Se Brasil sediar a Copa, terá a chance de mudar de vez o patamar do futebol feminino no país

Taça Copa do Mundo Feminina. Foto: Thais Magalhães/CBF

Foto: Thais Magalhães/CBF

Desde a última vez que o Brasil sediou um grande evento do futebol feminino, nos Jogos Olímpicos do Rio-2016, muita coisa mudou. Em um contexto internacional, a modalidade virou uma chave estrutural após o boom da Copa Feminina da França, em 2019. No Brasil, o futebol feminino também avançou passos importantes nesses últimos cinco anos. Mas uma oportunidade única volta a surgir para consolidar de vez no país esse esporte que por tantos anos fechou as portas para as mulheres. E ela se deve à possibilidade de o Brasil sediar a Copa do Mundo Feminina pela primeira vez em 2027.

Após a desistência de Estados Unidos/México, restou apenas a candidatura conjunta de Alemanha, Holanda e Bélgica na disputa com o Brasil. A definição da sede do próximo Mundial Feminino será anunciada no Congresso da Fifa, na Tailândia, na madrugada de quinta para sexta-feira (17), no horário de Brasília.

Mas qual impacto isso poderia ter para o futebol feminino por aqui?

Mudanças de 2016 para cá

Seleção Brasileira de futebol feminino nas Olimpíadas do Rio-2016. Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press
Seleção Brasileira nas Olimpíadas do Rio-2016 | Foto: Fernando Dantas/Gazeta Press

A última vez que o Brasil sediou um grande evento do futebol feminino foi nos Jogos Olímpicos de 2016, com estádios cheios no Rio de Janeiro e em outras cinco cidades. Com um início apático da seleção masculina, uma foto de um torcedor com o escrito Marta por cima do nome riscado de Neymar ganhou destaque. Em campo, a seleção feminina terminou na quarta colocação, mas empolgou os torcedores que aplaudiram as jogadoras até nas derrotas e encheram praças e bares que exibiram as partidas em telões e TVs.

Ao fim da competição, Marta se emocionou com o engajamento da torcida e fez um apelo: “Ganhamos vários fãs durante as Olimpíadas, enchendo estádios. Isso é o maior prêmio para a gente. É óbvio que queríamos estar no pódio, mas vamos levar esse reconhecimento com a gente. E peço ao povo brasileiro: não deixe de apoiar o futebol feminino. Precisamos de vocês”.

Camisa do pequeno torcedor com o nome da Marta registrado nas Olimpíadas de 2016. Foto: Reprodução
Registro do pequeno nas Olimpíadas de 2016. Foto: Reprodução

Desde então, a modalidade mudou bastante. Naquele mesmo ano, o Corinthians voltou ao futebol feminino em parceria com o Audax e já foi campeão da Copa do Brasil. O fim de 2016 também foi marcado pelo anúncio da CBF sobre a criação da segunda divisão do Brasileirão Feminino a partir de 2017, e campeões e vices passaram a receber premiação em dinheiro. Em pouco tempo, o Corinthians assumiu protagonismo no futebol feminino sul-americano, terminando 2017 como campeão da Libertadores e vice-campeão brasileiro, após perder a final para o Santos. 

Em 2018, Conmebol e CBF anunciaram a obrigatoriedade que os clubes passariam a ter de manter equipes femininas em atividade a partir do ano seguinte. A chegada dos clubes ditos de camisa do masculino recheou o Brasileirão Feminino  e promoveu uma maior visibilidade. Dos 16 times que disputaram a Série A1, seis eram tradicionais: Corinthians, Santos, Flamengo, Internacional, Vitória e Sport. E a Série A2 teve um recorde de 36 participantes, sendo 11 deles de camisa: Palmeiras, São Paulo, Cruzeiro, Botafogo, Fluminense, Vasco, Atlético-MG, Bahia, Ceará, Grêmio e Chapecoense.

Vale lembrar que no segundo semestre de 2019 o futebol feminino também vivia os reflexos do boom da Copa Feminina da França, com recordes de público e audiência que promoveram uma mudança de olhar significativa da mídia e da sociedade. Nos cinco anos seguintes, a modalidade deu passos importantes também no Brasil e está mais bem estruturada, profissionalizada e valorizada atualmente. Só que ainda não são todos os clubes grandes que investem na modalidade como poderiam, a exemplo do que o Ceará aprontou em 2023 e o que o Atlético-MG vem fazendo neste ano.

Acontece que o Brasil está a poucas horas de saber se vai ser escolhido como sede da Copa do Mundo Feminina de 2027. Se isso se confirmar, esta será uma chance ímpar de deixar para trás de vez as gestões do futebol feminino impulsionadas pela “obrigação” para que clubes, entidades e profissionais ligados ao esporte passem a gerir a modalidade como um negócio que gera engajamento e pode ser rentável. Projetos que fazem um trabalho sério e bem feito têm tido êxito nesse sentido.

O fato de o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil estar em andamento, com avanços mais significativos nos últimos cinco anos, respaldou a proposta brasileira apresentada à Fifa para sediar o Mundial em 2027. “Claro que ainda tem muito o que avançar em termos de profissionalização, de qualidade, de número de jogos, mas é um processo que já foi iniciado. E uma Copa do Mundo feminina pode ser o catalisador que a gente precisa para ganhar mais velocidade nessas implementações”, pontua Valeska Araújo, responsável operacional e de infraestrutura da candidatura brasileira.

“Se a visão da Fifa é desenvolver uma região, é a nossa hora”

“Hoje, o momento do futebol feminino no Brasil é muito favorável. Porque já estamos fazendo o dever de casa. Em candidaturas anteriores, esse trabalho era incipiente. Eu entrei na CBF em 2015 quando começou a se ter uma visão de trazer alguém específico para o futebol feminino. Mesmo assim, todo mundo me perguntava o que eu iria fazer, porque quase não tinha nada. Hoje, praticamente nove anos depois, já temos o processo em andamento”, pontua Valeska Araújo.

A América do Sul nunca ter sediado uma Copa do Mundo Feminina é um fator que joga a favor da candidatura brasileira e converge com esse momento que vive a modalidade no Brasil. “Se a visão da Fifa é levar um grande evento para desenvolver o futebol feminino em uma região, é a nossa hora”, acredita a responsável operacional e de infraestrutura da candidatura brasileira.

Um dos pilares estratégicos apresentados pelo Comitê de Candidatura do Brasil é unir esforços de CBF, Conmebol e do Ministério do Esporte por meio da Secretaria de Futebol Feminino para aumentar a participação feminina no esporte, tanto em quantidade quanto em qualidade. A proposta também visa promover discussões e ações concretas de proteção para jogadoras, treinadoras, jornalistas, trabalhadoras, voluntárias e torcedoras para além do evento esportivo, que aconteçam antes, durante e após o torneio. “É uma Copa para as mulheres e feita por mulheres”, destaca Valeska Araújo.

Inglaterra pós-Euro, um exemplo a seguir

Sede da Eurocopa Feminina de 2022, a Inglaterra aproveitou o grande evento para impulsionar o futebol feminino, que havia começado um processo de reformulação pouco mais de uma década antes. Em 2011, a liga inglesa foi reformulada e passou a ser chamada de Fa Women’s Super League (WSL), com oito equipes na disputa da primeira edição. 

No ano seguinte, Londres sediou os Jogos Olímpicos e o jogo de futebol da seleção feminina da Grã Bretanha contra o Brasil contou com 70 mil pessoas no estádio de Wembley. O estádio lotado nessa partida ampliou a visibilidade do futebol feminino no país, que passou a ampliar os investimentos na liga nacional e registrar públicos cada vez maiores. 

A melhora da FA WSL, por sua vez, refletiu na melhora também da seleção nacional e em ainda mais investimentos para a modalidade como um todo. Um exemplo foi a contratação em 2021 da técnica Sarina Wiegman, campeã europeia e finalista mundial com a Holanda. Quando a Inglaterra sediou a Euro em 2022, a FA WSL já era uma das ligas mais fortes do mundo e existia um aumento do envolvimento dos torcedores com a seleção, tida como uma das potências daquela edição do torneio continental. 

O resultado foram estádios lotados, recordes de público e audiência e uma conquista histórica da Inglaterra, campeã sobre a Alemanha em uma final disputada diante de mais de 87 mil torcedores em Wembley e 17,42 milhões de pessoas no Reino Unido vendo a final pela televisão. O mais importante, porém, era o que estava por vir, conforme previu a jogadora Leah Williamson, capitã da seleção inglesa na campanha vitoriosa: “O legado deste time é uma mudança na sociedade”. 

Após o sucesso da Euro, a federação inglesa traçou como meta ampliar ainda mais as audiências na televisão e a presença da torcida nos estádios dos jogos delas. Desafio que passa também por uma ampliação da cobertura midiática regular, aumento da valorização das jogadoras, contratos mais longos, melhora dos espaços e tratamento de trabalho, garantias trabalhistas, entre outras que caminham no sentido de uma maior equiparação com o praticado no futebol profissional masculino.

“Temos o exemplo da Inglaterra quando ganharam o Campeonato da Europa em 2022. Assistimos a uma grande mudança após este sucesso, houve repercussões, investimentos no campeonato, os estádios estão sempre cheios quando Inglaterra joga”, destacou a espanhola Aitana Bonmatí, atual melhor jogadora do mundo, em entrevista concedida ao jornal francês ‘L’Équipe. 

Frustrada com a gestão do futebol feminino na Espanha mesmo após a conquista inédita da Copa do Mundo em 2023, Aitana reforça a necessidade de criar medidas para atrair investimento e cativar os torcedores de uma forma contínua. “Tudo começa por resolver fazer as coisas corretamente. É preciso promover bem os jogos, querer organizá-los nos locais certos, não mudar o estádio uma semana antes da partida, porque isso torna as coisas muito mais complicadas para os adeptos, e também promover a liga”, completou a jogadora do Barcelona.

Para além da mudança de patamar da seleção inglesa, que foi vice-campeã na Copa Feminina da Austrália e Nova Zelândia, o alcance da liga inglesa aponta para uma virada de chave concreta do futebol feminino. No último domingo, o Manchester United foi campeão da Copa da Inglaterra Feminina sobre o Tottenham diante de 76 mil torcedores em Wembley. O time só começou a competir no feminino em 2018 e, agora, carimbou o primeiro título da equipe na elite inglesa, com um público que se fideliza a cada jogo.

Favoritismo da candidatura brasileira

O Brasil passou a ser considerado favorito na disputa após a desistência de Estados Unidos/México, anunciada no mês passado. Agora, o país concorre apenas com a candidatura conjunta de Alemanha, Holanda e Bélgica. Na avaliação técnica realizada pela Fifa em fevereiro, a pontuação brasileira foi superior à europeia. O Brasil ficou com nota 4 contra 3,7 na média dos seis critérios analisados.

Um dos principais trunfos do Brasil para vencer a concorrência é a experiência e a infraestrutura de estádios e rede de hotelaria já pronta e posta à prova em grandes eventos esportivos anteriores. Ao todo, 10 cidades fazem parte do projeto brasileiro: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Fortaleza, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Todas elas receberam jogos da Copa masculina, em 2014.

Copa Ouro Foto: Leandro Lopes/CBF
Foto: Leandro Lopes/CBF

O projeto sugere uma adequação da capacidade dos estádios para venda de ingressos com ocupação reduzida, mas com a possibilidade de aumentar a disponibilidade de comercialização se a busca pelos bilhetes for grande. O sucesso de público do Mundial da Austrália e Nova Zelândia, países em que o futebol nem é tão popular quanto no Brasil, mostrou que o evento feminino já aponta engajamentos mais expressivos.

Ainda assim, esses são fatores que servem para auxiliar a escolha de cada voto. Porque a decisão da sede da Copa do Mundo será feita por votação realizada pelas 211 associações nacionais de futebol filiadas à Fifa, em que cada associação tem direito a um voto — que será tornado público ao fim da contagem. Isso acontecerá no Congresso da Fifa, na Tailândia, com previsão para o resultado ser divulgado na madrugada de quinta para sexta-feira (17), entre meia noite e 1h30 no horário de Brasília.

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