A técnica Pia Sundhage completou dois anos à frente da seleção brasileira feminina neste ano. E mesmo se encaminhando para o terceiro ano no comando, há um detalhe importante na rotina que ela ainda não conseguiu mudar por completo: um calendário de jogos confirmados com um ano de antecedência.
Essa já era uma demanda antiga na seleção feminina e sempre gerou um problema para qualquer treinador. Os amistosos sempre foram fechados em cima da hora. Isso faz com que, com frequência, o Brasil não consiga confirmar os melhores adversários (porque com a demora brasileira para o planejamento e a confirmação, as outras seleções vão buscando fechar seus compromissos e aí já estão com a agenda ocupada), e tem efeitos também sobre o trabalho da comissão técnica, que precisa de bons testes para conseguir preparar a seleção para as principais competições.
Em entrevista ao Dibradoras realizada no início de novembro, a técnica Pia Sundhage e a auxiliar Lilie Persson afirmaram que o maior desafio delas à frente da seleção brasileira hoje é lidar com essas incertezas sobre o calendário. “Sempre ouvi de treinadores vencedores: nós jogamos contra bons adversários. E esse é o maior desafio que nós temos. Ter um calendário para que possamos saber contra quem vamos jogar no próximo ano. A Austrália, por exemplo, eles sabem contra quem vão jogar daqui até a Copa do Mundo. A Suécia a mesma coisa”, afirmou Pia.
“Para nós, tem sido estressante, porque nós ouvimos ‘não está 100% certo, o contrato ainda não foi assinado’. E isso é muito diferente do que eu vivi na Suécia e nos EUA. Jogar contra as 10 melhores seleções do mundo, é isso que queremos fazer e esse é o maior desafio agora.”
“É preciso planejamento para ter sucesso”, afirmou a auxiliar, Lilie Persson.
A coordenadora de seleções, Duda Luizelli, é quem tem trabalhado junto com a comissão técnica para definir os adversários e iniciar o contato com eles. Há ainda as outras burocracias para fechar os contratos desses amistosos que dependem de mais gente dentro da CBF e isso muitas vezes demora mais do que deveria. Hoje, por exemplo, já existe um calendário traçado para o primeiro semestre de 2022, mas nem tudo está confirmado.
A certeza, por enquanto, é que a seleção feminina disputará o Torneio da França na primeira data Fifa do ano, ao lado da anfritriã, além de Holanda, Finlândia entre 14 e 23 de fevereiro.
Em 2020 e 2021, o calendário de jogos foi ainda mais afetado por conta da pandemia de coronavírus. Quando outras seleções já conseguiam marcar amistosos, o Brasil ficou sem jogar em abril porque era um dos recordistas de casos da doença no mundo e, com isso, nenhuma outra seleção queria viajar para o país para jogar contra a seleção brasileira, nem receber jogadoras que viessem do Brasil.
Com isso, a preparação brasileira para os Jogos Olímpicos de Tóquio foi afetada. E mesmo depois da Olimpíada, fora as partidas contra a Austrália, o Brasil só fez jogos contra adversários que estão muito abaixo dele no ranking da Fifa – a seleção é sétima colocada e enfrentou Argentina (34ª), Chile (36º) e Índia (55ª). Para a Copa América de 2022 e, posteriormente, a Copa do Mundo de 2023, o objetivo é garantir um calendário com jogos contra adversários competitivos em todas as datas Fifa.
Lições da derrota mais dolorida
Desde a eliminação nas quartas-de-final da Olimpíada, Pia Sundhage falou um dos aspectos que precisavam ser melhor trabalhados na seleção era o ataque. Na sua comissão, ela divide funções entre os auxiliares, para que cada um cuide de um setor. Lilie Persson é a responsável por trabalhar nas jogadas ofensivas e se mudou para o Brasil no segundo semestre para estar mais perto das jogadoras e do trabalho no dia a dia com a seleção.
Nesta conversa com a reportagem, as duas refletiram sobre os erros e acertos da comissão técnica nos Jogos Olímpicos.
“Na hora, eu me senti machucada fisicamente. Porque pareceu que estávamos tão perto. Mas quando eu assisti de novo ao jogo, foi melhor, porque eu percebi: não, nós não fomos boas o suficiente. Então eu precisava pegar esse sentimento ruim e falar: bom, se nós queremos um resultado diferente, se queremos uma medalha, precisamos fazer um trabalho melhor.”
Desde que Pia chegou, a organização defensiva do Brasil mudou bastante. Sem a bola, a seleção passou a jogar de maneira mais compacta e se tornou muito segura – até os Jogos Olímpicos, o Brasil havia passado quase 70% dos jogos com Pia sem sofrer gols. Em Tóquio, somente a Holanda conseguiu furar a defesa brasileira balançando as redes três vezes no empate em 3 a 3 na primeira fase.
Mas ofensivamente, a avaliação da comissão técnica é de que o Brasil ficou previsível.
“É um equilíbrio. Eu diria que com as brasileiras, elas precisam ser organizadas para se sentirem livres e serem criativas. E eu ainda fico pensando: por que não chegamos tanto ao último terço do campo contra o Canadá? Acho que tem um pouco a ver com a questão física também. Quando você é criativo, você tem muita energia. Você tem muita coragem. Naquele jogo, nós não tivemos muita energia e não tivemos a coragem que deveríamos ter tido. Tudo é uma questão de equilíbrio. Como resolvemos? Diferentes formas”, refletiu Pia.
“Você mencionou a questão da coragem, talvez nós não demandamos o suficiente das jogadoras nas quartas-de-final também. Nós sempre temos que olhar para nós mesmas no espelho, nós somos parte do time. Já falamos bastante sobre isso”, pontuou Lilie.
Para ela, faltou a comissão técnica também estimular mais essa “imprevisibilidade” do ataque brasileiro. As corridas sem a bola para atacar a última linha, que tanto estão sendo trabalhadas agora, por exemplo, poderiam ter sido mais encorajadas.
“Acho que é algo importante. Eu sempre me questiono isso. Olhando para trás, vejo que deveríamos ter dado muito mais feedback para elas quando elas faziam coisas diferentes no ataque. E no fim do dia, foi isso que senti depois daquele jogo, que nós poderíamos ter feito um trabalho melhor”, avaliou Pia.
Lillie complementou: “Nós hoje temos os mesmos princípios de ataque, desafiar as linhas, isso é a mesma coisa. Mas a diferença é que talvez nós deveríamos ter insistido mais nesses detalhes e as jogadoras poderiam ter aproveitado melhor as oportunidades para desafiar as linhas.”
O diagnóstico foi de que faltou o Brasil ser mais “dinâmico e imprevisível” no ataque. Para mudar isso, o trabalho feito agora foca na movimentação sem a bola.
“Nós falamos muito sobre desafiar as linhas. O gol está ali, nós temos que ir para essa direção, às vezes com a bola, mas você também precisa ser capaz de fazer isso sem a bola. Nós não estamos jogando futebol como nos anos 1950. É 2021 agora, então elas precisam saber correr sem a bola. É por isso que a Pia sempre fala da parte física. Acho que desafiar a linha é a frase mais importante que nós usamos”, explicou Lilie.
Desde a Olimpíada, o Brasil fez sete jogos e sempre balançou as redes pelo menos uma vez em todos eles. Em alguns casos, contra adversários mais fracos, é verdade, mas a variação das jogadas começou a ser trabalhada. Em 2022, jogos contra seleções top 10 do ranking poderão apontar se estamos indo na direção certa.