O Sesi Bauru está pela primeira vez na semifinal da Superliga feminina após eliminar o Sesc Rio de Janeiro em uma partida histórica – o time comandado por Bernardinho nunca havia ficado fora desta fase do campeonato desde que foi criado há 22 anos. Mas o assunto dos últimos dias não foi o resultado em quadra. A vitória “inesperada” da equipe de Bauru fez reacender a discussão sobre sua personagem mais emblemática: a ponteira Tifanny.
É interessante notar que Tifanny não era mais uma questão há algum tempo na Superliga. Ninguém falava mais de seu desempenho, nem da suposta “irregularidade” de ter uma atleta transexual em quadra – ainda que todos os órgãos competentes tenham aprovado a participação dela na competição justamente por cumprir todos os requisitos para isso. Mas bastou o time dela vencer e eliminar um dos favoritos ao título para que voltasse à tona a discussão a respeito da atleta.
+1ª trans na Superliga, Tifanny vê preconceito diminuir: ‘Tempestade passou’
Bernardinho deixou escapar um “um homem…é f***” durante a partida, mas reconheceu o erro após a repercussão do ocorrido. Aí nesta quinta-feira, foi a vez da ex-jogadora Ana Paula se manifestar mais uma vez contrária à presença de Tifanny que, na visão dela – visão essa contrária a todas as opiniões de especialistas do esporte que avaliaram e aprovaram a jogadora na Superliga – não é adequada no esporte feminino.
Quanto mais Tifanny ganhar, mais vai ter gente aparecendo para dizer que ela não deveria estar ali, que não pode jogar com mulheres, que sua presença é prejudicial ao esporte feminino. Enquanto seu time não estava no topo, esqueceram todos os preconceitos e as “vantagens” que ela supostamente teria. Mas bastou uma eliminação de um dos favoritos ao título – que perdeu dentro de quadra para um time todo, diga-se, e não para uma jogadora só -, para que resgatassem todos os “argumentos científicos” que dezenas de leigos inventam para banir Tifanny do esporte.
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Vamos nos ater aos fatos – ou melhor, aos números – para entender essa “potência extraordinária” da ponteira do Bauru. Quando olhamos para as maiores pontuadoras da Superliga, Tifanny não está na lista das cinco jogadoras que se destacam nesse quesito. Katarzyna Skowronska, a oposta polonesa do Barueri, tem 520 pontos e lidera a lista com folga; depois vem a americana Destinee Hooker, com 385 pontos, depois Ivna Colombo, do Balneário Camburiú, com 358 pontos, seguida por Nicole Fawcett, do Praia Clube, com 345, e Bruna Honorio, do Minas, com 323.
Nas quartas-de-final da Superliga feminina, aliás, Tifanny também não foi a maior pontuadora. No jogo específico contra o Sesc, a ponteira até foi a que mais pontuou com 27 pontos. Mas nesta mesma rodada, chamou muito mais a atenção a pontuação de Hooker pelo Osasco. Foram 34 pontos anotados pela americana – que, apesar disso, não virou “o assunto” da Superliga na semana. Aliás, Hooker fez mais de 20 pontos em todos os jogos da série melhor de três das quartas-de-final, enquanto Tifanny foi anulada na segunda partida, pontuando apenas 8 vezes. Então, será que ela é mesmo tão “superior” assim?
É importante observar também, que as jogadoras que mais pontuam são, normalmente, as que recebem mais bolas. Com mais oportunidades de atacar, elas têm, consequentemente, mais possibilidades de pontuar e acabam se destacando. Sempre foi assim com Tandara, por exemplo, que se destaca temporada após temporada nesse quesito – neste ano ela está atuando na China. Está sendo assim com Hooker, do Osasco, com Skowronska, do Barueri, e com todas as jogadoras que lideram a lista das maiores pontuadoras do campeonato. De novo, Tifanny não está entre elas. Então por que se questiona tanto sua “superioridade” em relação às rivais?
No ano passado, o Bauru não passou das quartas-de-final da Superliga e, apesar de ter se falado muito sobre a presença de Tifanny no início da temporada, na etapa final, quando seu time não conseguiu classificação, ninguém veio reclamar das “vantagens” da jogadora. É só na vitória que se lembra disso. Então quando o time de Tifanny perde e é eliminado, ela não tem nada a ver com isso, mas quando ele ganha, aí é porque a ponteira realmente leva vantagem? Não dá para entender essa lógica.
Em meio a isso tudo, é preciso ressaltar a coragem de uma mulher que, além de enfrentar todos os preconceitos da sociedade por ser uma transexual – e é preciso lembrar que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo e onde 90% deles(as) sobrevivem da prostituição – teve coragem para quebrar barreiras também no esporte.
Assim como as mulheres foram proibidas de praticar algumas modalidades por décadas e foram historicamente afastadas do esporte por serem mulheres, as pessoas transexuais são excluídas, não só do esporte, como do convívio social até hoje. Quando se fala em “criar uma liga trans” para Tifanny jogar, ignora-se o local ocupado pelos trans na sociedade: nenhum. O único lugar onde eles(as) são parcialmente bem-vindos é a prostituição, como mostram as estatísticas.
Quantos transexuais vocês conhecem que praticam algum esporte? Então como é possível falar em “ligas de trans” para acolher Tifanny? Uma decisão dessas representaria, na prática, o banimento dela do esporte. Por outro lado, a inclusão dela no esporte de alto rendimento inspirou jovens trans a buscarem esse espaço, como aconteceu com Guilherme, um homem transexual aluno de uma faculdade de comunicação que no ano passado brigou pelo seu direito de disputar os jogos universitários – e conseguiu.
Tifanny é uma mulher que joga vôlei, ponto. Seu ataque é tão forte quanto o de Tandara, o de Hooker, o de Skowronska. Tão forte quanto o de uma mulher forte, ponto. De resto, vamos focar a conversa nessa Superliga que já está histórica por ter semifinais inéditas e pode ter um campeão diferente de novo – em 2018, pela primeira vez em mais de uma década a hegemonia Osasco e Rio de Janeiro foi quebrada, quem sabe 2019 não traga um novo campeão mais uma vez?