Maternidade no futebol: o que mudou nos últimos anos?

Cristiane a Sole James com seus filhos. Fotos: Paula Reis/CRF e Guilherme Ribeiro

Fotos: Paula Reis/CRF e Guilherme Ribeiro

É difícil ter um fã brasileiro do futebol feminino que não conheça o Bento, que de vez em quando espalha fofura no auge dos seus 3 anos pelos estádios do país para torcer pela mamãe artilheira Cristiane Rozeira, centroavante do Flamengo. Outra atacante que ganhou uma mini torcedora foi a argentina Sole Jaimes, também atacante do Rubro-Negro que deu à luz Aurora, em janeiro. Fora do Brasil, a última Copa do Mundo também mostrou que aquele cenário em que jogadoras esperavam o fim da carreira ou a aposentadoria do futebol para viver a maternidade vem mudando. Nove atletas apareceram com seus filhos ainda pequenos no colo durante o Mundial da Austrália e Nova Zelândia, em julho de 2023.

Tornar-se mãe durante a carreira no esporte ainda é uma decisão difícil para a maioria das atletas. No futebol feminino, porém, as atletas começam a ganhar algum respaldo nos últimos anos por meio da profissionalização da modalidade e de regras estipuladas de entidades organizadoras, como a Fifa, para promover uma maior proteção às jogadoras durante a gravidez e o início da maternidade, além de alternativas para clubes conseguirem lidar melhor com as ausências em consequência desse motivo, como poderem registrar uma atleta em período de janela fechada caso ela vá substituir outra em licença maternidade, como fez o Cruzeiro em 2022.

Uma mudança de cenário que passa por vários fatores, desde a profissionalização da modalidade ao aumento da visibilidade da comunidade LGBTQIA+ e das alterações na legislação para abranger famílias de diversos formatos. “O que tem mudado é que a gente tem enfrentado o mundo, o preconceito, as opiniões que não nos trazem nada de produtivo na nossa vida. A gente tem deixado de ter medo e sonhado em ter a nossa própria família, ter os nossos filhos e mostrar para todo mundo que, sim, podem ser dois pais ou duas mães. A gente tem mostrado para todo mundo que é possível ter esse amor completo”, analisa Cristiane, que é casada com Ana Paula Garcia, a outra mamãe do Bento.

Em setembro de 2020, o anúncio de que Cristiane teria um filho com sua esposa movimentou os noticiários do futebol. “Na época, tiveram aqueles comentários mais maldosos, perguntas mais estúpidas, digamos assim, mas é algo que infelizmente a gente já imaginava”, lembra a atacante. Mas depois veio a convicção do impacto positivo de compartilhar a notícia. “Foi muito importante ter anunciado que a Ana estava grávida. Isso fez com que outras atletas enxergassem dessa maneira linda e bonita como a gente tem visto. A coragem de ser mãe, de ter uma família, de ser atleta no esporte feminino em uma relação com outra mulher e de mostrar essa felicidade toda para todo mundo”, completa Cris.

Família de diversos formatos

Pela notoriedade que a Cristiane tem no esporte brasileiro e mundial, a notícia do primeiro filho dela com sua esposa despertou curiosidade entre alguns, inspiração entre outros. “A gente acabou percebendo que outros casais, tanto de amigas nossas próximas, quanto atletas dentro do futebol, começaram a se ver sendo mães e perguntando pra gente como foi o processo, o que eu precisei fazer, já que a Ana usou os meus óvulos, quando começou, quem foi o médico”, conta a atacante.

Cris e Ana passaram pelo processo de fertilização in vitro, em 2020, para a chegada do primeiro filho. “Ambas passaram em avaliação médica, mas já sabiam que a Cris iria fazer a fertilização in vitro. Então, realizei toda a avaliação da Cris e da sua reserva ovariana para depois iniciarmos  a estimulação ovariana, as aplicações de injeções para crescer os folículos e realizar a coleta dos óvulos”, explicou Vinicius Bassega, ginecologista e especialista em reprodução humana que fez o tratamento delas. Durante o processo, o casal selecionou o doador de sêmen de um banco internacional para fertilização do óvulo da atleta. Após a fecundação, a equipe médica selecionou o melhor embrião – através da avaliação morfológica – e fez a transferência embrionária para o útero da Ana. 

Se tratando de uma atleta profissional de alto rendimento, o acompanhamento precisou ser realizado com a parceria do ginecologista e dos profissionais de saúde da FIFA e do Comitê Olímpico Brasileiro. “Os desafios iam um pouco além por ela ser atleta. Eu tive que certificar que as medicações que eu havia prescrito não causariam nenhum dano profissional pra ela, sendo necessário solicitar autorização dos órgãos responsáveis. Além disso, tivemos que programar e conciliar o tratamento com o calendário de viagens e o período que  a Cris teria que restringir a atividade física”, explicou Vinicius Bassega.

Licença-maternidade às jogadoras

Em agosto do ano passado foi a vez da Sole Jaimes, atacante do Flamengo, compartilhar que estava grávida do primeiro filho com a companheira Kelly Chiavaro, goleira do Santos. “Faz muitos anos que estou planejando isso. Hoje, tomei a decisão de dar uma pausa no futebol”, publicou a argentina, com 34 anos na época, nas redes sociais. Na maioria das vezes, os receios que cercam a maternidade adiam essa decisão, ainda mais para atletas que passam pelas mudanças do corpo decorrentes da gravidez. Como retomar a forma física? Quando será possível retornar aos treinos? E às competições?

“Queríamos ter um parto natural para que ela (Sole Jaimes) pudesse voltar aos treinos em um mês, mas precisou ser uma cesárea de emergência, com complicações. Ela perdeu 11 quilos, mas agora já está liberada para trotar”, contou a canadense Kelly, no fim de fevereiro, em entrevista ao ge. A pequena Aurora nasceu em 25 de janeiro deste ano, com filha e mamães saudáveis e felizes. Mas o retorno de Sole aos gramados precisou esperar mais do que o planejado inicialmente.

Acontece que todos os grandes clubes da Série A1 do Campeonato Brasileiro atualmente contam com regime de CLT (carteira assinada) para todas as suas jogadoras. Sole Jaimes, por exemplo, recebeu licença maternidade de seis meses do Flamengo, com previsão de retorno em julho. Vale lembrar que foi apenas a partir de 2020 que o Corinthians, referência da modalidade no continente sul-americano, passou a ter vínculo profissional com todas as suas atletas, semelhante aos contratos dos jogadores de times masculinos dos clubes por todo o país.

Chamada de “Mãe da Fiel”, Tamires foi a única jogadora da Seleção Brasileira que era mãe nas duas últimas Copas do Mundo, em 2019 e 2023. Mas antes mesmo de ser convocada pela primeira vez para vestir a amarelinha, ela chegou a parar de jogar duas vezes. Quando o filho Bernardo nasceu, em 2009, Tamires teve a certeza de que o futebol tinha acabado para ela. Somente em 2011 ela conseguiu voltar plenamente à ativa e, dois anos depois, foi chamada pela primeira vez para a seleção principal. Um perrengue que não deve mais ter espaço na elite do futebol feminino.

Portanto, uma maior profissionalização do futebol feminino implicou diretamente em resguardar direitos trabalhistas às jogadoras, além de propiciar uma maior estabilidade financeira. São avanços que passam também pelo aumento da visibilidade e da valorização da modalidade no Brasil e em vários outros países. E que depende do respaldo das entidades organizadoras do esporte. 

Foi apenas a partir de janeiro de 2021 que a Fifa estabeleceu licença-maternidade para as jogadoras profissionais. A entidade estipulou que clubes que jogam internacionalmente, portanto sob a jurisdição dela, devem pagar licença-maternidade no valor de pelo menos dois terços do salário por pelo menos 14 semanas, das quais oito são após o nascimento, e não podem demiti-las nesse período, assim como tem o dever de reintegrar as atletas e lhes fornecer suporte médico e físico adequado no retorno ao trabalho.

Lyon é obrigado a pagar licença-maternidade

O caso da islandesa Sara Bjork Gunnarsdóttir é emblemático. A meio-campista travou uma batalha judicial contra o Lyon para receber o salário integral durante toda a gestação até entrar em licença maternidade. Sara descobriu a gravidez em março de 2021, quando era jogadora do maior campeão da Champions League feminina com oito títulos e considerado referência no futebol feminino mundial. Mas, segundo o processo, ela passou a receber do clube apenas uma parte do salário, correspondente ao seguro social pelas leis francesas, depois de ir para a Islândia fazer o acompanhamento da gestação perto da família.

Ragnar nasceu no fim de 2021, Sara voltou aos treinos no Lyon em janeiro de 2022 e a jogar em março. Mas a bicampeã da Champions com o Lyon relatou que recebeu, por meio do seu empresário, uma ameaça de que não haveria mais lugar para ela no clube se ela resolvesse levar o caso à Fifa. Não adiantou. No processo, a defesa de Sara alegou que o regulamento da Fifa de 2021 garantia às jogadoras grávidas o pagamento integral dos salários. Após um ano e meio de processo, o Tribunal de Futebol da Fifa condenou o Lyon a pagar 82. 094,82 euros à jogadora, valor referente à diferença entre os salários devidos e o que foi efetivamente pago no período.

“Eu tive direito ao meu salário integral durante a gravidez e até o início da licença maternidade, de acordo com as regras da Fifa. Isto fazia parte dos meus direitos, e não pode ser questionado, mesmo por um clube grande como o Lyon. Essa vitória é maior do que eu. É como uma garantia de segurança financeira para todas as jogadoras que quiserem ter uma criança durante sua carreira. Não é um “talvez” ou uma incerteza”, comemorou Sara Björk, ao site The Players Tribune. Desde a temporada 2022/2023, a meia defende o Juventus, da Itália.

Outra regra da Fifa que passou a valer desde janeiro de 2021 foi uma exceção ao prazo das duas janelas anuais de transferências internacionais: uma atleta do futebol feminino pode ser registrada em período de janela fechada caso vá substituir outra jogadora em licença maternidade. E o primeiro clube a aplicá-la foi o Cruzeiro, ao contratar a atacante Fernanda Tipa em outubro de 2022, um mês depois da Pâmela Faria dar luz à pequena Sarah e estar em licença maternidade.

Na última Copa do Mundo, a presença de várias atletas mães e ainda protagonistas de suas seleções – caso de Alex Morgan, Julie Ertz e Crystal Dunn, todas titulares nos EUA, Katrine Gorry, Tameka Yallop, meio-campistas da Austrália, e a lateral Amel Majri, da França – é a prova de que o cenário está mudando. E como nos disse lá em Sidney a ex-jogadora da Nova Zelândia Kirsty Yallop (mãe da filha de Tameka), “não há nada que uma mãe não possa fazer” – que bom que o futebol finalmente entendeu isso.

Dúvidas sobre a Fertilização in vitro (Fiv)?
O ginecologista e especialista em reprodução humana Vinicius Bassega responde

O que é a Fertilização in vitro e como ela funciona?
É um tratamento considerado de alta complexidade dentro da reprodução assistida, já que a fertilização, ou seja, a junção de um óvulo e um espermatozóide, vai ocorrer fora do organismo da mulher, dentro de um laboratório de reprodução assistida. 

Como funciona o tratamento? 
A mulher passa por um período de estimulação ovariana, em que usa diariamente, de 10 a 11 dias, medicações hormonais para estimular o crescimento dos folículos (estruturas que estão dentro dos ovários). Durante esse período, a equipe médica faz controles por ultrassons via transvaginal para avaliar o crescimento dos folículos até chegar o momento adequado para fazer a coleta dos óvulos, o que chamamos de aspiração folicular. Nesse dia da coleta dos óvulos, é feita também a junção dos óvulos considerados maduros ao semen, que pode ser utilizado do parceiro ou de um doador, caso seja indicado. Após 5 a 7 dias da fertilização do óvulo com o semen, a equipe médica acompanha o desenvolvimento embrionário. Todos os embriões que chegarem ao estágio de desenvolvimento embrionário final, que nós chamamos de blastocistos, poderão ser transferidos, congelados ou fazer a biópsia embrionária, que é uma análise genética desse embrião. 

Quando a Fiv é indicada?
Existem várias indicações. Mas as principais são mulheres que têm bloqueio total ou parcial das trompas, ou seja, das tubas uterinas; mulheres com idade reprodutiva avançada; pacientes com endometriose; pacientes que fizeram toda a pesquisa de investigação de infertilidade e não encontraram nenhuma indicação de alteração dos exames, o que chamamos de infertilidade sem causa aparente. Em casos em que o parceiro tem alteração na contagem dos espermatozóides, na contagem ou mesmo na morfologia desses espermatozóides e que podem impactar em chances de gravidez. Pacientes que têm distúrbios da ovulação,  com síndrome de ovário policístico ou que não tem uma menstruação regular também entram nessas principais causas. Além disso, pode ser indicado para casais homoafetivos, seja de homens ou mulheres, e para pessoas transgênero. 

Existe limite de idade para fazer a FIV com óvulos próprios?
Não existe uma idade limite. Toda mulher que tem ciclos ovulatórios, ou seja, que tem folículo para fazer a estimulação ovariana pode tentar realizar o tratamento. Mas é importante saber que, com o avançar da idade reprodutiva, essas chances de gravidez vão diminuindo, mesmo fazendo a fertilização in vitro. Pensando em relação a chances de gravidez no futuro, é muito melhor fazer o tratamento até os 35 anos. Pacientes mais jovens, por exemplo, têm cerca de 50% de chances de gravidez por tentativa, enquanto pacientes acima de 45 anos têm chances de até 1% por tentativa. 

Quais são as precauções da Fiv para uma atleta profissional? 
Como já foi dito, a estimulação ovariana é uma etapa obrigatória para realizar a fertilização in vitro em que usamos medicações hormonais para estimular o crescimento dos folículos. Por isso, é preciso fazer um bom planejamento no calendário, porque a atleta precisa ser supervisionada em relação às medicações que serão utilizadas durante esse período. Outra preocupação é a checagem das medicações em relação ao risco de doping ou não para uma atleta profissional. Além disso, sabemos que durante a estimulação ovariana, principalmente depois do primeiro ultrassom, existe um aumento do volume do ovário em que a paciente é recomendada a restringir a atividade física. Portanto, o planejamento precisa prever na agenda da atleta esse período em que ela não vai poder fazer atividade física. O desafio é conciliar essa etapa do tratamento com um período de pausa na agenda de treinos e competições da atleta.

Qual a probabilidade de sucesso da FIV?
No geral, em torno de 50% de chance por tentativa. Mas muitos fatores podem impactar em relação à chance de sucesso de gestação fazendo a Fertilização in vitro, sendo a idade da mulher quando ela está fazendo o tratamento o principal. 

Qual outra informação uma pessoa interessada em fazer a FIV deve saber? 
Nem sempre a paciente procura o profissional de saúde e existe realmente uma necessidade de fazer a fertilização in vitro. Existem casos que não são necessários o tratamento por Fiv. Mas se for realmente indicado, após passar por uma avaliação com médico especialista, a paciente deve saber que o tratamento deve ser muito individualizado, baseado realmente na reserva ovariana dela, no protocolo que vai ser decidido por esse profissional para ela e que todos os esclarecimentos de todas as etapas desse tratamento será abordado na primeira consulta. Eu sempre ressalto isso, porque vejo pacientes que acabam se comparando com amigas, enquanto o importante é lembrar que cada organismo é de uma forma ou está em um determinado período e o tratamento vai ser desenhado para a reserva ovariano daquela paciente. Nem sempre o melhor protocolo para uma vai ser o melhor protocolo para outra.

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