Foto: Morgana Schuh/Grêmio FBPAO
Grêmio conquistou o primeiro título nacional das categorias de base femininas do clube no último dia 31, após vencer a final sobre o Avaí Kindermann, por 1 a 0, e levantar a taça de campeão da Brasil Ladies Cup Sub-20 no Estádio Jorge de Biasi, em Novo Horizonte (SP). Mas uma denúncia de racismo contra o treinador da equipe, Yura Tittow, roubou a cena naquele dia. Passada mais de uma semana, o Grêmio analisou a situação internamente e decidiu, nesta quinta-feira, demitir o técnico.
E a intenção desse texto é estimular o debate: para além de ações pontuais diante de uma acusação de tamanha gravidade, o que os clubes brasileiros fazem no dia-a-dia para combater o racismo?
O que aconteceu?
Na comemoração do título da Brasil Ladies Cup Sub-20 na terça-feira (31), jogadoras do Grêmio fizeram uma live com chamada de vídeo para outras atletas. Em determinado momento, o técnico do time, Yura, conhecido como Yurinha, participa da chamada e se dirige à zagueira Brito e à goleira Yasmim Paixão, do outro lado da ligação, dizendo: “Liga a luz”. As atletas reagem o chamando de “racista”. Como o vídeo estava sendo transmitido em tempo real, ele foi gravado e circulou pelas redes sociais.
Por meio de nota, o Grêmio publicou que “repudia todo e qualquer ato de natureza racista e discriminatória e está averiguando os fatos para encaminhar internamente as providências cabíveis”. Passada mais de uma semana, o Dibradoras voltou a questionar o time sobre a conduta em relação ao treinador. “A situação segue em análise interna do clube”, respondeu a assessoria de imprensa. Até que, nesta quinta, a comunicação do clube nos confirmou a demissão de Yura.
O treinador se manifestou, por meio de uma publicação no Instagram, nesta semana: “Eu errei. Conversei logo depois do fato diretamente com as atletas e seus familiares me desculpando pelo que ocorreu. Venho agora a público expressar meu mais sincero pedido de desculpas a todos que se sentiram atingidos de alguma forma. Atitudes como essa não condizem com quem eu sou e com o meu pensamento, e entendo que cometi um erro grave em uma situação completamente séria. Os últimos dias têm sido difíceis, mas muito importantes para meu aprendizado e crescimento como ser humano e profissional.”
A demora em o Grêmio publicar um pronunciamento mais ativo causou preocupação e receio de que a estratégia fosse que o caso simplesmente caísse no esquecimento.
O vídeo foi gravado e as atletas que foram ofendidas reagiram logo na sequência de ouvir o insulto, respondendo ao treinador com um sonoro: “Racista”. O incômodo das jogadoras com o seu superior direto ficou evidente a ponto de expressá-lo verbalmente.
Tentemos imaginar a situação das jogadoras agora. Elas são funcionárias do clube, são jogadoras jovens de até 20 anos e cheias de sonhos visando construir uma carreira esportiva. Como elas devem ter se sentido na volta à rotina do clube? Como o Grêmio vem lidando com essas jogadoras? O clube buscou ouvi-las? De que forma? Houve acolhimento?
Questionado pela reportagem, o clube informou que conversou com as duas partes para, além das imagens, ter esclarecimento completo sobre o episódio. “As atletas foram acolhidas pelo departamento jurídico e pelo projeto Clube de Todos, braço institucional do Grêmio que define as políticas de inclusão e contra discriminação de qualquer natureza”.
O Grêmio explicou que a conduta do clube em casos de ofensas raciais envolvendo pessoas ligadas ao time é levar a situação para ser analisada pelo Conselho de Administração em conjunto ao projeto Clube de Todos.
Esse caso aconteceu 20 dias antes do Dia da Consciência Negra, data em que provavelmente vários clubes promoverão campanhas de marketing antirracistas. Visibilidade que é importante, claro. Mas será que basta se afirmar contra condutas preconceituosas – e criminosas – apenas em um dia?
A resposta obviamente é não.
No Grêmio, o projeto Clube de Todos foi implantado em meados de 2019. Desde então, são realizadas palestras e encontros periódicos com os principais agentes que tratam desse tema, de forma interna e externa, buscando conscientizar e atualizar os funcionários, torcedores e a sociedade como um todo, em como proceder em situações de discriminação e injúria racial.
Muitos eventos promovidos pelo tricolor gaúcho também são realizados em parceria com o Observatório de Discriminação Racial no Futebol. Um dos frutos dessa relação é a Cartilha de Combate à Discriminação, produzida também em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e distribuída em ações por escolas do estado.
O importante é que os clubes coloquem em prática maneiras de agir com regularidade e de forma contundente e transformadora na luta contra o racismo, inclusive, nas condutas do dia-a-dia – que muitas vezes são tidas como inofensivas com a “justificativa” de serem apenas brincadeiras, mas que na verdade são atitudes bastante ofensivas e podem gerar impactos graves.
Caso Aranha: episódio de injúria racial que marcou o futebol
Há quase uma década, o Grêmio esteve envolvido por meio de parte dos seus torcedores em um episódio de injúria racial contra o goleiro Mário Lúcio Duarte Costa, apelidado de Aranha, na época jogador do Santos. Após ouvir parte dos 30 mil presentes no Estádio Olímpio, em Porto Alegre, gritarem “macaco” em sua direção, Aranha comunicou o árbitro Wilton Pereira Sampaio, mas o jogo daquele 28 de agosto de 2014 foi retomado e terminou apenas aos 51 minutos do segundo tempo.
Após o episódio, sete pessoas foram identificadas cometendo supostas injúrias contra o goleiro do Santos. Na esfera esportiva, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) decidiu punir o Grêmio com a perda de pontos, o que acarretou na eliminação da equipe da Copa do Brasil, já que o time havia perdido o jogo de ida para o Santos por 2 a 0, pelas oitavas de final.
O Grêmio aderiu a campanhas educativas e dialogou com suas torcidas organizadas para abolir o termo “macaco” de cânticos que historicamente serviram para depreciar rivais colorados. O caso com o goleiro Aranha dentro da casa do Grêmio também impulsionou o clube a começar a estruturar o projeto Clube de Todos para definir institucionalmente políticas de inclusão e contra discriminação, que passou a funcionar de forma mais ativa com o grupo multidisciplinar em 2019.
Mas quando Aranha voltou a jogar na Arena do Grêmio naquele mesmo ano em que foi alvo de xingamentos e ofensas racistas em 2014, o goleiro passou a partida inteira sendo vaiado por uma expressiva parcela da torcida. O que, na avaliação do jogador, “reforçava o preconceito dos gremistas que o atacaram, porque aquelas vaias não eram normais”.
“O que aconteceu comigo é bem comum no Brasil. E todos que se posicionaram de alguma forma contra o racismo tiveram a carreira prejudicada. Foram silenciados e esquecidos”, diz o ex-goleiro Aranha.
— GloboNews (@GloboNews) May 22, 2023
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Anos depois, Aranha afirmou que a sua reação ao racismo naquele jogo, quando tinha 34 anos, antecipou o fim da sua carreira como jogador. “Existe um pensamento racista na elite do futebol, dos cartolas. Eu sabia que (a denúncia) teria consequência. Depois daquele ato, eu percebi uma má vontade comigo. Depois que saí do Palmeiras, que é um clube de ponta no Brasil, eu tinha uma escada grande para descer ainda, vários clubes menores. Mas as portas começaram a fechar e nenhuma negociação ia para frente”, disse ao Brasil de Fato, em 2020.
Ainda assim, Aranha não se arrepende de ter denunciado a violência que sofreu. “Por mais que eu estivesse concentrado no jogo, aquilo não saiu da minha mente. Então, eu decidi tomar aquela decisão e não me arrependo. Paguei com a minha carreira? Paguei. Me arrependo? Não”, comentou o ex-goleiro, na mesma entrevista ao Brasil de Fato, em 2020.
Depois do Santos, Aranha defendeu Palmeiras, Joinville, Ponte Preta e encerrou a carreira no Avaí, onde não teve o contrato renovado no fim da temporada de 2018. Após a aposentadoria, Mário Aranha tornou-se escritor e lançou dois livros que abordam temas raciais no Brasil. O primeiro intitulado “Brasil Tumbeiro” ressalta protagonistas negros da história do país. O segundo chama-se “Patrocínio” e conta a história de José do Patrocínio, uma das principais personalidades brasileiras do século 19, que lutou pelo fim da escravidão.
Núcleo de Ações Afirmativas do Bahia: pioneirismo a ser seguido
Há cinco anos, o Bahia se dedicou a rever a relação com sua torcida, principalmente a de menor poder aquisitivo, que estava afastada do time e excluída dos estádios, na avaliação do próprio clube. O projeto ultrapassou os objetivos iniciais e, gradativamente, assumiu o papel de canal de comunicação de causas humanitárias e razão social. Assim surgiu o Núcleo de Ações Afirmativas (NAA) do Bahia, em janeiro de 2018.
Desde então, o tricolor baiano vem dando visibilidade a temas sociais importantes com campanhas que ganham repercussão nacional. Em 2018, foi um dos cinco clubes das Séries A, B e C a se manifestar no Dia Internacional de Combate à Homofobia. Em 2019, no Dia Nacional da Visibilidade Trans, o Bahia passou a adotar o nome social em todos os procedimentos administrativos do clube. No mesmo ano, o time aproveitou o Dia dos Pais para abordar o abandono paterno no país.
Os assuntos são diversos e já incluíram também assédio contra mulheres, intolerância religiosa, lentidão da demarcação de terras indígenas, causas ambientais. Neste mês, serão realizadas ações no Novembro Negro, como lançamento de camisa.
🏹 Não tem jogo sem demarcação! Esquadrão lança série de ações em homenagem ao #ABRILindígena ➡️ https://t.co/BiwqCD50gM pic.twitter.com/BTyULoJeUt
— Esporte Clube Bahia (@ecbahia) April 16, 2019
O Bahia foi o primeiro time da Série A do Campeonato Brasileiro que montou uma equipe institucional para planejar ações e campanhas de cunho social. Composto por funcionários do clube e voluntários, o Núcleo de Ações Afirmativas procura militantes e especialistas nos temas a serem trabalhados e passa semanas, até meses, debatendo internamente os assuntos. Pioneirismo que usa a visibilidade do futebol para impactar a sociedade e impulsionar ações afirmativas em outros clubes.