A lição dos EUA: país tem 60% das medalhas em Tóquio conquistadas por mulheres

Os Estados Unidos terminaram os Jogos Olímpicos de Tóquio mais uma vez no topo do quadro de medalhas, mantendo seu status de “maior potência olímpica do mundo”. O que talvez muita gente não perceba é a importância da participação das mulheres na construção dos resultados que mantém os EUA inalcançáveis nessa disputa.

Já havia acontecido em Londres-2012 (quando elas conquistaram 63% das medalhas dos EUA), a história se repetiu na Rio-2016 (elas trouxeram 60% dos ouros conquistados pelos EUA), e em 2021 não seria diferente. Mais uma vez, as mulheres americanas foram responsáveis por quase 60% das medalhas conquistadas pelos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos.

Dos 113 pódios somados por todas as modalidades do país, elas conquistaram 66 (ou seja 58%). Se contarmos apenas as vezes que os americanos subiram ao topo do pódio, ou seja, a quantidade de medalhas de ouro, as mulheres conquistaram 23 das 39 dos EUA (o equivalente a 59%).

Foto: IMAGO

A participação feminina na delegação dos Estados Unidos em Jogos Olímpicos tem aumentado a cada ano e isso também se reflete nos resultados. Em Londres-2012, foi a primeira vez que elas foram maioria entre os atletas dos EUA: 268 mulheres e 262 homens. Na Rio-2016, a diferença aumentou ainda mais: 291 mulheres e 264 homens formaram a delegação americana.

Em Tóquio, mais um recorde delas. Os Estados Unidos levaram 613 atletas para o Japão (o dobro do Brasil, que teve 309). Desses, 329 eram mulheres, 284 homens. Proporcionalmente, elas representaram 54% da delegação americana, um número impressionante e muito difícil de se ver nos outros países.

Quadro de medalhas de Tóquio considerando apenas as medalhas das mulheres

Vale lembrar que o COI tem batido na tecla da importância de uma maior participação feminina nas delegações dos Jogos Olímpicos – já que, historicamente, as mulheres foram minoria no maior evento esportivo do mundo, até por conta de todas as proibições que já existiram para elas nas modalidades (somente em 2012 os Jogos passaram a oferecer as mesmas modalidades nas categorias feminina e masculina). Em Tóquio, as mulheres representaram 48,8% dos atletas e a meta é que em Paris elas sejam 50%.

Só que para quem investe de alguma forma no esporte feminino, é fácil ver isso se refletindo imediatamente em resultados. Isso porque é raro encontrar países que efetivamente incentivem, deem a mesma estrutura e as mesmas oportunidades para as mulheres no esporte. Sendo assim, quando algum país faz o “mínimo”, o resultado atingido é o máximo. Os Estados Unidos são um excelente exemplo disso. E a raiz de tudo está numa lei aprovada ainda na década de 1970 que segue dando frutos até hoje.

Foto: Shutterstock

Title IX

Antes de mais nada, é preciso diagnosticar um problema universal: a falta de incentivo para as meninas praticarem esporte. Isso não é algo exclusivo do Brasil, é a regra em qualquer parte do mundo. E começa com um recado bem simples, às vezes até na maternidade: meninos ganham bola, meninas ganham boneca. Aí começa a “divisão de tarefas” que a sociedade criou e que muita gente reproduz até hoje: a quadra, o campo, a rua, a bola, são brincadeiras de menino. A boneca, a mini-cozinha, a mini-tábua de passar roupa são brincadeiras de meninas.

É difícil quebrar essa lógica que é construída tão forte desde cedo. Até mesmo na escola existem aulas de educação física que colocam meninos para jogar e meninas para conversar na sala de aula. Como se esporte definitivamente não pudesse fazer parte da rotina delas.

Só que nos Estados Unidos, uma lei da década de 1970 permitiu uma mudança drástica nas oportunidades para as meninas.

Tudo começou quando a Patsy Mink, uma deputada-advogada, articulou a criação da Title IX, uma lei que não tinha nada a ver com esporte, mas fez toda a diferença nele.

Dizia a lei: “Nenhuma pessoa nos Estados Unidos deve, com base no sexo, ser excluída da participação, ter benefícios negados ou ser sujeita a discriminação em qualquer programa ou atividade educacional que receba assistência financeira federal.”

O texto falava de educação, mas na prática teria um impacto no esporte. Porque nos Estados Unidos essas duas coisas estão atreladas. A principal porta de entrada para as Universidades por lá (que são caríssimas, por sinal) é o esporte. Os alunos tentam conseguir bolsas de estudo por meio dos esportes que praticam para conseguirem dar conta do investimento alto que essas universidades exigem.

Foto: AP

Só que antes da Title IX, essas bolsas eram oferecidas majoritariamente a alunos do sexo masculino. A porta de entrada da Universidade pelo esporte só estava aberta aos homens. Sendo assim, as meninas não eram incentivadas a praticarem nenhuma modalidade na infância, afinal, isso não daria a elas o benefício de estudar na faculdade (como era o caso dos meninos).

Com a lei, as universidades americanas precisaram se adequar e oferecer às mulheres o mesmo número de bolsas de estudo que ofereciam aos homens pelo esporte. Assim, ao longo dos anos, a lógica foi se invertendo. Como também poderiam chegar à Universidade por meio do esporte, as meninas passaram a ser incentivadas à prática esportiva desde cedo.

Os números mostram a mudança do cenário: em 1972, quando a lei foi criada, uma em cada 27 meninas praticava esportes nos Estados Unidos. Quase 50 anos depois, uma em cada três pratica.

Resultados

Não é difícil entender como as mulheres dos Estados Unidos impulsionam os resultados do país nos Jogos Olímpicos. E isso não quer dizer que, por lá, elas não sofram preconceito no esporte. Ainda há bastante discriminação, elas não recebem a mesma atenção da mídia e, até mesmo em modalidades onde conseguem melhores resultados (tanto esportivos, quanto em termos de lucro), seguem ganhando menos do que eles – como é o caso do futebol.

Foto: Divulgação US Soccer

Só que a maior diferença está justamente na OPORTUNIDADE. As meninas dos Estados Unidos nascem com mais chances de terem alguma introdução ao esporte. Um convite para participar de um time da escola, a oportunidade de disputar competições municipais e estaduais. Há todo um sistema esportivo pronto para acolhê-las.

No caso do futebol, um dos esportes mais praticados por mulheres nos Estados Unidos, existem 9,5 milhões de mulheres registradas em clubes e competições, de acordo com o estudo da Fifa de 2019. E, pensando apenas em categorias de base, elas somam 1,5 milhão abaixo dos 18 anos praticando esse esporte. É um número infinitamente maior ao do Brasil, por exemplo, que até dois anos atrás registrava apenas 475 meninas abaixo de 18 anos jogando futebol e nenhuma competição de base que elas pudessem disputar.

A realidade é que, para se ter resultados em qualquer esporte, são necessárias duas coisas básicas: investimento e oportunidade. Uma potência olímpica se faz assim, dando oportunidade para as crianças praticarem as modalidades mais variadas na infância e condições de treino para que elas se desenvolvam e se formem como atletas profissionais.

O Brasil, infelizmente, ainda engatinha nesses dois itens. Especialmente quando falamos em oportunidades para as meninas praticarem esporte. A lição que vem dos EUA mostra o impacto que poderíamos ter nos resultados esportivos se déssemos um pouquinho mais de atenção aos esportes femininos.

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