários? Como isso pode ajudar a desenvolver a modalidade – e a desenvolver as atletas tão jovens e já submetidas a tamanha pressão e exposição?
Questionamos o Ceará, que se posicionou em nota: “Devido à queda no masculino, o orçamento do clube foi bruscamente reduzido. Infelizmente, não só foi necessária uma reestruturação do clube, como ela ainda estava em curso até dias atrás. Setores foram reduzidos, outros tiveram as atividades paralisadas e se estudou o que se faria com o Futebol Feminino, uma vez que, com o clube na Série B do masculino, já não havia obrigatoriedade da manutenção da modalidade. A diretoria responsável decidiu pela continuidade do projeto para a temporada, mas ainda viabiliza recursos para a montagem de um grupo de maior competitividade”.
Há muitos clubes que ainda enxergam o futebol feminino como um fardo. Vêem custo, dor de cabeça, nenhum retorno. São comandados por dirigentes ultrapassados, que não conseguem enxergar o que está acontecendo ao redor do mundo. Os estádios estão enchendo para ver as mulheres em campo, há mais patrocinadores interessados, visibilidade na TV, e o tal retorno financeiro já começou a vir para quem decidiu investir com seriedade. Falta vontade, sobra descaso.
Não é preciso muito dinheiro para fazer um time minimamente competitivo no futebol feminino. Dá para começar devagar, mas com profissionalismo. E não é justo condicionar o mínimo investimento para elas ao que acontece no time masculino. Até porque, quando o futebol masculino ganha títulos e premiações, esse sucesso não reflete em mais recursos para elas. Então por que o fracasso deles (por muitos erros de gestão, diga-se) precisa impactar o trabalho mínimo que é feito com elas?
O clube ainda disse no posicionamento enviado ao Dibradoras que “Agora, mais próximo do início da Série A1, maior objetivo do clube no ano, o pensamento é buscar reforços pontuais para que o grupo torne-se mais competitivo e consiga buscar a manutenção na A1”.
É triste ver que, a essa altura do campeonato, há ainda clubes de grandes torcidas, como o Ceará, que colocou um ótimo público no PV para a final da A2 no ano passado, tratando o futebol feminino com tamanho descaso.