Quem encontra o caderno de anotações de futebol da pequena Luísa, de seis anos, não vai se surpreender quando souber o sobrenome dela: Belli. Afinal de contas, teria que haver alguma influência para a menina escrever “quem corre é a bola” e “a bola vai até a posição, e não a posição vai até a bola” como as regras 6 e 7 do manual de “como jogar futebol” feito por ela.
Mas a atitude surpreendeu até mesmo o pai, Ricardo Belli, treinador do Palmeiras, um estudioso do futebol e amante do “jogo de posição” – que tanta gente complica, mas Luísa soube descrever de maneira simples os princípios básicos terminando com a regra 8: “futebol é coletivo”.
E não haveria melhor definição para o jogo do Palmeiras que não essa. O melhor ataque do Campeonato Brasileiro feminino com 17 gols em cinco jogos teve nada menos do que nove jogadoras como autoras desses tentos. Aliás, as duas “artilheiras” do time mostram o repertório palestrino: Bia Zaneratto, atacante, tem quatro, Agustina, zagueira, tem três.
Na última partida, contra o Grêmio, quando virou líder do campeonato, foram dois da defensora em jogadas ensaiadas de cobranças de escanteio. Diante de uma defesa tão bem postada, uma linha de cinco marcadoras, as soluções encontradas pelas jogadoras palmeirenses foram utilizar as bolas paradas para construir a vantagem.
“O Palmeiras tem estratégias para os 90 minutos de jogo. Se a gente sai jogando e faz 1 a 0 a gente joga de um jeito. Se não, a gente muda a estratégia. As atletas têm compreendido muito isso e colocam em prática. Hoje, o Palmeiras sabe jogar pressionando em bloco alto, mas também tem jogos que vamos rodar mais a bola para atrair o adversário, conquistar espaço entre as linhas, e atacar em profundidade. A gente se adapta conforme a necessidade do jogo”, afirmou o treinador às Dibradoras.
“Contra Cruzeiro e Grêmio, enfrentamos uma linha de 5. Aí precisa paciência, não pode ter pressa, mas a bola precisa andar rápido. É a bola que corre”, diz ele, repetindo um dos conceitos da sua forma de jogar.
Até aqui, está tudo dando certo, e o Palmeiras assumiu a liderança do campeonato na última semana. Mas, no domingo, às 20h (no Parque São Jorge, transmissão da Band), virá o principal desafio neste início de temporada: enfrentar o maior rival e atual campeão brasileiro, Corinthians.
Todo mundo sabe que esse é o “time a ser batido” por tudo o que conquistou nos últimos cinco anos (inclusive o bicampeonato brasileiro e o bi da Libertadores). Para o Palmeiras, ainda mais, já que foram 5 confrontos com o Corinthians em 2020, sendo três vitórias do time alvinegro (incluindo uma por 3 a 0 na semifinal do Brasileiro) e dois empates.
“Eu seria louco se eu dissesse que é só mais um jogo. É mais um jogo, porém é um dérbi. Envolve muita coisa. Para nós, vencer esse jogo é muito importante, porque além de vencer o rival, a gente se mantém na liderança e abre vantagem sobre ele. Isso é importante para os nossos objetivos na competição”, pontuou Belli.
Inclusive, olhando para os números, para os elencos e para o desempenho dos dois times em campo, dá para perceber que o Palmeiras nunca esteve tão preparado para este confronto. “Acho que o Palmeiras nunca esteve tão forte. A gente está crescendo, sabemos que nossa equipe vai oscilar, mas que vamos crescer mais”.
Forma de jogar
Ricardo Belli começou a trabalhar no Palmeiras no meio da temporada de 2019 (aliás, no fim, mais precisamente nas semifinais da Série A2 do Brasileiro) para substituir Ana Lúcia Gonçalves, treinadora até então. Ele tinha acabado de começar seu primeiro trabalho no futebol feminino com a equipe sub-18 do Palmeiras.
Antes disso, Belli acumulou experiências como auxiliar e técnico de equipes de base masculinas, chegou a ir para Portugal e cursou uma das licenças da UEFA, fez mestrado em Treinamento Desportivo na Universidade de Coimbra e voltou pronto para aplicar suas ideias.
O futebol feminino talvez tenha sido o melhor lugar pra isso. “Talvez pela falta de formação, que ainda é um problema no futebol feminino, mas percebo que elas têm um interesse muito grande em aprender e conhecer o jogo. O futebol feminino está vivendo uma transição e uma oportunidade de fazer um jogo muito coletivo, que potencializa o individual. Diferente do masculino no Brasil, que tinha o individual forte, o talento que resolve o jogo”.
É verdade que quem vê o Palmeiras jogando hoje vê um time com características bem diferentes da do de 2020. Mas isso não se deve a uma mudança de modelo de jogo, segundo Belli. É uma mudança do perfil de jogadoras disponíveis – afinal, o clube contratou 13 reforços para esta temporada.
toco y me voy palestrino. pic.twitter.com/8Ny8OxoduJ
— rústico (@elCeroOcho) April 25, 2021
“O modelo de jogo depende do modelo de jogadora. Ano passado, nós tínhamos jogadoras com características diferentes. Mas a minha ideia sempre foi ter um time que goste da bola, mas que tenha entendimento bom de espaço, uma leitura boa de jogo. A gente busca o controle do jogo por meio da posse e do espaço. O que muda um pouco são as características das atletas, temos uma equipe mais agressiva e mais veloz. Hoje o Palmeiras tem elenco para fazer trocas e manter o nível de jogo”, avaliou Belli.
Em algumas oportunidades quando enfrentou o Corinthians no ano passado, o Palmeiras teve uma postura mais defensiva, se fechando para tentar atrapalhar as chegadas do Corinthians ao ataque. A aposta na estratégia de contra-ataque rápido foi, segundo o treinador, porque aquele grupo tinha essa velocidade na transição como característica. Mas com o time atual, a ideia dele é outra.
Na divulgação da escalação do Palmeiras, o desenho tático da equipe vem como se o time jogasse com três zagueiras. Na prática, isso não tem acontecido, já que Thais aparece mais como volante ou então pelos lados, mas só desce em linha com as defensoras na hora da saída de bola. Há uma explicação.
“A gente vai jogar com três zagueiras pra se defender se houver necessidade. Mas como os jogos não estão pedindo isso na fase defensiva, ela (Thais) nao está fazendo. Pra mim, na fase defensiva, a equipe tem que ser sólida. Porém, na fase ofensiva, eu quero uma equipe fluida em campo. Varia bastante na fase ofensiva. Nós vamos jogar contra o Corinthians domingo, e o Corinthians não sabe como o Palmeiras vai jogar”, disse o técnico.
“Quero que a minha equipe tenha mobilidade no ataque, então a gente joga dentro de um sistema que se transforma durante a partida. A equipe que tem muita liberdade pra criar dentro dos espaços que o jogo oferece. Elas são livres pra se movimentarem no campo, para enxergarem os espaços no jogo. E tudo isso é treinado. A gente incentiva e estimula no treino para que elas tenham a capacidade de decidir na hora”.
Coletivo potencializa o individual
Um dos principais destaques do Palmeiras na temporada é a atacante Bia Zaneratto, que vai disputar pela primeira vez um dérbi no domingo. Mas é difícil dizer em qual posição ela tem jogado no time. Meia de origem, Bia se tornou centroavante durante os tempos em que atuou na Coreia do Sul (e assim joga na maioria das vezes na seleção brasileira, onde também já atuou como ponta), mas no Palmeiras ela joga com liberdade pra flutuar.
“Hoje o Palmeiras tem a Bia, mas o Palmeiras não joga para a Bia, é a Bia que joga para o Palmeiras. Por isso ela tem jogado muito. É o jogo coletivo que favorece o individual”, disse Belli.
Quando perguntado em qual posição Bia joga no time dele, ele fez uma comparação com Lionel Messi no Barcelona. Mas, torcedores, CALMA! Não é uma comparação entre os dois, mas entre as funções que eles desempenham para o time.
“Em que posição o Messi joga? Ele às vezes aparece como ponta, mas vai vir muito pra dentro como meia, ou centroavante no meio dos zagueiros, vai se movimentar muito. É difícil falar onde ele joga. É assim com a Bia também. Eu não sei o nível que ela vai chegar, me surpreende a cada dia. E tem muita margem para continuar evoluindo”.
Pequena aprendiz
E não são só as jogadoras do Palmeiras que têm tido boa compreensão das ideias de jogo de Ricardo Belli. Ser filha de um técnico de futebol tem sido uma vantagem para Luísa, que começou na escolinha recentemente e já chega em casa cheia de dúvidas para o pai.
“Na idade dela, é aquilo: as crianças correm para onde está a bola. Aí acaba o treino, ela vem frustrada conversar comigo. Pediu para que eu a treinasse aos domingos porque ela quer jogar no meu time”, disse o pai, orgulhoso. E ele não perde a oportunidade de ensinar seus conceitos para a menina.
“Um dia a gente estava jogando e ela estava cansada, correndo muito atrás da bola. Eu disse: ‘vou chutar a bola ali na parede, você corre para lá. Vamos ver quem vai chegar primeiro’. .E, claro, a bola chegou antes. Aí expliquei para ela que, por isso, é a bola que corre num jogo de futebol”.
A iniciativa de anotar as regras aprendidas em uma tarde com o pai foi da própria Luísa, que também adora mexer nas pranchetas dele. Pelo visto, o futuro é promissor – o dela e o do Palmeiras.