70 anos de Maracanazo: ‘Mataram Barbosa em vida’, diz Djamila Ribeiro

Há exatos 70 anos, o futebol brasileiro vivia um dos momentos mais marcantes da sua história. No icônico estádio do Maracanã, uma derrota por 2 a 1 para o Uruguai deu o título da Copa do Mundo de 1950 aos rivais celestes e silenciou as mais de 200 mil pessoas que presenciaram aquilo nas arquibancadas.

Foi ali também que um dos personagens da seleção brasileira em campo começaria a morrer. Uma morte provocada pelo racismo que, por muito tempo, muita gente sequer soube reconhecer. E até hoje, há quem diga que o fato de Moacyr Barbosa, o “escolhido” como culpado pela tragédia chamada de Maracanazo, ser negro é “mera coincidência”.

“Mera coincidência racista. Porque se isso aconteceu só com homens negros, como não enxergar a questão do racismo nisso tudo? É essa lógica racista de desumanizar os sujeitos negros e de responsabilizar todo um grupo se um indivíduo acaba cometendo um erro. Qual goleiro que não toma gol né? Ninguém é infalível. A história do Barbosa é uma história de violência, é uma história racista que só deflagra o quanto esse país é racista. E mais: mostra a naturalização das pessoas brancas em relação ao que aconteceu com ele”, disse às dibradoras a filósofa e escritora Djamila Ribeiro, autora do livro mais vendido do Brasil no último mês, “Pequeno Manual Antirracista”.

O gol de Ghighia não aconteceu exatamente por uma falha grotesca de Barbosa. Assim como os setes gols tomados por Julio Cesar no fatídico 7 a 1 na segunda Copa do Mundo que jogamos em casa também não foram resultado de falhas especificamente dele. Mas no caso de 1950, a derrota teve um “rosto” – e não foi coincidência o fato de que era um rosto negro. Dali em diante, criou-se uma mística dos “goleiros negros”. Uma ideia de que “não se poderia confiar em goleiros negros”. Nada disso é invenção, são frases efetivamente ditas – nem uma, nem duas vezes, não por um ou por outro comentarista do passado, são frases que foram repetidas até pouco tempo atrás.

Foto: Vasco.com.br

“Não tenho confiança em goleiro negro. O último foi Barbosa, de triste memória na seleção”, afirmou o humorista Chico Anysio ao jornal Lance! em 2006, às vésperas da Copa do Mundo, quando o Brasil tinha Dida como goleiro.

“Tá vendo o que eu falei? Goleiro negão sempre toma um gol”, disse o ex-atacante (negro, inclusive) Edílson ao comentar um lance de Jailson, então goleiro do Palmeiras, em participação em um programa na Fox Sports em 2018.

Houve também o fatídico dia em que Barbosa foi barrado de participar de uma matéria ao lado de Tafarel na Granja Comary em 1993. Ele foi a Teresópolis com a BBC para essa gravação, mas foi orientado de que seria melhor não posar ao lado de Tafarel para não dar margem a “comentários” caso o Brasil perdesse o jogo de Eliminatórias da Copa para o Uruguai naquela semana. O ex-goleiro poderia ser acusado de “trazer má sorte”, disseram.

“Eu vejo pessoas do esporte falando ‘goleiro negro não’ na maior naturalidade do mundo. Tem uma autora que eu gosto muito, a Joan Scott, ela fala que quando o indivíduo de um grupo hegemônico comete um erro, o indivíduo é responsabilizado. Quando é de um grupo discriminado, culpa-se todo o grupo. O que fizeram com Barbosa foi uma grande violência, porque você acabou com a carreira dele, culpou o indivíduo por uma derrota, sendo que você tem 11 jogadores, fora os reservas, a comissão técnica”, analisou Djamila.

Não foram poucas as declarações do próprio Barbosa questionando a forma como o elegeram “culpado” por aquela derrota. “No Brasil, a pena máxima é de 30 anos, mas pago há 40 por um crime que não cometi”, dizia ele. Foi uma morte em vida, como bem definiu a filósofa.

“Quando o Julio Cesar toma 7 gols no famoso 7 a 1, ninguém falou que branco não servia para ser goleiro. Não criaram a mística do goleiro branco. Então é uma história de como o racismo opera na nossa sociedade”, disse. “Eu fico pensando quantos meninos negros tiveram seus sonhos ceifados por conta desse racismo, da mística do goleiro negro. Isso também é uma maneira de morte simbólica. Quantos sonhos você matou? Mataram o Barbosa em vida por conta dessa lógica racista. E mataram muitos sonhos também.”

Foto: Reuters

O que veio depois: embranquecimento da seleção

Se antes, sob o mito da “democracia racial” que se propagava no Brasil, havia um pensamento de que a habilidade e o improviso do brasileiro com a bola poderia ter origem justamente nessa “mistura de povos”, depois de 1950 passou a circular a ideia de que a presença de “mestiços” era o motivo que ainda impedia a seleção de ganhar uma Copa do Mundo.

“Era 1954 quando o Conselho Nacional de Desporto (CND) à época, após derrota no Maracanã em 50, pediu para que a confederação (CBF, que na época era CBD) fizesse um trabalho de ‘reeducação dos atletas’, pois segundo ‘pesquisa’ feita por eles, os atletas negros tinham ‘problemas de comportamento’ e não seriam uma boa opção para participarem da próxima Copa, na Suécia. Alegava-se que os negros, ‘porque negros’, não conseguiam se adaptar ao clima sueco. Justificativa que deu início a um processo de embranquecimento da seleção masculina, que reduziu a dois ou três o número de negros no elenco. Esse processo chega até 1986”, explicou Neilton Ferreira Junior, doutorando na área de Estudos Socioculturais, membro do Grupo de Estudos Olímpicos da USP e pesquisador do protagonismo e resistência negra ao racismo no esporte.

Os reflexos de racismo do episódio do Maracanazo com Barbosa prevalecem até hoje. Goleiros negros ainda são minoria e ainda são alvos de comentários como os mencionados aqui. Se na sociedade brasileira já havia se criado “o lugar do negro”, no futebol isso também se repetiu.

“Na minha percepção, esses dois casos refletem o ‘imaginário da raça’ que se constituiu ao longo dos séculos de colonialismo, legando uma fortuna de estereótipos, pré-concepções e crenças que vão localizar o negro não só na condição de subalterno, mas de vilão e de monstro, conforme analisa o filósofo camaronês, Achille Mbembe. Isso vai perseguir as interpretações sobre a trajetória esportiva dos negros e a performance esportiva dos negros no esporte”, afirmou Neilton.

“A partir disso, os meios de comunicação vão reverberar muito esse tipo de noção. E vão prestar um serviço de reverberação de ideias de que o negro é incapaz de assumir a posição de goleiro. E, junto com isso, já se entendia que o lugar do negro seria na prática esportiva e não assumindo outros espaços.”

Quando a discussão sobre o Maracanazo acontece na mídia esportiva sem abordar o racismo que execrou Barbosa nesse contexto, a imprensa assume um papel conivente com o preconceito que o matou em vida.

“As pessoas brancas continuaram legitimando essa violência contra o Barbosa durante muito tempo. Isso precisa ser dito”, finalizou Djamila Ribeiro.

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