Djamila Ribeiro: ‘Retorno de Caboclo à CBF seria temerário, incoerente e injusto’

O presidente da CBF Rogério Caboclo, afastado do cargo após grave denúncias de assédio moral e sexual, tenta retornar à entidade de diversas formas. A Comissão de Ética ampliou nesta semana o período de afastamento do dirigente para 21 meses, e agora uma Assembleia Legislativa foi convocada para o dia 29 de setembro em que os presidentes das federações irão aprovar ou não o que a Comissão deliberou.

Em outra estratégia para retornar ao cargo, Caboclo apelou para o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Diante disso, o escritório de advocacia que representa a CBF nesse processo arbitral contratou a filósofa e escritora Djamila Ribeiro em busca de um parecer no processo em trâmite. Os questionamentos feitos a Djamila foram para entender as consequências jurídicas e repercussões para a imagem da entidade em caso de um eventual retorno de Caboclo ao cargo.

A reportagem teve acesso ao parecer em que a escritora considera a hipótese do retorno de Caboclo à presidência da CBF “temerária, por expor a denunciante ao arbítrio institucional; incoerente com diplomas constitucionais, infralegais, tratados internacionais e com o próprio código de conduta da entidade; e injusta, uma vez que iria na contramão dos áudios transcritos e de toda a dificuldade que envolve denúncias de assédio sexual”.

Foto: CBF

Em contato com o Dibradoras, Djamila falou sobre o que a levou a aceitar escrever esse parecer. “Fiquei muito satisfeita em poder participar de uma discussão tão necessária, sobretudo em um meio marcado pela hegemonia masculina. O assédio sexual ainda é naturalizado na sociedade e a discussão estar posta é um marco importante de proteção às mulheres”, afirmou.

“No caso, identifiquei o assédio sexual patente pelo presidente afastado, como também violações de boas práticas de governança corporativa e apontei uma série de riscos, tanto para a denunciante, quanto institucionais, em um eventual retorno dele à entidade”.

Relação de poder

Em um documento de 30 páginas, Djamila responde aos questionamentos feitos pelo escritório a respeito dos riscos da reintegração de Caboclo à presidência da CBF. Na primeira resposta, sobre como poderiam ser configuradas as condutas do acusado descritas na denúncia, Djamila foi bem didática.

Citando a filósofa Simone Beauvoir, ela destaca que “a conquista de direitos fundamentais para as mulheres é uma das bases para a democracia, porém há um longo histórico de opressão a elas que ainda não acompanha os marcos legais”. E reforça que a posição de poder que Rogério Caboclo tinha na CBF permitia que ele tivesse comportamentos extremamente inadequados e que, se cometidos por qualquer outro funcionário, dificilmente não causariam demissão.

“O fato de o denunciado seguir trabalhando sob efeito de embriaguez já mostra uma posição de poder. Para pensarmos, vamos comparar a posição com a de um porteiro da CBF. O porteiro é homem, porém está em uma função hierarquicamente inferior na cadeira de comando da entidade. Se um porteiro trabalhasse com uma garrafa de vinho ao seu lado, constantemente aparentando sinais de embriaguez e falando palavras de baixo calão para colaboradoras da associação, seria ele certamente demitido do cargo. Se na entrada da associação ele chamasse uma colaboradora de “cadelinha”, oferecesse biscoito para cachorros, como foi feito pelo denunciado à denunciante, qual medida que a CBF tomaria? Ocorre que, no caso do Presidente da associação, por ele ocupar uma posição de poder, tanto como homem, quanto como presidente, tenciona-se amenizar, justificar, ou tornar atitudes completamente impróprias a um ambiente de trabalho como ‘um grande mal-entendido'”, escreveu Djamila.

A escritora também traz transcrito o áudio reproduzido na reportagem de Gabriela Moreira no Fantástico em que, entre outras coisas, o presidente da CBF pergunta à funcionária: “Você se masturba?”.

“Veja que não há falso moralismo. Uma mulher pode perfeitamente gostar de discutir sobre sexo, experimentar o que tiver interesse. Mas, neste caso, estamos no cenário de uma mulher subalterna, que está sendo constrangida dentro do gabinete do seu poderosíssimo superior hierárquico, que abusa do seu lugar de poder para constranger e satisfazer seus desejos sobre a colaboradora em posição inferior, tanto hierarquicamente na entidade, como mulher em uma sociedade patriarcal. A relação é assimétrica em todos os níveis. A isso damos o nome de assédio”.

Vale lembrar que, inicialmente, a Comissão de Ética deu outro nome às atitudes de Rogério Caboclo. A decisão inicial de punição por 15 meses considerou que ele teve “conduta inapropriada”, mas não cometeu assédio. Nesta semana, porém, após ter ido ao ar uma forte entrevista da denunciante ao Fantástico, a Comissão de Ética voltou atrás na decisão, considerou a atitude do presidente como “assédio” e aumentou a punição para 21 meses de afastamento – ou seja, ele ficaria afastado até o fim de seu mandato.

Impunidade

No parecer, Djamila Ribeiro também fala sobre os efeitos que um possível retorno de Caboclo teria tanto para a funcionária vítima de assédio – e para as mulheres, em geral -, quanto para a imagem da CBF. A escritora ressalta que a impunidade passaria uma mensagem muito ruim, de “desprezo aos direitos das mulheres”.

“Pelo todo exposto, no caso de ele ser reintegrado, a denunciante conviverá com o medo, com a vergonha, a impotência até que se torne inviável para ela permanecer na entidade, enquanto o homem seguirá no poder”.

“A denunciante está reivindicando seu lugar de sujeito, se pondo como essencial perante uma situação que tenta confiná-la em lugar de objeto. A entidade CBF ao ignorar a reivindicação fundamental da denunciante em superar uma situação vexatória, passa a imagem de desprezo pela humanidade das mulheres”, afirma o documento.

Djamila cita o próprio Código de Ética da Confederação Brasileira de Futebol, que não permite comportamentos como os descritos na denúncia contra Caboclo. Para a escritora, caso esses atos fiquem impunes, a entidade contribuirá para a “manutenção dessas opressões”.

“Quando uma associação da importância da CBF não responsabiliza homens que descumprem o próprio Código de Ética ao assediarem mulheres, contribui para a manutenção dessas opressões e prejudica o debate sobre os direitos humanos das mulheres. Reforça para as mulheres a ideia de que não é seguro denunciar homens poderosos, parafraseando Beauvoir, que a situação das mulheres é um beco sem saída, de que não vale a pena reivindicar a transcendência”.

Diante desse parecer e das argumentações defendidas no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, a apelação movida por Caboclo foi negada e ele não teve permissão para voltar ao cargo.

Resta agora saber o que os presidentes de federações vão definir na Assembleia Geral diante de tantas evidências anexadas às denúncias de assédio moral e sexual protocoladas, inclusive, por mais de uma funcionária (mais duas vítimas relataram terem passado por situações parecidas após a primeira denúncia).

Compartilhe

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *