A dinâmica de desenvolvimento de uma modalidade funciona por meio de diversas engrenagens. No futebol feminino, por exemplo, ainda pagamos o preço de uma proibição que postergou seu crescimento e sua afirmação.
80 anos após o decreto lei que impediu mulheres de praticarem alguns esportes por quatro décadas (devido às “condições da sua natureza”), passamos a refletir como isso impactou diretamente no crescimento do futebol delas. Até então, só sabíamos cobrar por ouro olímpico.
O debate em nível mundial foi endossado pela Fifa, que em 2015 declarou “querer que o Brasil possua no feminino a mesma referência que possui no masculino”. E graças a muita gente – a muitas mulheres –, hoje os tempos são outros.
Women’s #Football League Benchmark. @LigaBBVAFemenil leads @NWSL in terms of community followers. @BRFeminino registers highest growth. @BarclaysFAWSL best European league…#RESULTSports #dataiskey #womensfootball #unlockthepotential pic.twitter.com/7I8WE7H3Wr
— RESULT Sports (@resultsports) January 5, 2022
De atleta para atleta
Sócia proprietária da Sow Sports (empresa especializada em desenvolvimento de projetos de futebol feminino e infanto-juvenis), Carol Pohl viveu na pele o drama da menina brasileira que tenta a carreira de atleta. Quando viu que não dava mais, seguiu na modalidade com o intuito de ajudar quem tem o mesmo sonho que ela tinha.
“A Sow nasceu em agosto de 2017, chamei o Benito (Pedace) para ser meu sócio. Criamos uma empresa para trabalhar exclusivamente com futebol feminino. Promover ações, serviços, coisas que gerassem o desenvolvimento da modalidade com o foco na igualdade de gênero, no 5º objetivo sustentável da ONU. Identificamos que gestão de carreira (de jogadoras) seria nosso primeiro serviço”, explica a publicitária.
“Hoje temos uma estrutura complexa com parceiros e pessoas de dentro da Sow. Há uma rede de relacionamento (assessoria de imprensa, financeira, jurídica, contábil, psicológica, de performance), uma estrutura que consegue atender dependendo da necessidade de cada atleta, seja intermediação de negociação, parte comercial com patrocínios. Trabalhamos também com consultoria com capacitação para clubes, equipes específicas, marcas que queiram desenvolver”, completa.
O tempo que passou investindo na carreira de jogadora (jogou no Corinthians, em clubes do ABC paulista, em time universitário nos EUA e também futsal na Espanha) fez Carol perceber um setor até então carente na modalidade. Não havia um suporte específico para a carreira da atleta, alguém ou algo que olhasse para além do desempenho em campo.
“Eu tinha certeza de que as coisas iam se desenvolver e uma vez isso virando profissional, iam aumentar as oportunidades e seria importante ter alguém que pudesse fazer um trabalho com elas (jogadoras). A gente quer que elas alcancem seus sonhos, então eu tinha convicção de que daria certo (o desenvolvimento da modalidade) e falava que estaria com elas de uma maneira profissional lutando junto, por espaços, para elas terem condições de trabalhar”, explica Carol ao ser questionada como a empresa captava suas primeiras clientes em uma época que ainda não se via claramente os rumos que a modalidade seguiria no Brasil.
Muito mais que jornalismo
No mesmo ano da criação da Sow, uma jovem aventureira no mundo jornalístico também decidiu trabalhar por elas. Kin Saito bateu pessoalmente à porta da CBF em 2014 pedindo um estágio sem conhecer absolutamente ninguém por lá, e no ano seguinte conseguiu ingressar na entidade. Depois de adquirir experiência e não ser efetivada, a ainda estudante de jornalismo deu seu primeiro passo rumo a uma carreira promissora.
“Dentro da CBF eu percebi que havia uma lacuna para profissionalizar assessoria de imprensa de atletas do futebol feminino. Quando eu olhava para o topo da pirâmide (a seleção) não via agência do lado dessas atletas, via empresário que fazia função de assessor. Saio de lá e ligo imediatamente para o Vitor Rios (da Rios Comunicação), que na época trabalhava com o Ronaldo (Nazário). Digo que preciso terminar meus créditos de estágio na PUC e que quero muito olhar para o futebol feminino. A Rios não tinha cliente da modalidade, então ele comprou essa visão”, conta Kin.
Com a oportunidade em mãos, a jovem de 22 anos foi entender como de fato faria este trabalho e chegou ao nome que se tornaria o principal case estratégico da empresa na modalidade. “Passei quase 2 anos estuando o mercado, não queria fazer o movimento por ânsia de atuar, mas muito estratégico, escolher nomes muito a dedo e mostrar para elas essa visão da Rios. Fui atrás da Tamires (Corinthians) e da Pelle (Aline Pellegrino). Com a Tatá, aproveitamos que ela tinha acabado de retornar ao Brasil para então pensar em um planejamento de carreira, olhar mercado, estruturar pilares, mais do que um único empresário, uma única visão. Levamos ela para a R9 gestão com suporte de gerir patrimônios, finanças, pensando em um futuro”, explica a jornalista.
São três braços que cuidam da vida profissional da lateral do Corinthians e da Seleção Brasileira. Kin explica: “Na sequência levamos Tamires para a Octagon com a gestão comercial, de imagem, estar à altura do que o mercado do futebol feminino trata como profissional. Eu passo a me dividir, coordeno o futebol feminino na Rios e a área de atletas na Octagon. Tem um trabalho de imagem, de contratos, de perspectivas da Tatá abrir projetos a longo prazo, de propósitos, legados, contato com a imprensa no sentido de munir informações para pautas novas, desafiar perguntas diferentes, trazer leveza”.
A abordagem com as clientes é justamente em cima do próprio potencial da atleta. É fazê-la perceber o quão vantajoso é cuidar do próprio patrimônio genético (empoderamento) e financeiro (fruto de muito trabalho). “Tendo uma constatação de qual é hoje o modus operandi de pessoas que estão ao redor da jogadora tentamos propor, trazer uma nova noção do sarrafo do que elas precisam ter para elas mesmas. ‘Queremos conversar com você porque identificamos muito potencial em você, na mulher que você representa’”, pontua Kin.
Pioneirismo em clubes
Em 2017 o Corinthians, hoje referência nacional na modalidade, tinha um ano da criação do seu time feminino e já tinha ganhado a Copa do Brasil. Na época, Camila Gozzi ainda era estudante de Administração com ênfase em Marketing na ESPM e ficou com a responsabilidade de cuidar do departamento – que não existia.
“De início eu entendi que tinha uma demanda, não sabia mensurar essa demanda, era muito carente de dados. A minha alternativa foi criar uma rede social específica, naquela época era inédito, foi pioneiro e visionário. Também não tínhamos plano de transmissão e as pessoas perguntavam, queriam saber, e aí começou de uma maneira extremamente amadora com o meu celular a gente transmitir os jogos pela página oficial do Facebook. Foi algo que conseguiu dar um retorno muito grande de seguidores, engajamento, compartilhamento. O Corinthians não transmitia só para os corintianos, tinha o outro time adversário. As pessoas iam na página do Corinthians ver futebol feminino”, conta Camila.
O Corinthians foi um dos primeiros clubes a criar redes sociais específicas para o time feminino, e Camila fez parte do início desse projeto. Hoje, as contas de Twitter e Instagram do Corinthians feminino são as mais engajadas na modalidade (são mais de 255 mil seguidores na primeira e 911 mil na segunda).
Outro case de sucesso da qual a especialista em futebol feminino participou no clube que cinco anos depois de sua criação é tricampeão Paulista, Brasileiro e da Libertadores foi uma campanha que excedeu o campo. “O ‘Respeita as Minas’ se tornou uma marca do Corinthians institucional, que gera receitas para o clube, não é só exposição, ela excedeu o Corinthians, o futebol, se tornou uma marca das mulheres, de respeito, empoderamento”, diz Gozzi.
Após o Corinthians, Camila acertou com o Red Bull Bragantino no ano em que a empresa criou seu primeiro time de futebol feminino. Coube a ela toda a elaboração do projeto e da equipe.
“Foi muito desafiador, eu estava entrando sozinha como conhecedora desse mercado. Alguns profissionais foram muito importantes nesse processo. No primeiro dia de treino veio a pandemia, foi mais um desafio. Fomos o último clube a voltar aos treinamentos com protocolos muito rígidos, eu não abria mão disso. Para mim foi por isso e outros motivos que não tivemos nenhum caso de COVID naquele Paulistão. Tudo fluiu muito bem e acabamos com um desempenho esportivo até que acima do que a gente imaginava”, relembra Gozzi – o RB foi a grande surpresa do Campeonato Paulista Feminino de 2020 e desbancou times como o São Paulo nas quartas de final.
Visão de negócio
O “boom” da modalidade passa pelas mãos de Carol, Kin, Camila e tantas outras. É uma rede de agentes querendo e batalhando para que o desenvolvimento do futebol feminino brasileiro aconteça de maneira sustentável, orgânica e fomentada.
“Quem não está olhando para o futebol feminino, para as mulheres como pilares estratégicos, está perdendo o timing e oportunidades. Esse é o desafio, mudar essa mente. Enquanto tem outras empresas que topam tratar isso a gente vê o quanto elas estão nadando na frente. Com a Tatá, tivemos muitas mulheres que abriram portas para que ela também esteja colhendo frutos de contratos assinados com empresas que não gravitam no mercado esportivo. Vale a pena investir nesta atleta e tê-la como embaixadora, ela vai se comunicar com uma comunidade que está ali”, diz Kin.
“Hoje já se pode olhar o feminino como fonte de renda, já dá para pensar em categoria de base, formação de atleta, transferência. Tem que ter uma gestão independente dentro do clube, seu próprio centro de custo. A dependência ainda é muito grande, se o time perdeu no masculino, se o dirigente está de mau humor é: ‘não vamos falar do feminino’. Se o masculino caiu é: ‘vamos diminuir a verba, tirar do feminino’. A forma de conquistar isso é fazendo um trabalho profissional, contratando profissionais especializados, que saibam o que estão fazendo, não adianta não ter conhecimento e estar à frente, é uma maturidade geral do mercado em todos os níveis”, explica Carol.
“Fica muito claro para mim uma gestão humanizada do processo, você não olhar o futebol e as pessoas de uma maneira óbvia e científica, é saber se colocar no lugar, entender o momento, precisamos entender o que cada um passa, quais são as expectativas, entender que vamos errar nesse processo. Eu sou muito adepta da diversidade, isso cria um produto final muito melhor porque você traz diferentes visões, isso vai gerar discussões proveitosas”, comenta Gozzi.
Diante de todo o crescimento da modalidade, incluindo o empenho de Confederações e Federações em melhorar calendário, formato, torneios e premiações, Camila ressalta o importante passo que a Conmebol deu após três anos seguidos pagando os mesmos valores de premiação aos finalistas da Libertadores Feminina.
“Esse ano a Conmebol colocou a premiação de 1,5 milhão de dólares ao vencedor e 500 mil dólares ao vice. O clube campeão da Libertadores esse ano vai ser um clube superavitário. Isso é muito representativo”, comemora a especialista.
Para Carol, o atraso no desenvolvimento do feminino no Brasil dá a possibilidade de a modalidade não reproduzir certos pontos negativos que vemos no masculino. “Há um senso comum de que a maneira como o masculino trabalha não é nem saudável e nem autossustentável. Estamos em um momento diferente enquanto sociedade, não queremos mais um trabalho de maneira amadora, ‘ah, sou apaixonada por esse clube, vou ser gestora, acabar com o caixa desse clube’. Temos como fazer de uma maneira consciente, profissional. O masculino tem jogadores que ganham quantias surreais e atletas que passam fome. Podemos não repetir esse tipo de coisa”, ressalta a empresária.
Kin endossa a importância de profissionais capacitados e alinhados com o discurso da modalidade. “Podem existir profissionais capacitados, mas qual a visão deles e o que eles transmitem para essas atletas baseado nessa relação de confiança? Precisa de uma noção forte de legado. Eu, enquanto gestora, tenho que entender que através da atleta há um propósito maior que não sou eu lucrar nessa situação, é o futebol feminino como um todo. Noção de contribuir para além do meu ego, do meu umbigo, do meu negócio. O que vai gerar impacto para todos nós, seja para o meu concorrente ou não, eu quero ter concorrente para o meu mercado, desde que o olhar seja isso, cada um no seu papel e dividindo o propósito”.
2 respostas
Dá muito orgulho ver o que essas meninas-mulheres construíram embasadas e com muita garra. Que elas inspirem muitas outras, que o histórico de outras também apareça.
Orgulho danado de ter a Carol e Camila como ex alunas e com um brilho de tempos atrás cada vez mais lapidado.
Sucesso sempre pra elas e um monte delas espalhadas por ai que lutam pelo fut feminino.