Uma jogadora que construiu uma história vitoriosa e que esteve pronta para assumir responsabilidades em uma seleção renovada em Tóquio e conduzir o time a uma final “inesperada”. A palavra é essa, porque o Brasil chegou a Tóquio após um ciclo olímpico bastante conturbado, com mais derrotas do que vitórias, e com perspectivas baixas. Muita gente não apostava sequer em medalha para a seleção brasileira feminina no Japão.
Mas com um jogo coletivo impressionante e com o protagonismo também de uma atacante experiente como Fernanda Garay, a seleção conseguiu chegar a mais uma final olímpica. O jogo contra os Estados Unidos foi a pior exibição do Brasil nos Jogos, terminou com a derrota por 3 a 0, mas Garay, mesmo sob forte emoção – por ser sua despedida -, soube fazer a análise mais sóbria do momento.

“A gente sabia da dificuldade. Estrategicamente, elas conseguiram jogar melhor que a gente. Mas eu estou muito orgulhosa desse grupo, do que fizemos até aqui. A gente conseguiu se impor, sair de momentos de dificuldades. A gente não tinha dúvidas de que poderíamos fazer uma grande partida, mas hoje foi o momento de sentir a derrota”, afirmou a ponteira.
“Acredito muito que a gente só tem que se orgulhar. A gente conquistou essa prata, não foi hoje, foi na semifinal. Foi muito difícil chegar até aqui e conquistá-la. A gente tem que se orgulhar. Dói um pouquinho, mas tem que passar rápido. O sentimento é de orgulho, de alegria. Muita gente queria ter essa prata hoje, eu encerro esse ciclo da melhor maneira, orgulhosa do que a gente fez. Muito feliz de ter feito parte dessa história, de ter tido a oportunidade de jogar mais uma vez os Jogos Olímpicos”.
Garay já havia dito que queria tirar um tempo para se dedicar à família, ela tem planos de engravidar. E, com isso, estará fora da próxima temporada inclusive dos clubes. Na despedida, ela não teve como não se emocionar.
“Valeu muito a pena. Eu sou muito feliz de ter vivido tudo isso. Eu imaginei que talvez não teria condição de estar aqui. Eu nunca estive aqui mais ou menos. Tive um ano a mais pra me preparar, me recuperar, e eu encerro essa jornada muito orgulhosa do que eu fiz e do que nós fizemos. E para quem continua por aqui, bola pra frente. Essa geração vai continuar representando o Brasil da melhor maneira possível.”
Ainda é difícil assimilar que não teremos Fernanda Garay em quadra vestindo a camisa da seleção brasileira. Ela se despede com uma trajetória impressionante: cinco medalhas em Grand Prix (três de ouro), uma prata e um bronze em Campeonatos Mundiais, um ouro e uma prata olímpicas.
Ouro olímpico
O ápice da carreira de Garay veio nos Jogos Olímpicos de 2012, quando ela assumiu a titularidade no lugar de Paula Pequeno ao longo da competição para não sair mais do time. A campanha da equipe de Zé Roberto, que chegou a Londres para defender o ouro conquistado em 2008, foi desastrosa. E depois de uma derrota inesperada para a Coréia do Sul por 3 a 0, parecia que tudo estava perdido. Uma reunião entre jogadoras e comissão técnica, porém, resgataria a autoestima daquele grupo, que protagonizou jogos épicos e garantiu uma conquista marcante para um time que redefiniu o significado de “jogo coletivo” para o vôlei.
“No nosso pior momento, a gente entendeu que tinha que fazer o coletivo ser mais forte. Foi esse entendimento pra nossa virada”, contou Garay às Dibradoras em 2020. E no jogo mais marcante da campanha – as quartas-de-final contra a Rússia – isso ficou evidente. Foi Sheilla quem se destacou no tie-break salvando cinco match points, mas as defesas de Garay, Jaqueline e Fabi, os levantamentos de Dani Lins, e os bloqueios de Fabiana e Thaisa também foram essenciais para construir aquela vitória. E antes do desespero de ficar atrás no placar, aquela seleção teve tudo para abrir 12 a 9 num ataque de Garay que caiu dentro da quadra russa – só que o juiz deu bola fora.

“A gente já tinha passado tanta coisa naquela Olimpíada, que não tinha mais o que abalar. E eu lembro de olhar pra Sheilla e entender: a gente não vai perder esse jogo. Ali, eu senti o peso que a Rússia tinha para aquela geração. O 24 a 19 marcou muito, a raiva, a vontade de ganhar da Rússia tinha algo a mais. Eu fui contagiada por isso. E fui muito testada naquele jogo, elas só sacaram em mim nos match points e eu não podia errar. Mas eu pensava: os caras roubaram uma bola minha, a gente não vai perder. A gente vai ganhar duas vezes”, contou.
O Brasil ganhou aquele jogo, depois atropelou o Japão e venceu as favoritas americanas na final de virada por 3 a 1. Calhou do ponto do ouro ter sido marcado por Garay, numa conquista em que a união do time fez a diferença para uma reviravolta épica.
“Foi o time que mais jogou como time. Eu já participei de outros grupos muito bons que trabalhavam muito bem coletivamente, mas ali foi uma coisa muito rápida. A gente teve que se recuperar muito rápido. E na dificuldade, o time apareceu”.

A história desta prata em Tóquio teve suas similaridades com a daquele grupo. O Brasil chegou à decisão c0m 100% de aproveitamento, é verdade, mas em uma campanha que surpreendeu muita gente. Porque a seleção teve um ciclo olímpico bastante difícil e foi para Tóquio desacreditada. Mais uma vez, a força do grupo levou a seleção mais longe – se não para o topo do pódio, para o segundo lugar dele.
Representatividade dentro e fora de quadra
Fernanda Garay é filha de ex-jogador de basquete, mas foi no vôlei que ela se encontrou. Com 1,80m já na adolescência, a menina despontou no Sul e, aos 15 anos, se mudou para São Caetano para seguir a carreira no esporte. Ali, via muitos estranharem quando ela respondia de onde era. “Porto Alegre? Mas uma gaúcha negra?”, questionavam. Mas conforme foi ganhando fama nas quadras, os comentários preconceituosos foram diminuindo.
“O vôlei me ajudou muito nesse sentido. Eu ter me destacado cedo me ajudou, porque aí já fui ficando conhecida e não ouvia mais isso”.
Mas toda a construção de Garay para ser quem é hoje passou muito pela influência das mulheres da família. Especialmente a mãe dela. Crescendo em Porto Alegre, uma cidade onde mais de 80% da população é branca, era inevitável ser ver como “diferente”.
“Eu me sentia muito sozinha às vezes (na infância). Mas tenho na família mulheres muito fortes que me ajudaram muito na construção de caráter e autoestima. Tinha minha mãe, que me levantava e não me deixava abalar. Passei por momentos difíceis de me questionar, sofrer. A coisa do cabelo é muito difícil. Essa coisa de se descobrir, se encontrar, é um processo longo. Não tinha referência na TV. Hoje, eu vejo o quanto a gente deu passos importantes na representatividade, nessa desconstrução do padrão de beleza”, afirmou a ponteira.
“Eu lembro de voltar pra casa chorando, mas minha mãe sempre foi uma mulher maravilhosa e sábia. Ela me colocava na frente do espelho e falava: ‘tu é linda. Olha esse olho, olha esse cabelo. Tu é linda, tem que se valorizar’. Isso foi definitivo pra construção do meu caráter”, contou Fernanda Garay em 2020 às Dibradoras.
Agora, como jogadora conhecida de vôlei e campeã olímpica, Garay já não sente os mesmos olhares preconceituosos do passado. Ela também nunca passou por situações de racismo dentro de quadra, como aconteceu por exemplo com o oposto Wallace em 2012, quando jogava pelo Cruzeiro. Mas ao acompanhar o que tem sido frequente com jogadores de futebol, Garay admite que não sabe qual seria sua reação se sofresse algo parecido.

“Teve o caso que aconteceu com a americana do Minas, a Deja McClendon, num jogo contra o Praia, mas o ataque foi virtual, não foi em quadra. Eu falei com ela na época, falei nas minhas redes sociais também. Mas acho que gritos racistas da torcida são um golpe muito baixo. Porque você não pode se defender. O atleta tem o desafio de se manter focado na partida com qualquer tentativa de te tirar do jogo. Só que isso é um paradoxo muito grande, porque instintivamente você vai querer sair do jogo, é um crime, é algo que fere.”
A representatividade de Fernanda Garay na seleção brasileira com certeza inspira muitas outras meninas negras a sonharem com um protagonismo no esporte. Gigante dentro e fora das quadras, ela deixa um legado gigantesco para o vôlei brasileiro.