Há pouco mais de dez anos, em 2007, a seleção feminina de futebol chegava a uma final de Mundial enfrentando a fortíssima equipe alemã. A vitória não veio, mas aquele time, que contava com Marta e Cristiane vivendo o auge de suas carreiras, deixou um recado importante para o país ao final do jogo: “Brasil, precisamos de apoio”.
Este foi o apelo das atletas para que as pessoas olhassem com mais carinho para a modalidade. Imagina você estar na final de uma grande competição, a principal da sua modalidade, e ainda ter que pedir apoio para o seu país?
De lá pra cá, mudanças aconteceram, mas a passos lentos e com investimentos menores do que o necessário. O legado daquela geração talentosa foi pouquíssimo aproveitado, mas o tempo parece nos dar uma nova chance de massificar o esporte mais tradicional do país também entre as mulheres.
Este ano, a história recente do futebol feminino passou a ser percebida de uma maneira diferente. Vivemos dias especiais onde as pessoas estão, enfim, se conectando com a modalidade da maneira que ela merece. Sem sombra de dúvidas, o ano de 2019 representa uma transformação na maneira de ver, praticar, pesquisar e consumir o futebol das mulheres e esse momento foi esperado por muitos anos.
Ex-atletas que marcaram história e lutaram pelo esporte, por anos foram esquecidas, hoje recebem homenagens e contam suas histórias para o público, os estádios passaram a receber jogos femininos em campeonatos nacionais, regionais e de base, hoje é possível acompanhar jogos na tevê aberta ou via streaming, a cobertura de imprensa é muito mais ampla, ecoando notícias sobre a modalidade em portais, sites de busca e jornais.
O público clama pelo futebol feminino. Eles desejam saber mais sobre a história da modalidade, conhecer as jogadoras, praticarem o esporte e querem torcer por elas durante um ano inteiro na arquibancada. E é no embalo dessa força que iniciativas começaram a surgir para ampliar as vozes, principalmente de meninas e mulheres que por muito tempo viveram sem referências femininas para se espelharem.
Na teoria
É muito difícil fazer com que as pessoas se interessem por aquilo que não conhecem. Como exigir que algo seja desejado, assistido ou praticado se não há informação, divulgação ou mesmo dados básicos sobre seu passado, heróis e conquistas?
É por isso que recentemente, uma força-tarefa conduziu uma iniciativa bem importante que mobilizou dezenas de jornalistas, blogueiros e apaixonados pelo futebol, em São Paulo. A primeira edição da Editatona #WikiFutFeminino aconteceu no Museu do Futebol com o intuito de fornecer conteúdo de qualidade e confiável sobre a modalidade.
Durante um dia inteiro, voluntários abasteceram a internet com novas informações sobre as atletas e corrigiram os dados equivocados que estavam no ar. Foram criados 22 novos verbetes e outros 95 artigos da Wikipédia foram editados sobre as personalidades do futebol feminino no Brasil e há registros de que esse conteúdo já teve mais de 1,6 milhões de visualizações
Com tanta informação disponível nas redes, os números mostraram um crescimento exponencial nas buscas pelo futebol feminino no Google. No domingo em que a seleção brasileira jogou contra a Jamaica, a atacante Cristiane fez três gols e resolveu a partida para o Brasil. Isso fez com que a busca pelo nome dela no Google tivesse um aumento de 7.800% – cresceu oitenta vezes se comparado ao sábado, considerando a procura feita no site no Brasil.
Já as principais perguntas feitas ao Google desde o fim do primeiro jogo da seleção contra a Jamaica mostraram o interesse das pessoas em saber mais sobre a história do futebol feminino no Brasil. A que mais apareceu foi “quando é o próximo jogo da seleção feminina”, mas há outras buscas, como:
– Quantas Copas tem a Seleção feminina de futebol?
– Quando começou o futebol feminino no Brasil?
– Quando surgiu o futebol feminino no Brasil?
A iniciativa foi apoiada pelo Itaú e a parceria entre a Wikipedia e o Museu do Futebol, foi fundamental para que o trabalho coletivo fosse realizado. O próprio Museu vem contando brilhantemente a história da modalidade e abrindo espaço para exposições, debates e eventos em torno do tema. O trabalho mais recente e que pode ser conferido até outubro na Praça Charles Miller é a exposição “Contra-Ataque! As Mulheres do Futebol” que remonta a trajetória de derrotas e vitórias da modalidade, que já chegou a ser proibida no Brasil e sempre sofreu com o preconceito, o descaso e o amadorismo.
Diante dessa demanda crescente, é importante que os resultados das buscas tragam as informações mais atualizadas e relevantes sobre a história do futebol feminino e das atletas que começaram tudo isso no Brasil. O projeto da Editatona na Wikipédia com certeza contribuiu muito para que as pessoas realmente encontrassem o que estavam buscando a esse respeito.
Na prática
Todos esses números demonstram que tem muita gente querendo saber, ver e acompanhar mais de perto o futebol das mulheres no Brasil. E mais do que isso: elas também passaram a se interessar em praticar o esporte.
Recentemente recebemos mensagens de seguidoras que demonstraram de maneira muito clara como o futebol feminino as encantou, mas que sofreram com o afastamento imposto pela sociedade e pela falta de oportunidade.
Uma delas nos pediu indicações de times de futebol com mulheres acima dos 50 anos para que pudesse jogar e a outra mensagem veio de uma menina de 13 anos que nos revelou desejar praticar futebol desde pequena, mas que a família dizia a ela que era um esporte masculino. Sem saída, ela obedeceu e esqueceu o futebol por seis anos, mas agora seu interesse voltou e ela quer voltar a praticar, mas que não sabe como dar essa notícia aos seus pais.
Ainda são poucas as ofertas de escolinhas e coletivos focados em futebol feminino no país para que as garotas possam treinar e se desenvolver como atletas. Meninas ainda precisam jogar ao lado de meninos durante a infância se quiserem praticar o esporte que amam. E ainda existem aquelas que não encontram times para jogar desde cedo e somente aos 15 anos começam aprender, de maneira tardia, os fundamentos básicos do futebol. Elas precisam driblar barreiras, preconceitos, falta de oportunidades desde cedo e essa luta é muito dolorosa e cansativa.
E se esses problemas são tão presentes do dia a dia de meninas que ainda têm alguma condição de praticar o esporte, imagina o que acontece com meninas carentes, que vivem em condições adversas e, ainda assim, tem o desejo de chutar uma bola?
Conhecemos recentemente o projeto Karanba, fundado em 2006 no Rio de Janeiro. Usando o futebol como agente transformador da sociedade, o Karanba ajuda no desenvolvimento pessoal e educacional de crianças e jovens carentes, vindos de comunidades.
A sede do Karanba está localizada em Vista Alegre (São Gonçalo), uma das áreas mais pobres do Brasil, com cerca de 1,2 milhões de habitantes. O projeto tem mudado a vida de quem vive ali e, por meio do esporte, engaja grande parte da população local, especialmente as meninas. Uma das ações oferecidas por eles tem o nome de “Cinderella”, inspirado na história da personagem infantil que perde seu calçado e espera pelo príncipe encantado para mudar sua vida.
E usando esse contexto, eles propuseram uma narrativa diferente para atrair as meninas para o esporte. Em parceria com algumas escolas públicas, o Karanba convocou as adolescentes para uma sala de aula e exibiu o clássico da Disney. Ao final do filme, eles entregaram uma caixa de calçado para cada uma das participantes e, em vez de ganharem uma bota ou um salto alto, ali estava apenas um pé de um par de chuteiras.
A proposta era fazer com que elas fossem atrás de seus sonhos e o Karanba as desafiou a encontrar o outro par de chuteiras na sede do projeto, propondo assim que elas experimentassem o programa inicial do futebol. Em apenas uma semana, 60% das meninas foram buscar seu outro par de chuteiras e 40% dessas participantes se juntaram ao time.
Além das atividades diárias, o Karanba – com o apoio do Itaú – tem proporcionado para meninos e meninas a oportunidade de conhecer outros países por meio do esporte – como Noruega, Suécia e Dinamarca -, onde eles já participaram de campeonatos, como a Copa N° 1 (Frederikshavn), Copa Gothia (Gothenburg) e Copa Noruega (Oslo).
Com iniciativas como essas, hoje é possível vislumbrar dias melhores e um futuro promissor para a modalidade no país. As meninas podem, de maneira mais natural, calçar chuteiras e desbravar gramados pelo mundo afora. Elas podem também se identificar com jogadoras do passado e do presente, se espelhar e sonhar com o reconhecimento.
O legado que há tanto tempo ficou escondido surgiu com força total em 2019, mostrando todo o potencial que o futebol feminino tem e desperta nas pessoas. A luta das pioneiras não foi em vão. Elas abriram os caminhos para que novas histórias sejam contadas e cabe a todos nós a missão de nunca mais ignorá-las. Vamos todos juntos sentir orgulho de falar #EuTorçoPorTodas não só antes e durante, mas também depois dos grandes campeonatos. E bora pro próximo!
*Conteúdo produzido em parceria com o Itaú