Tenho uma figurinha no WhatsApp que diz: “É desgastante viver em um momento histórico”. Me representa demais. Para nós, mulheres no jornalismo esportivo, é um momento histórico de conquista de espaços e de muito trabalho. Mais do que nunca, especialmente no momento sociopolítico atual, nossas conquistas devem ser comemoradas, já que a cada dia uma nova notícia deste tal momento histórico joga a gente lá pra baixo.
Nossas conquistas… Apesar da alegria de ver mulheres em espaços que antes lhes eram negados, até quando esses espaços vão ser ocupados apenas por mulheres brancas? As notícias de contratações para emissoras de TV, as colegas que vejo realizando os sonhos de carreira, as que são convidadas para falar em eventos e representar as mulheres no jornalismo esportivo representam apenas uma parcela da população brasileira. As últimas contratações, no caso da Globo, foram de Natália Lara e Fernanda Colombo. Outras que fazem parte do plantel são a nossa dibradora Renata Mendonça, Ana Thaís Matos e Renata Silveira.
Não me levem a mal. Eu comemoro demais quando vejo uma transmissão com uma narradora ou comentarista. Fico especialmente feliz de falar “eu conheço essa daí” sempre que conheço – mesmo que só pelo Twitter. Mas ao mesmo tempo a sensação é de vazio, já que mulheres negras são pouco representadas nessas funções. Lembra como a gente se sentia antes, quando não via mulheres trabalhando no jornalismo esportivo? Para mulheres negras, isso acontece até hoje.
Falo especificamente de TV porque é onde a aparência mais impacta, mas não achem que o cenário é diferente em rádios, redações de veículos escritos e outras instâncias. Até pouquíssimo tempo atrás, eu não conseguia citar muitas colegas pretas no jornalismo esportivo. Mas, depois de uma breve pesquisa nas redes sociais, de pedir indicações, de conversar com as que eu conhecia, isso foi mudando. Fica a dica: antes de dizer que não conhece alguém ou que não pode recomendar, procure. Nós existimos e não somos invisíveis; somos invisibilizadas.
A situação também não muda apenas jogando mulheres (sejam elas quem forem) nas transmissões sem preparação, como falamos após as críticas a transmissões do MyCujoo. A disparidade está no acesso às oportunidades, no treinamento, na capacitação, e deve ser combatida em todos os níveis. Essas profissionais precisam ter uma chance justa.
Algumas pessoas falam sobre Karine Alves como se ela fosse a prova de que mulheres pretas têm espaço na TV. No entanto, o fato de ela ser a única em um universo cada vez maior de mulheres em transmissões depõe contra esse argumento. Afinal, vamos pensar na Globo? O maior conglomerado de mídia da América Latina tem braço no país inteiro e espaço de sobra para capacitação de talentos. Não precisa nem procurar tão longe – eles têm Rafaelle Seraphim, comentarista e editora, preparadíssima para jogar, mas que segue no banco. O que falta acontecer para que ela (e tantas outras) entre(m) em campo?
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“Elas precisam de mais experiência. Precisam de mais tempo em câmera. Precisam de mais capacitação. Estão muito verdes”. Essas chances de mais tempo, mais experiência e mais treinamento são dadas a algumas, mas muitas ficam de fora. A linha de chegada vai ficando cada vez mais para trás e profissionais ficam restritas a espaços independentes para que consigam exercer seus talentos. Por mais importante que esse movimento seja, essas vozes seriam muito bem-vindas nos grandes veículos. Já passou da hora.
É hora de ver mais mulheres pretas no jornalismo esportivo. As próprias Dibradoras, um veículo feminista criado por mulheres brancas, reconhecem que precisavam e precisam (tempo presente) fazer mais para melhorar esse cenário. Estar aqui, com liberdade para escrever esse texto, é um grande avanço. Mas, como vi em uma propaganda com a jogadora Tifanny Abreu: “Uns enxergam a primeira. Eu vejo a possibilidade de garantir que não serei a última”.
É gostoso demais ver o apoio e cumplicidade entre as mulheres do jornalismo esportivo nas redes sociais. Essa energia já existe, mas precisa ser redirecionada para garantir que todas sejam incluídas. Mulheres negras acabam ficando de fora dessa rede. São excluídas dentro do movimento que ajudaram a construir e que ajudam a manter. E mantidas à margem, em veículos independentes, em espaços próprios, mas que não têm o mesmo alcance de uma mídia de massa. E eu nem entrei (ainda) no debate sobre orientação sexual, identidade de gênero, pessoas com deficiências, maternidade…
Seguimos na luta por mais mulheres em transmissões – ainda tem poucas – e em redações, produção, edição, cargos de liderança. Pessoas que já chegaram a esses espaços precisam trabalhar constantemente para melhorar o cenário. E é aí que entra a autocrítica: não adianta ter mulheres na transmissão e dizer que é um espaço inclusivo. Não adianta só jogar profissionais recém-formadas em ambientes sem um período de treinamento. O trabalho passa por formação, estímulo, apoio e acolhimento.
Então deixo aqui o meu recado às jornalistas brancas que leem esse texto: usem o privilégio de vocês. Parece que ele não existe, mas é muito real. Vocês são cada vez mais valorizadas nos seus ambientes de trabalho, conquistaram esse espaço, merecem demais estar aí. E tenho certeza de que tem outras, que vocês podem não conhecer, que também merecem e não foram vistas. Olhem para o grupo de amigas de trabalho e percebam o que precisa mudar. Sabe a energia de cobrança de olhar para um evento de jornalismo esportivo e dizer “essa mesa precisa de mulheres”? Dá para usar em outras questões também, inclusive nos seus círculos de parceria profissional. A inclusão não para em vocês.
Afinal a nossa luta é coletiva. Eu estou aqui porque tive homens e mulheres que me apoiaram nessa caminhada. Recomendando para vagas, falando bem para recrutadores, reforçando os meus pontos fortes e ajudando a melhorar o que fosse necessário.
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Se precisarem de recomendações para vagas, perguntem, peçam nas redes sociais, mandem um oi para alguma conhecida, deem uma olhada no projeto A Negra no Futebol Brasileiro (conduzido por Natália Silva, jornalista e pesquisadora incrível – e minha amiga pessoal). É assim que a rede se fortalece. Nossas conquistas precisam ser coletivas e o mundo só vai mudar quando todas estiverem no topo – juntas. Porque podem ter certeza de que a luta nunca parou e não vai parar tão cedo.
DICA: Neste fim de semana, o Coletivo Lena Santos promoverá o 1º Congresso Nacional de Jornalistas Negras e Negros. A programação está imperdível. É só se inscrever aqui.
2 respostas
Reflexão mais do que necessária! Parabéns a autora!
Uma reflexão inevitável com muito humildade sem nenhuma vontade de querer criar um scénario amargo para delimitar mais uma vez uma fronteira que com muita paciência e dedicação estará derrubado por competência indiscutível de uma nova geração atenta e consciente do seu próprio valores parabéns o futuro já tá presente !