Arquivo Dibras: Sem investimento, Brasil teve melhor seleção feminina da história em 2007

Em um mês, o Brasil estreará na Copa do Mundo contra o Panamá; aqui, relembramos a histórica campanha de 2007, com o vice-campeonato mundial.

Tá chegando a Copa do Mundo! Falta exatamente um mês para a seleção feminina estrear no Mundial contra o Panamá, no dia 24 de julho às 8h da manhã (com transmissão da TV Globo, do Sportv e da Cazé TV). E, com isso, preparamos um “Arquivo das Dibras” para resgatar a história da nossa seleção que, mesmo não recebendo todo o apoio e reconhecimento que merecia, parou o Brasil há 16 anos.

Pra começar, pouca gente conhece a história da seleção feminina de futebol. E muitos dos que acham que conhecem a identificam como “o time do quase”. Aquele que sempre bate na trave e termina chorando no final. Talvez isso aconteça porque essa história é sempre contada pela metade – ficamos sabendo os resultados, mas não o que acontece por trás deles.

Por isso, separamos essa matéria para relembrar toda a história de um time que encantou o país – e o mundo – e acabou “perdido” pelo descaso da CBF em preservar as memórias das mulheres.

O Brasil da Copa do Mundo de 2007 goleou os Estados Unidos na semifinal por 4 a 0 em uma exibição de gala e acabou derrotado por 2 a 0 na final contra a Alemanha, na melhor campanha da nossa história na competição. Bora relembrar?

A Copa de 2007

Em 2007, a seleção feminina foi campeã do Pan em uma campanha histórica com 33 gols marcados e nenhum sofrido. A final foi com goleada de 5 a 0 em cima dos Estados Unidos diante de um Maracanã completamente lotado. Em seguida, o Brasil disputaria a Copa do Mundo na China e seguiria distribuindo dribles e gols com o talento de Marta, Cristiane, Daniela Alves, Rosana, e tantos outros nomes que formaram a melhor seleção da história.

É difícil cravar isso no futebol feminino, já que elas nunca tiveram uma grande visibilidade com jogos sendo transmitidos com frequência em TV aberta. Poucos no Brasil tiveram a chance de ver as primeiras edições das Copas (como a de 1999, quando o Brasil ficou em terceiro lugar). Mas em 2007, numa seleção que mesclava experiência, juventude e, acima de tudo, MUITO talento em todos os setores, veio um ouro histórico no Pan e uma campanha memorável na Copa (vice-campeonato, mas com direito a goleada em cima das campeãs olímpicas dos Estados Unidos na semifinal). A ponto de virar o “exemplo a ser seguido” pela seleção masculina.

“Dunga convoca e quer seleção jogando como o time feminino”, dizia uma manchete da Folha de S. Paulo de 28 de setembro de 2007, dia seguinte à semifinal do Mundial em que o Brasil deu espetáculo diante das americanas.

Foto: Reprodução/Folha de S. Paulo

O Brasil terminou o Pan com uma média de gols superior a 5 por jogo e a Copa com média de quase 3 gols por partida. Marta foi a artilheira das duas competições e já sustentava um troféu de melhor do mundo na eleição da Fifa de 2006 (o segundo viria ainda naquele ano). Cristiane vinha logo atrás, na artilharia daquele time. E tudo isso sem que houvesse sequer uma liga de futebol feminino no Brasil. O investimento na seleção feminina – e na modalidade como um todo – era nulo e, ainda assim, aquele time deixou sua marca na história encantando o mundo.

Cenário quase fez craques desistirem

A história do futebol feminino foi construída “na marra”. Após terem sido proibidas de jogar por uma lei que ficou em vigor por 40 anos (1941 a 1979), restou a elas enfrentar o preconceito. “É uma geração que brigou pra jogar. Todo mundo já tinha saído no tapa, na mão com algum moleque em algum momento, a gente brigava por aquele espaço. Como a gente vai tão bem numa primeira Copa (1988) e chega em terceiro lugar? Porque a gente brigava por aquilo ali, a gente dava um jeito. Não é que estava preparado, construído, mas a gente ia se virando”, contou Aline Pellegrino, Gerente de Competições da CBF e capitã daquela seleção campeã do Pan em 2007.

Mas no início daquele ano, o descaso estava pesando mais. A seleção começou 2007 em baixa, por ter perdido pela primeira vez a Copa América em 2006 e por ter dependido da repescagem para classificar para a Copa. A CBF havia vetado a convocação de jogadoras mais velhas do grupo e isso enfraqueceu o time para as disputas. Foi preciso garantir a volta delas para formar o time que viria a ser quase imbatível.

Foto: CBF

“Assim que a gente retornou da Copa América, o Jorge (Barcellos, treinador) queria todas as meninas mais velhas de volta. A (Tânia) Maranhão, a Formiga, a Maycon, tinham sido afastadas. Porque elas eram teoricamente as reclamonas naquela época e aí a galera sempre dá um jeito de tirar. Nós éramos muito novas, e a experiência daquelas meninas contava muito”, relatou às dibradoras a atacante Cristiane, que na época estava com 22 anos, mas já tinha tido experiência de jogar a Olimpíada em 2004.

O contexto da época também era bastante limitado para as mulheres que queriam ser jogadoras. Sem uma liga nacional de futebol feminino, as atletas tinham que atuar fora do país ou se contentar com poucos meses de atividade por ano em torneios regionais por aqui. Algumas chegaram a pensar em desistir por conta disso.

“Eu estava numa fase que era muito sacrificante e tinha poucos recursos. Eu tinha decidido que se eu não fosse pra fora, eu ia parar. Aqui no Brasil estava realmente muito difícil. Eu fui para o Internacional (de 2002 a 2004) porque os clubes de São Paulo estavam fechando seus departamentos e eu já estava um pouco pensativa, né? Aquele momento que você escolhe se deve continuar jogando e acreditar naquele sonho ou você deve parar e estudar”, disse Rosana, que na época atuava como ala na seleção, e hoje é técnica do time feminino do RedBull Bragantino.

O que todas apontam como diferencial daquele ano foi a preparação que a seleção feminina conseguiu ter. Elas foram reunidas por quase 50 dias em treinos realizados em Caldas Novas-GO, o que possibilitou um entrosamento grande e um auge físico na hora das competições. Ao contrário dos homens, que usavam a Granja Comary em Teresópolis, as mulheres nem sempre tinham acesso à melhor estrutura da CBF – porque a prioridade eram as equipes masculinas.

Foto: CBF

Torcida descobre a seleção

A seleção brasileira estreou naquele Pan contra o Uruguai em uma quinta-feira (12 de julho) às 15h30 no estádio que na época foi inaugurado para a competição com o nome de João Havelange (hoje se chama Nilton Santos). O público foi baixo, menos de 5 mil pessoas, mas o placar foi elástico: uma goleada por 4 a 0. Marta, que já era a grande estrela daquele time, não jogou porque só foi liberada em cima da hora pelo seu time sueco para a competição (que não acontece numa data Fifa).

Vieram mais goleadas depois disso – sobre a Jamaica (5×0), Equador (10×0) e Canadá (7×0), e a torcida aos poucos foi tomando gosto pela seleção feminina que jogava para ganhar e encantar.

“Tecnicamente, era uma seleção fantástica. A gente tinha várias jogadoras que batiam muito bem na bola, tinha um poder de drible, raciocínio rápido, toque de bola muito envolvente, e todas as jogadoras tinham um poder de decisão tanto de drible como de marcação, era uma seleção muito boa”, analisou Rosana. O segredo daquele time era jogar no 3-5-2, sistema implementado pelo técnico René Simões ainda em 2004 e que funcionou muito bem para tirar melhor proveito de todos os talentos à disposição. Marta, à época, jogava no meio-campo, mas sempre invadindo a área. E Daniela Alves, naquele Pan, deixou de ser a volante de contenção para servir o ataque.

“Foi o ano da minha independência. Fui pro ataque, onde eu gostava de atuar, tinha meu chute forte, arriscava de fora e fazia gols. Falei para o técnico: se vira aí atrás que agora eu vou brilhar. Com time rápido, Marta, Cristiane habilidosas, e eu com passes de precisão, encaixou certinho lá na frente”, relembrou a técnica.

Com um time tão envolvente – e toda a visibilidade da mídia -, a torcida passou a conhecer e também admirar a seleção feminina. Quando a masculina (que disputava com um time sub-17) acabou eliminada, as esperanças de medalha do país do futebol se voltaram para as mulheres. E elas tiveram a chance de viver algo que nunca, nem nos maiores sonhos, poderiam imaginar: a ideia de ser ídolo.

“O mais gostoso foi ver a quantidade de pessoas que iam aos jogos somente nos assistir. A gente encontrava torcedores nas ruas, e as pessoas sabiam nossos nomes. Marcou muito pra mim aquilo, as crianças saberem seu nome e quererem ser você. Porque a gente sabe o preconceito que a gente enfrentava. Naquela época, os ídolos eram os homens porque eram mais falados, mais mostrados. A gente conseguir fazer com que as crianças soubessem quem nós éramos e quererem ser a gente me marcou muito”, disse Daniela Alves.

Foto: CBF

A semifinal no Maracanã já teve metade do estádio cheio para ver as mulheres. Mas a decisão superou todas as expectativas delas. Quase 70 mil presentes nas arquibancadas e o barulho do estádio mais icônico do Brasil cantando para empurrar as mulheres é uma cena que elas jamais irão esquecer.

“A gente achava que ia ter uma galera, na semifinal já teve. Mas a gente só foi ter noção quando saiu do túnel e escutou aquele barulhaço. Na hora, a gente se deu conta: caramba, que orgulho ter esse tanto de gente aqui pra ver a gente jogando”, disse Cristiane, atacante do Santos.

Embaladas por “Poeira”, de Ivete Sangalo, a música tema para elas naquele Pan, e por “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, as brasileiras golearam os Estados Unidos por 5 a 0 na decisão.

“Chegou uma hora que a gente se deu ao direito de curtir tudo aquilo ali. Foi uma viagem, uma brisa muito louca. Você fica anestesiado. Não dava pra sair do estadio, as pessoas correndo atras do ônibus. Nunca vivi nada parecido no futebol”, descreveu Pellegrino.

Memória esquecida

O Pan terminou no dia 26 de julho e, no dia 12 de setembro, a seleção feminina já estrearia na Copa do Mundo embalada pelo ouro e pela visibilidade conquistada na competição realizada no Rio de Janeiro. E o time também atropelou quase todos os adversários naquele Mundial – incluindo mais uma goleada por 4 a 0 em cima dos Estados Unidos, que desta vez contava com todas as suas principais jogadoras.

Foto: Reprodução/O Estado de S. Paulo (27/07/07)

Parou na Alemanha na decisão, quando perdeu por 2 a 0 para uma seleção que tinha disputado dezenas de jogos oficiais naquele ano, enquanto o Brasil contava nos dedos o número de amistosos que a CBF agendava na preparação. Naquela época, as alemãs já tinham uma liga forte de futebol feminino no país e eram grande potência na modalidade (como ainda são). O Brasil vivia de talento (como ainda sobrevive hoje), sem nenhum investimento. Foi a partir daquele ano histórico que, pressionada por protestos das jogadoras e pela mídia que passou a dar visibilidade a elas, a CBF organizou pela primeira vez a Copa do Brasil de futebol feminino, competição com menos de dois meses de duração, para compor um calendário nacional da modalidade. O primeiro Campeonato Brasileiro só viria seis anos depois, em 2013.

Mas o que mais dói para as jogadoras desse quadriênio histórico com a seleção feminina (de 2004 a 2008, foram duas pratas olímpicas, um vice-campeonato Mundial e o ouro do Pan) é o fato de não ver essas memórias preservadas e valorizadas.

“Quando fui convidada a ser auxiliar da seleção sub-20, retornei à Granja Comary e vi camisas de várias categorias penduradas e nenhuma da feminina. Isso me deixou muito triste. Senti no coração. Não ter uma camisa, uma representatividade feminina ali pendurada pros atletas que passassem por ali terem conhecimento. Depois, em 2017, a gente foi visitar o Museu da Seleção Brasileira na CBF e fiquei triste de não ver nada do feminino ali. Foram dois baques”, relatou Daniela Alves.

Foto: CBF

“O esforço que a gente fez de 2004 a 2008, quatro anos brilhantes da modalidade e não ter nada ali falando sobre isso…isso dói. Porque eu sei o que eu fiz, o esforço que eu fiz, o suar sangue que eu tive pra defender meu país. A gente sabe o esforço que a gente teve para o futebol feminino se tornar o que é hoje”, recordou.

Cristiane finalizou. “Acho que ficou marcado para gerações que vieram depois. Tem meninas de hoje que falam: caramba, eu lembro que parei tudo pra ver vocês. Acho que quando começou a ter um pouco mais de mídia, as pessoas passaram a conhecer também. Você imagina passar por tudo isso e ter medalha na sua casa. Não importa se é vice. Eu sou vice-campeã do mundo. Mesmo que dentro do nosso país não tenha valorização tão grande, eu deixo como legado pra falar que eu tenho essas medalhas. É um orgulho”.

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