(Foto: Reprodução/Instagram)
Ser mulher no Brasil significa conviver com o medo constante de sofrer violência sexual de todo tipo, a qualquer hora e em praticamente todo lugar. Esse receio está fortemente presente na rotina de torcedoras que cultivam a paixão pelo futebol e querem fazer valer o direito de acompanhar o clube do coração de perto nos estádios, um espaço ainda majoritariamente masculino e que está longe de oferecer as estruturas e os tratamentos básicos necessários para que elas se sintam seguras.
O Mineirão, por exemplo, registrou 11 casos de importunação sexual desde novembro de 2021, quando o público voltou a frequentar o estádio após o afastamento provocado pela pandemia de covid-19. Segundo a assessoria, não é de conhecimento do Mineirão novos casos desde junho de 2022. Mas esses foram apenas aqueles registrados oficialmente – algo que vítimas dos casos contabilizados relatam ser uma tarefa árdua.
Em 3 de novembro de 2021, um homem passou a mão no corpo da estudante Karinne Marques Guimarães, de 21 anos, durante o jogo entre Atlético-MG e Grêmio, no Mineirão. “O homem começou a me olhar e o tempo todo encostando em mim, eu olhava para trás, encarava ele e nada. Ele me ‘encoxando’, eu tentava sair. Até que ele apertou minha bunda muito forte, sem nenhum pudor, a força foi tanta que eu cheguei a levantar os pés do chão”, relatou a estudante, ao g1.
Um outro torcedor que estava próximo começou a gritar com os seguranças do estádio avisando do assédio. Atitude que deve ser estimulada para que os homens tenham consciência que eles precisam ser parte ativa na tarefa de se indignar e coibir ações de violência contra mulheres ou acolher as vítimas, caso seja necessário. O que não aconteceu em relação ao segurança no estádio que atendeu a estudante torcedora do Galo após ter sido vítima da importunação sexual.
“Descaso surreal, os seguranças debochavam de mim enquanto eu ligava desesperada para minha mãe, riam e tentavam de tudo para que eu desistisse da ocorrência. Toda hora colocavam um empecilho, falando que ia demorar”, criticou Karinne. Os seguranças haviam contado para a vítima que o suspeito estava sendo levado para a polícia, mas ela foi informada na delegacia que o homem teria conseguido fugir. “Como um homem acompanhado por seguranças consegue fugir na esplanada do estádio vazio?.” Depois de mais de uma hora, a estudante conseguiu registrar o boletim de ocorrência.
Na semana seguinte, Débora Cotta, de 25 anos, foi beijada à força por uma homem de aproximadamente 50 anos no Mineirão durante a partida entre Atlético-MG e Corinthians. “Eu tentei sair, mas não consegui. Quando ele parou, eu fiquei sem entender. A minha reação foi falar: ‘Sai daqui’. Ele saiu andando e rindo”, contou a vítima. “Eu pensei: ‘Não posso deixar por isso mesmo’. Ele apressou o passo e eu comecei a gritar, dizendo que ele tinha me agarrado, mas ninguém fez nada. Teve um cara que estava perto e ainda falou que não era para tanto.”
Débora começou a chorar e foi ajudada por uma mulher, que a abraçou e a levou para um dos seguranças do estádio. O funcionário perguntou se havia testemunhas e onde o homem estava, dizendo que se ela não soubesse onde o suspeito estava, nada poderia ser feito. Ao recorrer a outro segurança, a vítima foi, enfim, encaminhada para a base da polícia no estádio, onde foi possível recuperar as imagens das câmeras de segurança e identificar o suspeito. Mas ele não foi encontrado. A torcedora registrou boletim de ocorrência.
O que estão fazendo para coibir o assédio
Questionado sobre quais foram as medidas tomadas pelo Mineirão nos casos de assédio denunciados por torcedoras, a assessoria de imprensa do estádio respondeu que o “Mineirão já realizava campanhas educativas incentivando o respeito às mulheres no estádio, mas, com a retomada dos jogos com público a partir de novembro de 2021 e o surgimento dos casos envolvendo importunação sexual, o estádio intensificou o trabalho de atendimento, acolhimento, encaminhamento e acompanhamento de vítimas”.
Em 18 de novembro de 2021, foi lançada a campanha “Todos contra a Importunação Sexual”, com o apoio dos clubes e de órgãos públicos municipais e estaduais. Segundo o Mineirão, os vigilantes passaram a receber constantemente instruções sobre como agir para casos de importunação sexual ou de qualquer tipo de discriminação. O estádio criou um canal de denúncias por Whatsapp, divulgados por cartazes com QR Codes espalhados pelo estádio com o intuito de agilizar o atendimento e colaborar com a apuração dos fatos junto aos órgãos de segurança.
O Mineirão aproveita para ressaltar que é importante que denúncias aconteçam para que os responsáveis sejam punidos. A Rádio Esplanada, o telão e as TVs dos corredores também exibem, durante a realização dos jogos, mensagens para que tais práticas sejam denunciadas. A campanha segue, com ajustes de atuação e comunicação, quando necessário.
Mas, um ano depois, as críticas sobre o despreparo no atendimento de vítimas de importunação sexual se repetiram no mesmo estádio. Em 11 de junho de 2022, uma mulher de 36 anos denunciou que um homem passou a mão nela no jogo entre Atlético-MG e Santos e que os policiais no estádio e na Delegacia da Mulher fizeram ela se sentir constrangida: “Foram mais de seis vezes fazendo a mesma pergunta, como se quisessem que eu mudasse a fala”. Na delegacia, a torcedora ficou das 20h às 3h30 para formalizar a denúncia.
A vítima disse também que a equipe de policiais deu mais atenção ao suspeito e ao irmão dele do que à ela. Uma testemunha disse que os seguranças do Mineirão tiraram o suposto abusador e o irmão do setor amarelo e os transferiram para o setor vermelho. “O certo deveria ser tirar os dois do estádio. Fiquei super chateada pela forma como aconteceu. Vou a todos os jogos do Galo e isso nunca aconteceu. É um abuso. Um cara que não conheço. Independente se estava tonto ou não, não é certo”, lamentou.
São muitos constrangimentos e desafios em comum relatados pelas três torcedoras do Atlético-MG que foram vítimas de importunação sexual dentro do ambiente que era para ser palco de festa. Mas essa não é uma realidade exclusiva do Mineirão. Casos de assédio ocorrem nos estádios espalhados por todo o país. E essa não é uma responsabilidade exclusiva dos gestores das arenas. Se a violência contra a mulher faz parte de um comportamento enraizado na cultura masculina e, com muita força, no futebol, é preciso que todas clubes, federações e associações empenhem esforços e investimentos em medidas que coíbam de fato o assédio nesses ambientes. É um problema social que pode ser melhor tratado por todos.
Legislações e iniciativas para montar plano de ação
Para endossar essa demanda das torcedoras por mais segurança, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) criou o Projeto de Lei 2.448/22, que torna obrigatória a prevenção de assédio ou violência contra a mulher em estádios de futebol e garante atendimento às vítimas nos recintos esportivos. O projeto foi aprovado pela Comissão do Esporte da Câmara no último dia 12, mas ainda será analisado, em caráter conclusivo, pelas comissões de Defesa dos Direitos da Mulher, e Constituição e Justiça e de Cidadania.
Caso vire lei, as novas regras poderão ser incluídas no Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/03), que estabelece as normas de proteção e defesa do torcedor. O Projeto prevê que o time mandante tenha obrigação de assegurar serviços de atendimento que permitam a denúncia da prática de violência contra a mulher durante o jogo e que prestem orientação aos torcedores. Mas as práticas de combate ao assédio nos estádios deverão ser compartilhadas pelo poder público, confederações, federações, ligas, clubes, associações ou entidades esportivas, entidades recreativas e associações de torcedores.
Mais do que prestar todas as condições para o atendimento às vítimas nos estádios de futebol, é fundamental que os agentes responsáveis por gerir o esporte coloquem em prática estratégias de prevenção para diminuir os casos de assédio e, ainda assim, para quando eles acontecerem, que desenvolvam mecanismos que permitam uma repressão rápida. Para fazer funcionar essa mudança de mentalidade e comportamento, é necessária a mobilização de toda a comunidade esportiva.
É com objetivo de criar um plano de ação para coibir o assédio nos jogos de futebol voltado a clubes, federações e administradoras dos estádios que o Brasil Me Too e o Dibradoras lançaram a campanha de conscientização #CartãoVermelhoParaOAssédio. A iniciativa lançou uma pesquisa para torcedoras responderem sobre as experiências com situações de assédio e violência que já viveram em jogos. O objetivo é que as respostas das mulheres que frequentam estádios possam ajudar a guiar e estruturar o plano de ação.
“Quem frequenta os estádios de futebol com certeza tem alguma história para contar, seja por
experiência própria, por presenciar casos ou mesmo por ouvir relatos de assédio contra mulheres torcedoras”, comenta Marina Gazolli, presidente do Me Too Brasil. Por isso, a campanha convida as comunidades a se engajarem e responderem sugestões de medidas práticas que os clubes podem tomar para garantir não só a segurança das mulheres no estádio.
Segundo Gazolli, as sugestões mais requisitadas na pesquisa até o momento são de estipular entradas e saídas do estádio exclusivas para mulheres que estão sozinhas; um canal de denúncia dentro do estádio/arena semelhante ao usada em bares, restaurantes e metrô, em que a vítima consegue comunicar de forma fácil e anônima os órgãos competentes em situação de assédio; punições mais severas aos agressores, com restrição de voltar a ter acesso ao estádio; áreas nas arquibancadas exclusivas para mulheres e crianças; maior presença de seguranças e policiais femininas dentro e nos arredores dos estádios.
Organizadas feministas: unidas pelo direito de torcer
A Grupa, organização de torcedoras feministas do Atlético-MG, aproveitou a visibilidade do dia Dia Internacional das Mulheres do ano passado para divulgar “propostas para o clube alcançar protagonismo na construção de um ambiente seguro e inclusivo para as mulheres atleticanas”.
As sugestões foram: inserir mulheres no conselho e em cargos de direção do clube; construir um ambiente seguro para todas as mulheres; criar um padrão de tolerância zero contra a violência de gênero; incentivar o respeito às profissionais de imprensa e arbitragem; valorizar e apoiar o futebol feminino; e garantir infraestrutura para as torcedoras.
Não é um grupo, mas a Grupa, como o coletivo das torcedoras do Galo se intitula, surgiu em 2016, após a polêmica envolvendo o lançamento do uniforme do clube. Com intuito de trazer ainda mais o público feminino aos estádios e torná-lo um local mais inclusivo, as meninas começaram a se encontrar antes dos jogos e irem embora juntas. Para variar, um movimento de protagonismo feminino causou desaprovação por parte dos torcedores, entre homens e mulheres, por achar a iniciativa “desnecessária”.
Fato é que essa foi uma forma que atleticanas encontraram para continuar marcando presença nos estádios, um direito que deveria ser de todos e todas. Mas a Grupa foi além, pois também promove debates acadêmicos sobre machismo, racismo, homofobia e representatividade feminina no esporte.
O preconceito e o medo do assédio fizeram com que torcedoras começassem a se unir em coletivos e torcidas organizadas próprias. Em 2009, torcedoras do Internacional criaram a Força Feminina Colorada, considerada a primeira torcida organizada feminina do país. O objetivo de garantir voz para as mulheres no futebol, a iniciativa cresceu, foi registrada oficialmente no cartório, reconhecida pelo Ministério Público e, depois de muita insistência, oficializada como torcida organizada do Inter, com setor reservado na arquibancada do Beira-Rio.
“A ideia da torcida feminina surgiu por uma comunidade do Inter no Orkut em 2009. Algumas torcedoras começaram a comentar sobre a necessidade de ter uma torcida de mulheres porque elas enfrentavam aquelas questões de sempre do medo de ir sozinha ao estádio, tinha o tabu de violência no futebol e etc. Elas se organizaram, fizeram uma reunião e decidiram fundar uma torcida organizada”, contou Francine Malessa, ao Dibradoras em 2020, quando era diretora de comunicação da torcida.
Francine ainda compartilhou que entrou nesse movimento de torcida quando estava passando por um momento difícil da vida. “Eu estava saindo de um relacionamento abusivo e precisava encontrar algum espaço pra eu buscar minha independência, minha autoestima. Na convivência com essas mulheres, consegui me reerguer. Consegui entender a força da mulher. Pelo futebol, a gente também pode ajudar umas às outras”, compartilhou.
Afinal, futebol pode ser bem mais do que um jogo disputado entre quatro linhas. E se esse esporte tão popular no Brasil e no mundo diz tanto sobre a nossa sociedade, está mais do que na hora de as instituições relacionadas ao futebol assumirem o compromisso de proporcionar segurança para que as mulheres também possam assistir a um jogo de futebol dentro do estádio sem sentir medo.
Já passou por situação de assédio ou constrangimento no futebol?
Colabore com a pesquisa preenchendo o formulário online pelo link: Cartão Vermelho Contra o Assédio (google.com).