“Nenhuma mulher chegou ao futebol sem consciência política”, diz Gabi Moreira

(Foto: Gilvan de Souza – Acervo pessoal)

Repórter experiente, com quase 20 anos de carreira no Jornalismo, Gabriela Moreira fará algo pela 1ª vez na profissão: será a porta-voz das notícias da Seleção Feminina de Futebol durante a Copa América, competição que começa no dia 8 de agosto na Colômbia. Em entrevista para as Dibradoras, às vésperas do torneio, Gabi revelou que recebeu com surpresa a notícia de que acompanharia as mulheres do futebol.

“Ainda não tinha feito nenhuma cobertura do futebol das mulheres na TV Globo e Sportv. Foi uma surpresa, mas na sequência fiquei super animada porque eu sentia falta de mergulhar mais no universo do futebol feminino”, declarou a repórter que já acompanhou a equipe brasileira nos amistosos diante da Dinamarca e da Suécia.

Além do esporte, Gabi já atuou em coberturas “cascudas” nas editorias de Polícia, Cidades, Política, Saúde e Meio Ambiente. Atualmente no Sportv e com passagens por diversos veículos – O Dia, Extra, O Globo, TVE, CBN, Rádio Globo e, por último ESPN Brasil – a repórter já ganhou prêmios em algumas das reportagens que fez e tem como objetivo contar boas histórias, especialmente aquelas que as pessoas não querem que sejam contadas.

“Detesto fazer cobertura em que todo mundo está trazendo o mesmo tipo de notícia, porque eu acho que é um pouco de perda de tempo. Por exemplo, cobertura de clubes, de setorismo, que eu já fiz (do Flamengo), eu ficava pensando: o que só o meu olhar vai trazer para que, de fato, eu faça algo relevante pras pessoas saberem? E, há um tempo atrás, percebia que o futebol feminino não era muito coberto. Então, eu tinha pra mim uma missão pessoal de trazer notícias sobre esse universo. Mas isso já tem um tempo, foi ainda na minha antiga empresa (ESPN Brasil) que eu comecei a trazer bastidores que não eram muito bem cobertos”, relembrou.

“Quando estou cobrindo futebol feminino, não tenho a impressão que vivo em um mundo paralelo”

Repórter experiente na cobertura do futebol dos homens, Gabi foi porta-voz de matérias interessantes, como a série de reportagens em que detalhou a fuga e trajetória de dois boxeadores cubanos durante os jogos Panamericanos do Rio (rendendo a ela menção honrosa do Prêmio Esso e o Prêmio Tim Lopes, em 2007), a cobertura da ocupação da Rocinha no Jornal O Dia (em 2012), os bastidores das obras da marquise do Maracanã às vésperas dos grandes eventos no Rio de Janeiro (em 2013, pela ESPN, com Lúcio de Castro), a série “Futebol fora do Armário” (pela ESPN, em 2018, que rendeu o Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade) e, mais recentemente, denunciou as irregularidades praticadas pela diretoria do Cruzeiro, que contribuíram com o rebaixamento do clube mineiro para a Segunda Divisão (em 2019, com Rodrigo Capelo para a Globo).

Conhecendo de perto a cobertura do futebol masculino, a repórter foi direta ao responder sobre as diferenças que enxerga nas coberturas midiáticas entre homens e mulheres. “O personagem que você entrevista (no futebol feminino), não faz parte de um universo de deuses. São pessoas acessíveis, normais, pessoas que querem ter suas trajetórias contadas e seu espaço de voz. Outra grande diferença na cobertura do feminino para o masculino é que entre as mulheres existe um diálogo muito maior sobre o que acontece na sociedade. Quando estou cobrindo futebol feminino, eu não tenho a impressão de que estou no paralelo da sociedade. Aqueles problemas que são discutidos ali são os problemas reais da sociedade: a exclusão das mulheres, do lugar da mulher no país, a questão LGBTQIA+ também está presente. O universo e os problemas que eu retrato ali têm enorme diálogo com a sociedade real”, analisou.

Para Gabi, toda mulher que esteja jogando futebol profissionalmente já é uma militante por essência. “Nenhuma mulher chegou onde chegou na modalidade sem consciência política do seu papel e das barreiras sociais que quebrou para estar ali. Então, faz parte do seu ser, uma consciência política muito grande. E isso é algo que a gente não vê no futebol masculino em grande escala. Ao contrário, quando cobrimos o masculino, a gente se transporta pra um universo paralelo da modalidade e nos questionamos: ‘esse mundo que eles vivem é o mundo de quem está assistindo?’. Com o futebol feminino a gente olha aquilo e falamos: ‘esse mundo que elas estão vivendo é o mundo real que eu vivo lá fora’. Me sinto muito mais à vontade em perceber que é isso, fazemos parte de mundo real naquela cobertura, não é só uma fantasia.

A acusação de assédio que derrubou o presidente da CBF

E esse posicionamento das mulheres foi notoriamente percebido quando, em junho de 2021 – ao lado do repórter Martín Fernandez – Gabi revelou as acusações de assédio sexual e moral que derrubaram Rogério Caboclo, na época presidente da Confederação Brasileira de Futebol, do cargo. “No dia em que demos a notícia, houve um jogo da seleção masculina em Porto Alegre. Eles (atletas e comissão) não se posicionaram, como se isso não fosse um problema da sociedade, como fazem normalmente. Mas elas (jogadoras e comissão técnica) se manifestaram e com esse agravante: elas estavam se manifestando contra o presidente que mais deu estrutura para o futebol feminino nos últimos anos”, relembrou.

Durante todo o processo de apuração até a divulgação da notícia, Gabi tinha a grande preocupação de proteger a vítima e ter provas cabíveis para provar o assédio que a funcionária sofreu. “Quando se trabalha com denúncia, é preciso de materialidade, é preciso provas materiais pra denunciar algo e eu sempre fiquei atrás disso. E, no assédio, a prova é comportamental. Como é que você materializa esse comportamento? A grande vantagem desse caso, pro desfecho que ele teve, é que a vítima tomou a decisão de continuar sofrendo o assédio para produzir provas. Olha o quão doloroso é uma vítima de assédio sexual ter que provar que é assediada porque ela precisa documentar isso. E ela conseguiu e foi um grande diferencial nessa cobertura”, declarou.

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Além da apuração, Gabi e Martín precisaram convencer a vítima a tornar o assunto público. “Foi algo muito difícil. Não foi só por meio dela que conseguimos as informações, então também tínhamos que trabalhar com isso, de sempre avisá-la que iriamos publicar a notícia e também protegê-la”, relembrou.

Trabalhar em cima desse caso só expôs como o machismo é estrutural na sociedade, afinal, Rogério Caboclo demostrava ser um entusiasta do futebol feminino e foi o presidente que mais investiu e valorizou a modalidade dentro da CBF, um comportamento totalmente diferente de outros mandatários. “É uma contradição, porque o presidente que olhou para o futebol feminino é a mesma pessoa que assedia mulheres – e não foi só uma, foram três na entidade que apresentaram denúncia. Esse é um exemplo claro do machismo estrutural, o assediador não é um homem mau na essência, de nascença. A estrutura do machismo é tão grande que é isso, um homem pode cometer gestos absurdos e ao mesmo tempo olhar com carinho para o futebol feminino.”

Após o escândalo e o desfecho do caso, Gabi ainda acredita que a CBF precisa promover diversas mudanças internas para alavancar ainda mais o futebol feminino no país. “Tem algumas decisões da atual gestão que colocou mais mulheres em cargos de chefia, mas é preciso mais do que isso. É preciso um olhar mais profissional do trabalho das mulheres e continuar investindo. Ouço muitos questionamentos sobre o custo da modalidade e respondo que esse é o custo do investimento e do fomento ao futebol das mulheres. Esse investimento não vai dar dinheiro no curto prazo e os resultados virão no médio a longo prazo. E acho que essa é uma percepção que nem todos tem ainda dentro da entidade.”

“Minha inspiração é a minha família”

O olhar atento de Gabi Moreira para contar histórias é um grande diferencial de sua trajetória como jornalista. Formada em 2005 pela PUC-RJ, a repórter nos revelou com detalhes – e pela primeira vez publicamente – que suas maiores referências, como pessoa e profissional, vêm de dentro de casa.

“Minha família materna é muito interessante. Meu avô era um pastor presbiteriano, fundou igrejas no interior de Recife e Minas Gerais e teve 12 filhos. Todos eles fizeram faculdade e foram instruídos a buscar uma formação intelectual progressista. Minha família tem a evolução do ser humano, profissional e política, como norte”, destacou.

A jornalista nos contou que cresceu em um ambiente em que o bom uso da palavra e a busca pelo conhecimento eram essenciais e que uma de suas grandes inspirações na profissão é uma de suas tias: a premiada jornalista, Míriam Leitão.

“Tenho uma tia que é jornalista e que eu sempre escondi, entre aspas, do meio jornalístico porque eu não queria que as pessoas me identificassem com ela na carreira. Assim, se eu acertasse, iam creditar a ela os meus acertos. E se errasse, era minha culpa, mesmo porque eu estaria naquela profissão por causa dela. Então, durante anos, eu escondi de chefes, de RH, de colegas de trabalho que eu era sobrinha dela. Mas hoje em dia, já são alguns anos de profissão e eu falo: a Miriam Leitão é minha tia. Tia mesmo, quase mãe. Trabalhei como secretária dela aos 15 anos de idade e ela é uma das minhas grandes referências de jornalista e de ser humano”, confidenciou.

Míriam é irmã de Ana Leitão, mãe de Gabi Moreira e advogada. E claro, as conversas no ambiente familiar sempre tiveram o tom progressista. “A época de ditadura sempre foi um assunto presente em casa porque não só ela (Miriam), mas também um outro tio meu entrou na militância. Somos uma família que se construiu em cima disso, de custe o que custar, temos uma missão de continuar trazendo fatos à tona, Aos poucos, fui entendendo que ter exemplos dentro de casa, de pessoas que quase pagaram com a própria vida para não abrirem mão do caráter e da busca por uma sociedade melhor, talvez tenha sido minha grande referência profissional mesmo”, frisou.

Roça, cavalo, futebol e moto

Com o avô orientando a neta para não ter papas na língua, Gabi passou a maior parte de sua infância no interior de Minas Gerais, ao lado dos pais e de mais três irmãos (duas mulheres mais velhas e o irmão caçula). “Andava a cavalo (tinha uma égua chamada Duquesa) e jogava futebol com meu irmão. Fui a grande companheira do meu pai nas arquibancadas e fui gostando de jogar bola, achava que seria possível ser uma jogadora”, contou.

Quase foi possível mesmo. Gabi chegou a ir para os Estados Unidos, aos 14 anos, para estudar e passou em uma peneira para jogar bola em Atlanta. Foi apenas uma passagem, mas depois disso, trouxe seu talento para o Rio de Janeiro e também foi aprovada em uma peneira em Xerém, para atuar pelo Fluminense, aos 16 anos. “Fiz apenas um treino porque era muito longe. Vi que não ia ser a Marta, aí parei e fui pra comunicação”, relembrou aos risos.

Mas, até hoje, Gabi segue peladeira. Em 2005, quando trabalhava no Grupo Globo, fundou, ao lado de uma colega, o time de society “Grama na Calcinha”, que recebeu esse nome em alusão ao escândalo político da época, o tal dólar na cueca. “Sempre que estou no Rio e posso, eu apareço pra jogar. Na pelada sou como uma segunda volante.”

(Foto: Acervo pessoal)

Outra grande paixão de Gabi é a moto, veículo que utiliza há 17 anos e não abre mão. “Gastaria ainda muito mais dinheiro com terapia se eu não pudesse andar de moto todo dia. A paixão vem do meu pai, que conheceu minha mãe em cima de uma moto quando foi de Juiz de Fora para a Bahia e a conheceu lá”

“Minha maior preocupação é não errar e me acovardar”

Trabalhando com jornalismo investigativo e sempre com o olhar atento às novas histórias, Gabi declara que encaminhou muito bem sua carreira e que gosta de se comunicar em todos os tipos de mídia possíveis. Ela abastece um blog no GE, onde adianta suas apurações, também se dedica à produzir matérias profundas para a TV, atua como repórter de campo e também apresentadora – cargo que ocupou algumas vezes no Redação e Seleção Sportv, substituindo Marcelo Barreto e André Rizek. “Gosto de variedade do olhar e enxergar o esporte de uma maneira multidisciplinar. Ver quanto o esporte conecta com a vida real, isso eu gosto muito.”

(Foto: Acervo pessoal)

Pensando no futuro, quer continuar contando suas histórias nessa profissão que, segundo ela, a torna um ser humano melhor. “Minha profissão me leva a muitos lugares e a conhecer pessoas diversas. Você tem que se esforçar muito para se tornar um ser humano pior ou insensível olhando a dor do outro diariamente. Quantas vezes já assisti enterros com mães que tinham perdido seus filhos ou de um policial que foi morto na favela. Acompanhei muito a dor, a miséria do outro e isso faz olhar pra você e pensar: o que eu tiro de proveito desse olhar que me foi dado através do jornalismo? Eu não consigo separar o meu ser humano e do meu ser jornalista, acho que eles se completam e sou muito feliz por ser jornalista porque essa profissão me faz ser uma pessoa melhor”, avaliou.

Vivendo em uma sociedade de muitos ataques e perseguições, Gabi ressalta que seu grande objetivo é jamais perder sua essência. “Tem que ter muita estrutura emocional e consciência do que você tem como missão jornalística. Hoje em dia, o que é mais pesado para os jornalistas, é o assédio judicial, o quanto a imprensa tem sido vítima de silenciamento jurídico e isso é pesado. A maior preocupação que tenho é de não errar, a consciência de saber que aquilo que estou publicando vai mudar a vida das pessoas. Agora, outro medo que eu tenho é de me acovardar e isso eu não posso de jeito nenhum. Entendo muitas pessoas que silenciam porque é mais confortável em termos de carreira, de não comprar brigas. Embora minha atividade diária não seja brigar e tenho uma boa relação com minhas fontes – até mesmo com as que denuncio – e é inegável que sua carreira fique mais visada quando tem pessoas que você incomoda”, reforça.

Próxima parada: Armênia

Já em solo colombiano, a tarefa da vez de Gabi Moreira é reportar a seleção feminina em busca do octacampeonato da Copa América. E, pra ela, esse título tem que vir. “É a grande missão. Precisamos entender que vamos chegar lá em algum momento. O futebol feminino no Brasil está sendo construído, podemos fazer críticas ao trabalho, mas sempre com essa noção de que estamos muito atrás – motoramente e fisicamente – do futebol praticado na Europa, sobretudo. A Copa América é um grande laboratório pra que a gente consiga conquistar alguns anos de evolução que não foi conquistado nos últimos tempos. Serve como uma preparação para uma Copa Mundo, podendo competir na mesma prateleira, mas não no mesmo nível, das outras equipes. Se a gente chegar no pé da prateleira, acho que faremos um grande trabalho, mas a gente precisa continuar.”

(Foto: Lucas Figueiredo/CBF)

O Brasil estreia na competição no dia 09 de julho (sábado), às 21h, diante da Argentina no Estádio Centenário de Armênia. A partida será transmitida pelo SBT e pelo Sportv, onde Gabriela Moreira será a porta-voz das notícias sobre a seleção feminina de futebol.

“Vai ser uma baita chance de eu me tornar uma expert, de fato. Quero terminar esses dias sabendo muito mais do que sei hoje em dia.” Ninguém duvida de que essa cobertura com Gabriela Moreira está em boas mãos, mente e pés, é claro!

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